“Quando o neoliberalismo entra em colapso, destrói mais ainda”. Entrevista com Branko Milanovic

O economista Branko Milanovic é um dos críticos mais incisivos da desigualdade global. Ele conversou com Jacobin sobre como o declínio da globalização neoliberal está exacerbando suas tendências mais destrutivas

Fonte: Unsplash

02 Dezembro 2025

Branko Milanovic é um dos analistas mais renomados sobre desigualdade no mundo, globalização e capitalismo. Ele escreveu extensivamente sobre esses temas em seus livros Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo (Todavia, 2020) e Visões da desigualdade: da Revolução Francesa até o fim da Guerra Fria (Todavia, 2025), bem como em The World Under Capitalism: Observations on Economics, Politics, History, and Culture (O mundo sob o capitalismo: observações sobre economia, política, história e cultura), uma antologia de suas populares postagens de blog sobre esses assuntos.

A chamada “curva do elefante” – o famoso gráfico que analisa a distribuição global da renda, desenvolvido com Christoph Lakner em 2013 – é talvez a melhor síntese das conquistas da globalização, como a redução geral da desigualdade global, bem como de seus problemas subjacentes, como a ascensão de uma elite global que não presta contas.

Em entrevista à revista Jacobin, Bartolomeo Sala perguntou a Milanovic sobre seu novo livro, The Great Global Transformation: National Market Liberalism in a Multipolar World (A grande transformação global: liberalismo de mercado nacional em um mundo multipolar). Conversaram sobre fenômenos que Milanovic observa há anos e que levaram ao colapso da ordem neoliberal global liderada pelos EUA, que governou desde 1989. Olhando para o futuro, Milanovic vê não tanto uma oportunidade para a esquerda, mas um recrudescimento das tendências mais destrutivas do capitalismo.

Branko Milanovic (Foto: Wikimedia)

A entrevista é de Bartolomeo Sala, publicada por Jacobin, 11-11-2025. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

O título é uma clara referência ao livro 'A Grande Transformação', de Karl Polanyi. O livro começa com a famosa frase: “A civilização do século XIX entrou em colapso. Este livro trata das origens políticas e econômicas desse evento, assim como da grande transformação que provocou”. Seria justo dizer que 'A Grande Transformação Global' tenta fazer com a globalização neoliberal o que Polanyi fez com o liberalismo de mercado do século XIX, isto é, identificar seu fracasso como a razão por trás da ascensão do fascismo?

Bem, sim, existem semelhanças. Obviamente, no título, exceto pelo fato de que eu adiciono a palavra “global”, porque a transformação que estamos testemunhando hoje é verdadeiramente global. No entanto, a ideia é bastante similar. Como você disse, o início do livro de Polanyi trata essencialmente de entender o que aconteceu primeiro com a industrialização e depois por que a nova ordem entrou em colapso já nas décadas de 1920 e 30. De forma semelhante, este livro leva o leitor da década de 1970 em diante e analisa o que eu chamo de vários desafios à dominação ocidental. Em seguida, levanta a questão: por que as coisas mudaram? E o que mudou?

Você identifica a ascensão da Ásia – especificamente da China – como o catalisador desse recuo da globalização neoliberal, uma ortodoxia que reinou praticamente sem contestação desde a queda do Bloco Oriental em 1989. Penso que você resume isso muito bem quando escreve no prefácio: “A ascensão da China, possibilitada pelo neoliberalismo global, tornou inevitável o fim do neoliberalismo global”. De um ponto de vista puramente econômico, essa ascensão deve ser considerada positiva, pois representa um reequilíbrio na escala global de renda. Mas também trouxe consigo algumas consequências não intencionais, como as tensões geopolíticas e a reação populista de direita no Ocidente.

Suponhamos que estejamos falando com um observador benevolente. Sem saber nada sobre o assunto, ele poderia dizer: Veja, o que aconteceu nos últimos cinquenta anos parece, de modo geral, positivo. O PIB global triplicou. Houve maior igualdade na renda média entre os cidadãos do mundo devido à ascensão de países populosos como China, Índia, Indonésia e Vietnã. Além disso, uma classe mediana global – não posso chamá-la de classe média global – certamente emergiu. Se observarmos esses três acontecimentos, todos parecem muito positivos.

No entanto, quando começamos a analisar a situação, percebemos que o primeiro problema com essa equalização de renda é que um país grande como a China ultrapassou os Estados Unidos em PIB total em termos de paridade do poder de compra. Isso cria um conflito geopolítico porque, em última análise, os Estados Unidos não querem abrir mão de sua hegemonia global e veem a China como uma rival, certamente na Ásia, se não no mundo todo. Portanto, esses acontecimentos positivos criam, inicialmente, conflitos no nível dos Estados-nação.

Mas então alguém poderia dizer a este observador: observe o que acontece em termos nacionais. Muitas pessoas perderam seus empregos e receberam salários menores. Os capitalistas em países ricos terceirizaram serviços para o exterior. As classes médias dos países ricos estavam insatisfeitas com a globalização e decidiram votar em candidatos populistas. Este é o tema do livro. Como é possível que algo que pode ser considerado positivo em termos globais – e analisei seus três aspectos – acabe se tornando um problema tanto geopolítico quanto nacionalmente? Devo acrescentar que isso não é nada surpreendente, pois a ascensão da Ásia é uma mudança tão drástica que ninguém poderia esperar que fosse absorvida sem sofrimento.

Juntamente com a ascensão da Ásia, você identifica a formação de uma nova classe dominante ou elite como o outro grande avanço decorrente de 40 anos de globalização neoliberal, ou “Globalização II”, como você a denomina em um ensaio recente para Jacobin, que aborda grande parte do mesmo tema do livro. Essa classe, nascida da união (às vezes literal) entre gerentes e capitalistas, ou capitalistas e quadros do partido, agora domina tanto a China quanto os Estados Unidos. Penso que essa é uma observação muito interessante, pois contradiz as narrativas à la Samuel Huntington que identificam os dois países como dois modelos ou civilizações incomensuráveis. Além disso, você também identifica Donald Trump, Xi Jinping e Vladimir Putin como expressões de uma reação comum contra a ascensão deles. Como essas novas elites, ricas em capital, credenciais e renda do trabalho – que você chama de elites “homoplêuticas” – diferem das do passado?

Essa é uma ótima pergunta. Penso que minha explicação inicial sobre a ascensão da China e da Ásia foi um pouco simplista. Na realidade, ocorreram dois acontecimentos, ambos parte do mesmo pacote neoliberal. Em termos internacionais, houve o desenvolvimento da China e, em termos nacionais, a criação de uma elite rica, com abundância tanto de capital quanto de mão de obra, que deixou todos os outros em uma espécie de limbo. Consequentemente, a ascensão de Trump em particular – porque acredito que ele seja um caso verdadeiramente paradigmático – se explica por esses dois desenvolvimentos, juntamente com a autopercepção daqueles que se saíram muito bem, possuem altas qualificações e, de fato, se consideram muito trabalhadores.

Costumo usar o livro de Daniel Markovits, A cilada da meritocracia. Como um mito fundamental da sociedade alimenta a desigualdade (Intrínseca, 2021), quando falo sobre isso. Como disse Markovits, e o cito, os estakhanovistas [O stakhanovismo foi um movimento nascido na União Soviética por iniciativa do mineiro Alexei Stakhanov e que defendia o aumento da produtividade operária com base na própria força de vontade dos trabalhadores] de hoje são verdadeiramente capitalistas porque, no setor financeiro, por exemplo, muitas vezes trabalham de 10 a 12 horas por dia. Eles sentem que merecem as coisas. E também sentem que a culpa é daqueles que não tiveram sucesso. Na realidade, a culpa é deles porque não foram inteligentes o suficiente, não estudaram o suficiente ou não conseguiram encontrar oportunidades. Existe também esse desprezo pelos outros cidadãos.

Estou muito satisfeito com o meu terceiro capítulo, que você mencionou, porque ele apresenta empiricamente as elites estadunidense e chinesa. A elite estadunidense é uma elite “homoplêutica” com todas as características que mencionei: são os capitalistas e os trabalhadores mais ricos, o que é uma novidade histórica, mas também nutrem um orgulho quase calvinista pelo seu sucesso e um desprezo pelos outros.

Por outro lado, no caso das elites chinesas, que também se tornaram muito ricas, a importância de pertencer ao Partido Comunista é evidente. Isso, claro, faz todo o sentido, porque se você é um capitalista rico, precisa de boas conexões e influência junto ao governo. Para a elite estadunidense, o credencialismo consiste basicamente em frequentar as universidades que, posteriormente, lhe proporcionarão um bom emprego. Para a elite chinesa, o credencialismo é a filiação ao partido, porque garante a segurança dos seus negócios.

De um ponto de vista puramente ocidental, não seria mais preciso identificar essa nova classe dominante, que gosta de se apresentar como uma meritocracia, mas que na realidade é uma nova oligarquia, como a causa principal da reação populista, em vez de culpar a China? Afinal, a deslocalização da produção não é culpa da China (nem da Índia, nem do Brasil). Tampouco é culpa deles que os líderes ocidentais – e aqui me refiro a centristas radicais como Emmanuel Macron ou Keir Starmer – insistam, de forma míope, nas mesmas políticas neoliberais falidas, em vez de redistribuir parte da riqueza que a globalização distribuiu de forma tão desigual.

Concordo plenamente. Acredito que é uma combinação de ambos os fatores. A China, claro, teve sua parcela de responsabilidade. Mas, em nível nacional, também contribuiu a teimosa recusa das elites em reconhecer que estavam perdendo apoio popular. Estavam muito preocupadas com o próprio sucesso e cegadas pela crença de que o mereciam. Menciono isso em meu recente post no blog, “Derrotados pela realidade”. Tenho muitos amigos da geração baby boomer que agora estão se aposentando e acreditam firmemente nisso. Acreditam que merecem certas coisas e que os outros não, porque não estudaram nas escolas certas. Aliás, diriam: claro que fazia diferença se seus pais eram ricos ou pobres, mas qualquer um podia conseguir. Penso que tanto a ascensão da China quanto a ascensão dessa elite neoliberal levaram à criação de uma massa de pessoas insatisfeitas que, consequentemente, votaram contra ela.

Nas ruínas da antiga ordem neoliberal, a chegada de um novo sistema global se anuncia. Nele, a unipolaridade e a hegemonia indiscutível dos Estados Unidos após a Guerra Fria são substituídas pela multipolaridade, e o neoliberalismo dá lugar ao que você chama de “liberalismo de mercado nacional”. Essa é, de fato, a essência do livro, a “grande transformação global” à qual você se refere no título. Seria justo dizer que não estamos testemunhando uma mudança de paradigma, mas uma mutação em que o liberalismo dá lugar a um mercantilismo agressivo no exterior, enquanto o neoliberalismo continua a prevalecer internamente?

Claro. É por isso que o subtítulo do livro é “O liberalismo de mercado nacional em um mundo multipolar”. Todos concordamos que a globalização neoliberal chegou ao fim. E não é só por causa de Trump. As políticas de Joe Biden como presidente foram muito semelhantes. Então, a questão é que tipo de sistema virá a seguir, porque todos concordamos que o neoliberalismo, como existiu desde a década de 1990 até pelo menos 2016, mudou. Não preciso entrar em detalhes sobre guerras comerciais, abundantes sanções econômicas ou tarifas para falar sobre isso.

Mas o que fica muito claro no caso Trump – e penso que há semelhanças em outras áreas – é que as relações com outros países entraram em um modo distintamente mercantilista. O que é o liberalismo, ou mesmo o neoliberalismo? No quarto capítulo do livro, apresento quatro quadrantes. No nível nacional, significa livre concorrência, impostos baixos, pouca regulamentação e assim por diante. Na esfera social, defende liberdades negativas, ações afirmativas e a aceitação das diferenças sexuais e raciais. Internacionalmente, ele também tem duas faces. Em termos econômicos, defende o livre comércio, enquanto socialmente, busca o cosmopolitismo que, em sua forma mais pura, implicaria a livre circulação de trabalhadores e pessoas.

Analisemos esses quatro quadrantes. Em poucas palavras, o aspecto internacional desapareceu completamente. Trump simplesmente diz: “Não, isso não se aplica mais”. Internamente, as liberdades negativas e a aceitação da diversidade de pessoas e grupos também estão sob ataque. Assim, o que resta é apenas um quadrante, o liberalismo de mercado. E, nesse aspecto, vemos que Trump não está apenas implementando políticas neoliberais, mas as aprofundando. Cortes de impostos, menos regulamentação em geral, impostos mais baixos sobre o capital do que sobre o trabalho – ele está intensificando tudo isso.

Você baseia sua análise em tendências observáveis de longo prazo. No entanto, para mim, essa nova ordem mundial que você descreve parece especialmente frágil, vulnerável e potencialmente explosiva. Não se trata apenas de que, em um mundo de potências rivais, o capital ainda precisa se expandir (daí as constantes tensões geopolíticas e a beligerância). Talvez, com a exceção da China de Xi Jinping, parece determinado a exacerbar as crises sociais criadas pela globalização neoliberal. Isso nos leva de volta à ideia de Polanyi do “duplo movimento”. Os perdedores da globalização não têm nada a ganhar com esse retrocesso do neoliberalismo para dentro das fronteiras nacionais; pelo contrário, perderão ainda mais, já que o Estado de bem-estar social será reduzido em nome do rearmamento, e as redes de proteção social serão privatizadas e substituídas por uma desigualdade ainda maior. Você não acha que é apenas uma questão de tempo até que a sociedade reaja?

Observando as políticas de Trump, tendo a esperar um aumento das desigualdades nos Estados Unidos, já que essas políticas estão historicamente ligadas ao aumento da desigualdade.

Ao mesmo tempo, Trump é um demagogo. Tecnicamente, não pode concorrer a um terceiro mandato, mas ainda assim não acho que o movimento que ele iniciou vá desaparecer. Da mesma forma, na Europa, na França, que atualmente atravessa uma crise governamental, provavelmente haveria um candidato da Rassemblement National no poder se Macron renunciasse. O mesmo acontece na Grã-Bretanha, com o Reform UK. Na Alemanha, houve a ascensão do Alternativa para a Alemanha.

Portanto, não se trata de acidentes propriamente ditos. Sou cético quanto ao que eles podem obter. Mas ainda acho que há um elemento de elitismo, em que pessoas insatisfeitas com o status quo aceitariam qualquer coisa para manter as elites fora do poder, mesmo que as próprias elites não estejam fazendo um bom trabalho.

Uma omissão notável no livro é o papel das mudanças climáticas. Apesar de sua análise perspicaz, quase presume que o mundo continuará como se nada tivesse mudado em relação ao clima. No entanto, sabemos que isso está longe da verdade. Qual é a sua opinião a este respeito? Será que as mudanças climáticas não se tornarão um fator de estresse a mais em um mundo que já enfrenta crises múltiplas cada vez mais severas?

Esta resposta provavelmente não será muito popular, mas não acredito que as mudanças climáticas representem um perigo da mesma magnitude e importância que os outros fatores que mencionei.

Acredito nas mudanças climáticas e acredito que haverá consequências. Haverá partes do mundo em que será insuportável viver, mas há outras, especialmente a Rússia e o Canadá, que se beneficiarão delas. Em segundo lugar, acredito que teremos soluções tecnológicas.

Sou velho o suficiente para me lembrar da afirmação de que somos um planeta finito e que não há crescimento ilimitado em um planeta finito.

Podemos ser um planeta finito, mas nosso uso de recursos é determinado pela tecnologia. Discordo da visão de que existe uma barreira e que, uma vez atingida, o capitalismo entrará em colapso. Mesmo assim, que sistema o substituiria? Eu poderia entender uma redução na taxa de crescimento, já que as tecnologias verdes exigem maior desenvolvimento tecnológico para atingir retornos menores.

Sou bastante marxista do ponto de vista metodológico e não acredito que o capitalismo seja um modo natural de produção, o que deixa em aberto a possibilidade de que ele possa ser superado ou substituído por um sistema melhor. No entanto, não tenho um plano para outro sistema.

Você é um realista que não vê nenhuma alternativa ao capitalismo no horizonte a curto prazo. No entanto, isso não significa que você não seja profundamente crítico do capitalismo. Aliás, a conclusão de ‘A Grande Transformação Global’ é uma verdadeira denúncia da natureza voraz do capitalismo. Seria correto dizer que, embora você não o declare explicitamente, considera a guerra o resultado mais provável desta conjuntura histórica? Estaríamos caminhando sonâmbulos para mais uma tragédia?

Não tenho tanta certeza sobre a guerra. Quer dizer, você conhece a situação atual. Poderia acontecer agora mesmo.

Mas o que eu digo no último capítulo – que tem apenas algumas páginas, mas também argumento isso em Capitalismo sem rivais – é que o capitalismo é essencialmente um sistema imoral. Um sistema movido pelo interesse próprio e pelo lucro. Toda essa história de partes interessadas e acionistas, na minha opinião, é basicamente uma bobagem. Aliás, nesse ponto, concordo com Milton Friedman. A função de um capitalista como agente social não é se preocupar com o meio ambiente e com outras pessoas, mas com os acionistas e seu dinheiro. É um sistema que, como eu disse, é amoral e mercantiliza tudo.

Esse é outro ponto que enfatizo no livro. Existem atividades que nunca foram mercantilizadas. Provavelmente, toda a esfera doméstica das atividades foi mercantilizada. Provavelmente, cozinhar foi mercantilizado. Cuidar de cachorros foi mercantilizado. Cuidar de idosos foi mercantilizado. Até mesmo a morte foi mercantilizada. O quase desaparecimento da família é provavelmente a consequência final disso, no sentido de que a família é definida por atividades que, em princípio, não são comerciais.

Portanto, quando tudo é comercializado, não é de admirar que o resultado seja um mundo de solidão. A única citação que incluo nesse capítulo é de A sociedade do espetáculo (Contraponto), de Guy Debord. O livro foi escrito em 1968 e é uma obra fenomenal. É impressionante como ele previu isso. Nesse sentido, sou muito pessimista. É um pessimismo severo, mas em uma sociedade cada vez mais atomizada, creio que é para lá que estamos caminhando.

Leia mais