03 Abril 2024
A nível hierárquico e popular, a Igreja Católica vê como a crise está a corroer os alicerces da sociedade, mas também reconhece os níveis de apoio que o partido no poder continua a manter. O que fazer entre a reclamação e a falta de resposta do governo?
O comentário é do jornalista e pesquisador em comunicação argentino Washington Uranga, em artigo publicado por Página 12, 02-04-2024.
“No dia em que os nossos corações endurecerem tanto que não tenhamos sensibilidade por estes irmãos e irmãs que ficam sem trabalho, nesse dia não poderemos chamar-nos cristãos”, afirmou Oscar Ojea, Presidente da Conferência Episcopal da Argentina, na sua mensagem de Páscoa. O bispo aludiu diretamente a quem se dirige às autoridades religiosas em busca de contenção, situação que se tem multiplicado por todo o país desde o início do ano e que a hierarquia eclesiástica registra a cada dia com maior intensidade. A pressão é maior nas cidades mais pequenas e no interior do país onde os bispos estão mais próximos da população. Outros membros da hierarquia estão mais próximos dos sofrimentos que as pessoas sofrem, seja por uma vocação pessoal, seja pela responsabilidade que têm nas questões sociais no âmbito das suas funções no episcopado.
A preocupação não é apenas com a hierarquia eclesiástica; também entre sacerdotes, leigos e mulheres. As paróquias e capelas são um termômetro sensível – sempre o foram – da situação social, dos sofrimentos não só dos seus paroquianos mas também daqueles que, sem serem católicos nem identificados com o catolicismo, encontram nestas comunidades um espaço de contenção. A estrutura capilar da Igreja faz com que esta preocupação seja transferida vertical e horizontalmente para todo o corpo.
A Comissão Nacional de Justiça e Paz refletiu isto no documento de 20 de março no qual também denunciou “a insensibilidade social, a cultura do ódio e o individualismo”. Não são os mesmos termos, mas há uma perspectiva semelhante à agora expressa por Ojea. Justiça e Paz fez um diagnóstico muito duro dos danos sociais que estão sendo causados, mas também alertou sobre o que também é recebido como mensagem na base eclesial: “reflete o apoio à atual gestão dos setores de baixa renda, ou mesmo dos afetados.” diretamente pela inflação e recessão além do apoio expresso dos setores com maiores recursos, liderados pelas câmaras das grandes empresas.” São duas faces de uma mesma realidade alertadas pela Igreja.
Para o arcebispo de Buenos Aires, Jorge García Cuerva, “a Igreja deve estar ao lado dos pobres e acompanhá-los. Os políticos terão de pensar em políticas econômicas juntamente com economistas que conheçam o assunto.” E enviou uma mensagem à liderança: “Devemos começar a mudar os nossos próprios corações e dizer ‘Eu me uno aos diferentes porque, em última análise, eles também querem um mundo melhor’”.
O bispo Eduardo García, de San Justo, falou sobre a situação social, mas particularmente em relação à violência. “A comunidade sofre uma nova provação com novos Herodes que buscam o próprio interesse unidos aos novos Pilatos que olham para o lado e lavam as mãos.” E ele se perguntou “Quanto tempo?” Porque "se não houver respostas que abram horizontes, corremos o risco de que a comunidade, que as famílias de todos aqueles que procuram uma vida boa e digna, decidam fazer justiça com as próprias mãos, e que o cansaço dos bons levará a uma guerra entre irmãos", uma guerra entre os pobres." Essa mesma questão paira na atmosfera da Igreja em todo o país.
A relação entre a hierarquia eclesiástica e Milei não começou da melhor forma. A Comissão Executiva do episcopado solicitou uma audiência ao Presidente em dezembro, assim que este assumiu o seu mandato. A reunião foi adiada com diversas desculpas formais do governo. Sem diálogo direto, no dia 6 de fevereiro, a Comissão Executiva do episcopado alertou em comunicado que “a alimentação não pode ser uma variável de ajuste”. Somente no dia 12 de março os bispos foram recebidos por Milei na Casa Rosada. Ambas as partes apontam a “cordialidade” do diálogo. Os bispos manifestaram a sua “preocupação com a situação econômica, especialmente o que tem a ver com a contenção dos setores vulneráveis que sofrem”. A Comissão Executiva explicou ao Presidente o que os bispos de todo o país contribuíram naqueles mesmos dias para a Comissão Permanente. O Presidente ouviu, apresentou os seus conhecidos argumentos e remeteu as reclamações ao Ministro do Capital Humano. Os bispos saíram da reunião convencidos de que, além da cordialidade, nada foi feito em termos operacionais para a resolução dos problemas.
Antes, algumas dioceses assumiam a liderança da reivindicação através das suas comissões de Pastoral Social. Foi o caso de Merlo-Moreno e Quilmes. Este último denunciando diretamente “um novo plano sistemático”. Catamarca juntou-se a nós para alertar que “o ‘déficit zero’ não deve ser o princípio organizador e ordenador da economia da sociedade, mas sim as necessidades básicas das pessoas, especialmente as mais desamparadas e frágeis”.
De outro local da mesma Igreja e por ocasião da celebração litúrgica do Domingo de Ramos, os sacerdotes da Opção pelos Pobres alertaram que “a paixão também acontece hoje” e acusaram os responsáveis de “negacionistas da humanidade”. No dia 24 de março, esse mesmo grupo recordou os mártires cristãos na Plaza de Mayo e na Quinta-feira Santa estiveram presentes em solidariedade aos trabalhadores de Telam. Os padres celebraram ali a Eucaristia e, seguindo o rito previsto para aquela data, lavaram os pés dos que estavam acampados para exigir a manutenção dos seus empregos.
Nada disto está desligado das intervenções na Argentina que Francisco faz a partir de Roma. Bergoglio recebe informação permanente sobre o que acontece no país e se expressa em harmonia com a Igreja local quando considera apropriado.
O que foi dito acima não dá conta de todas as manifestações. Há mais pessoas das fileiras católicas – também de um setor das comunidades evangélicas – que assumem o desconforto e alertam sobre a gravidade da crise. Registam também que o governo continua a manter o apoio, em parte, dos níveis médio e popular.
Tal como acontece com outros atores sociais da Igreja, também existem incertezas sobre o que fazer e o que promover, além de manter a solidariedade com as vítimas. Nos níveis hierárquicos, as palavras são utilizadas com cuidado para não romper possíveis pontes de diálogo, reservando-se assim a possibilidade de atuar como mediadores em caso de agravamento da situação. Na base dá-se menos atenção a este ponto e optam por uma posição mais “profética” de denúncia da violação de direitos, ao mesmo tempo que exigem que os bispos se expressem em linhas semelhantes.
Para ambos, permanece a questão: por quanto tempo?
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A igreja, a crise social na Argentina e a falta de respostas do governo. Artigo de Washington Uranga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU