27 Agosto 2024
“Fiquei 50 dias em Gaza, como soldado, você olha para a direita, para a esquerda e só vê destruição, tudo está em ruínas, não há estradas, muitos hospitais e universidades foram destruídos. Não há palavras para explicar a quantidade de danos e isso não pode ser justificado. Acredito que o motivo pelo qual estou dando entrevistas agora, o motivo pelo qual estou falando publicamente é que quero pedir às pessoas que me ajudem a pressionar para assinar um acordo de cessar-fogo, para que possamos pôr fim a toda essa morte ao nosso redor”.
A reportagem é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 24-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando garoto, Yuval Green não tinha dúvidas. Seria um bom soldado, cumpriria seus deveres porque é assim que todo garoto ou garota israelenses cresce: aprendendo que uma das partes mais importantes da vida é fazer parte do exército. Seu pai era um paraquedista, foi oficial por muito tempo, e Yuval, como todo mundo, ouvia histórias sobre o exército desde criança. Por isso, com o tempo, não só quis ser um soldado de combate, mas também fazer parte de uma das unidades especiais. Primeiro foi para a Marinha e depois, como seu pai, para os paraquedistas. Depois, se tornou o paramédico de sua unidade.
No fim de junho, após 50 dias dentro de Gaza, Yuval Green decidiu deixar o exército.
Poucos dias depois, junto com outros 40 reservistas, assinou uma carta aberta declarando que não continuaria a prestar serviço nas operações em Rafah, na parte sul da Faixa de Gaza: “Os seis meses em que participamos do esforço bélico nos mostraram que a ação militar por si só não trará os reféns de volta para casa”, afirma a carta. A invasão de Rafah, além de colocar em perigo as nossas vidas e as vidas das pessoas inocentes em Rafah, não trará os reféns de volta vivos. Portanto, após a decisão de entrar em Rafah em vez de concluir um acordo sobre os reféns, nós, reservistas homens e mulheres, declaramos que a nossa consciência não nos permite colaborar para a perda da vida dos reféns e para o boicote de outro acordo”.
Os signatários sabem que sua posição é uma exceção no exército. Impopular antes de 7 de outubro, inadmissível hoje para grande parte da sociedade israelense.
Também o sabe Yuval Green, que, se for convocado novamente, não tem intenção de se apresentar para o serviço de reserva. Yuval não se importa com as sanções que poderá sofrer, porque, segundo ele, não está arriscando sua vida, mas seu status social, e “assim como me sacrifiquei pelo serviço militar, agora vou me sacrificar pela minha consciência”.
Yuval se encontrou com La Stampa na casa de seus pais em Kadima, uma cidade fundada na década de 1930 por colonos que haviam emigrado da Alemanha. Em casa estão suas irmãs, sua mãe e muitos livros, as prateleiras lotadas com textos sobre as tradições palestinas, sobre a história e os costumes da Palestina.
“Entrei para o exército acreditando que era a coisa certa a fazer. Foi somente depois que terminei meu serviço militar regular que comecei a questionar tudo, a me perguntar se fazer parte do estado de ocupação fosse realmente correto”. Ele começou a pensar sobre isso em Hebron, em árabe al-Khalil. Foi lá que ele começou a se dar conta de que servir o exército era completamente errado para ele. Foi lá que olhou a ocupação nos olhos. “Hebron é uma cidade ocupada, é totalmente palestina, com exceção de alguns bairros israelenses que estão apagando a vida das pessoas ao seu redor. Isso é ainda mais claro do que em outros lugares da Cisjordânia, porque você vê todos os dias como a segregação e os colonos afetam as vidas dos palestinos. E você não pode ignorar isso”. Ele, pelo menos, não pôde. Ele acha que foi mais gentil do que os outros com os palestinos que encontrava, mas “de qualquer forma, ainda assim fazia parte do sistema que estava tirando deles a terra”. Suas dúvidas só aumentavam, então, no final de setembro, Yuval Green decidiu escrever uma carta para seus amigos da unidade. Ele queria enviá-la em 8 de outubro, um dia após o fim da Festa de Simhat Torah. Então, o 7 de outubro, mudou tudo, colocou suas dúvidas de volta na gaveta e Yuval se colocou à disposição do exército. Ele pensou que era preciso estar presente, que era seu dever. E foi reconvocado, foi para um dos armazéns militares, equipou-se e se juntou à sua unidade novamente. Treinou por alguns dias e, no final de novembro, entrou em Gaza.
Quando a ofensiva militar começou, Yuval Green pensava que a equação era simples: os reféns devem ser libertados e, portanto, tudo será muito rápido. Depois percebeu que havia calculado tudo errado. Os tempos e as intenções do governo. A linha vermelha chegou durante sua missão em Khan Younis, quando seu comandante pediu aos soldados que incendiassem uma moradia civil. Green perguntou o motivo dessa ordem, mas a resposta não foi suficiente: “É tudo uma questão de como as coisas parecem do ponto de vista israelense. Israel sempre tenta explicar suas ações dizendo que tudo o que faz em Gaza é para fins militares”.
Green não entendia o motivo operacional e estratégico daquela ordem. Perguntou se havia provas de que a casa pertencesse ao Hamas, o comandante respondeu que era preciso se certificar de que não havia ficado nenhum equipamento militar para trás, Yuval respondeu que esse não era um motivo razoável para queimar uma casa “basicamente, o que o comandante me disse foi que estávamos queimando toda casa ou destruindo toda casa. Eu disse ‘isso é loucura’, estamos entrando a tantas casas, como podemos destruir as casas de tantas pessoas?”
Naquele momento, ele entendeu que era “óbvio” para seu comandante colocar fogo naquele prédio. “Acredito que esse é um exemplo de como Israel justifica as suas ações com motivações militares. Muitas vezes essas motivações são corretas, estão tentando atingir determinados objetivos, mas muitas vezes não se sabe se essas motivações são realmente de caráter militar ou se são motivadas por vingança ou por motivações brutalmente ideológicas”. Quando conversou com seu comandante, Yuval Green pensou que as motivações que ele lhe dava tinham mais a ver com vingança do que com a estratégia militar. A conduta dos soldados também reforçou sua escolha. Ele via pessoas ao seu redor deixando pichações, insultos sobre os escombros das casas dos moradores da Gaza, infligir danos desnecessários a bens e casas, levar embora “souvenires das casas árabes”.
Tudo isso era inaceitável para ele, que se opunha constantemente. Portanto, ninguém na sua unidade ficou surpreso quando Yuval foi embora. Da mesma forma, ele não ficou surpreso ao ver o que estava acontecendo com a sociedade israelense depois de 7 de outubro, porque eram sentimentos que vinham fervilhando há muito tempo. Todos os seus amigos estavam reagindo de forma horrível, demonizando os palestinos, afirmando que a modalidade da ofensiva era a única possível porque não existem inocentes em Gaza. Que a solução era, em resumo, matar todos eles. Coisas que ele nunca havia ouvido antes, não dessa forma, pública e descaradamente, opiniões que antes eram demasiado extremas de repente se tornaram comuns, normais. Ele ficou chocado, mas não surpreso, porque muitas pessoas pensavam, mesmo antes de 7 de outubro, que os palestinos deveriam ser expulsos de Gaza. Só que agora começavam a dizer isso publicamente:
“Quando as pessoas dizem que não há inocentes em Gaza, acho que seria correto dizer que não existem inocentes em todo o conflito. Se você for em uma casa israelense e abrir um guarda-roupa, encontrará um uniforme da IDF, o exército israelense está tentando proteger o país dos ataques, mas, ao mesmo tempo, fazemos parte do sistema que está tentando ocupar a Palestina.
Estamos todos envolvidos e não podemos continuar com a desumanização das pessoas de Gaza.
Elas têm o direito de viver exatamente como nós. E qualquer um que tente minar esse direito está prejudicando a si mesmo e às pessoas que estão tentando encontrar paz nesse conflito. Está tudo muito claro: se não sairmos de Gaza, muito mais pessoas morrerão. E isso simplesmente cria as próximas gerações que ficarão furiosas com Israel. Não estamos fazendo um bem para nós mesmos e não estamos fazendo um bem para os palestinos”.
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Eu, objetor israelense: “disseram-me para queimar as casas dos civis palestinos. Esta guerra é uma loucura” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU