04 Dezembro 2023
“Aquela velha frase que costumava ser colocada na boca dos assaltantes de carruagens, em lugares remotos: “sua bolsa ou sua vida”, não vale mais. Eles vêm por ambas. Não tanto porque a vida é mais ou menos importante para eles como a bolsa, mas porque a simples existência da vida humana está criando problemas para os mais poderosos, para esse 1% mais rico”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 01-12-2023. A tradução é do Cepat.
A cúpula do poder e da riqueza do capitalismo, composta por cerca de 70 a 80 milhões de pessoas, há muito tempo já perdeu qualquer escrúpulo, colocando de lado qualquer tentação humanitária. Estão dispostos a massacrar meio mundo para seguirem bem no topo.
As guerras das últimas décadas foram todas contra os povos. Da “guerra contra as drogas” na América Latina às guerras no Iêmen, Líbia, Síria, Afeganistão e as diversas registradas na África, com pouca cobertura e menor interesse midiático.
Alguns analistas sustentam que, neste momento, registram-se “cinco genocídios simultâneos no mundo”: na região de Darfur, no Sudão, desde 2003; em Tigray, Etiópia; no noroeste da República Democrática do Congo, e o perpetrado pelo Azerbaijão contra o povo armênio, em Nagorno-Karabakh.
A agressão contra a população da Faixa de Gaza é o último episódio de uma série quase ininterrupta de violências contra os povos, com o descarado propósito de deslocar à força milhões de pessoas.
A acumulação por desapropriação/quarta guerra mundial contra os povos começou ocupando territórios e expulsando a população que os habitava para transformar a vida em mercadoria. Isso foi analisado e denunciado em diversas ocasiões. Agora, fica evidente que investem, inclusive, sobre as populações.
Não se conformam mais em deslocá-las. Agora, trata-se de eliminar os povos que incomodam, que não se deixam, que se apegam às suas terras e territórios, que querem continuar vivendo como sempre viveram: com a terra e seus cultivos, na simplicidade da vida camponesa.
De fato, as pessoas habitam territórios que o capital busca capturar, seja pela biodiversidade que contêm, pela existência de riquezas minerais e petróleo no subsolo, pela simples abundância de água ou por qualquer circunstância que torne esses espaços possíveis fontes de lucros.
Aquela velha frase que costumava ser colocada na boca dos assaltantes de carruagens, em lugares remotos: “sua bolsa ou sua vida”, não vale mais. Eles vêm por ambas. Não tanto porque a vida é mais ou menos importante para eles como a bolsa, mas porque a simples existência da vida humana está criando problemas para os mais poderosos, para esse 1% mais rico.
Alberto Morlachetti foi o criador do coletivo Pelota de Trapo, na zona sul do subúrbio de Buenos Aires. Em 2009, sob um governo progressista, escreveu um artigo intitulado “Mãe, cuide do seu filho: eles vêm por ele”. “Esses meninos que lutam por suas vidas ameaçadas pelos dias que terminam e não se alimentam, conhecem a resistência”, escreveu, indignado com a violência sistemática sofrida por eles, com a indiferença da sociedade e das autoridades. Hoje, as coisas pioraram exponencialmente.
Vivemos uma guerra civil contra crianças pobres e de cor da terra. Porque são os resistentes do amanhã, aqueles que podem colocar o sistema em dificuldades. As crianças não são apenas o futuro, a existência delas também nos dá esperança. Sem crianças, o futuro está cancelado. Por isso, o Banco Mundial tem se empenhado em combater (e até criminalizar) a mal chamada “gravidez na adolescência” e em reduzir as taxas de natalidade dos setores populares.
As linguagens começam a revelar as intenções profundas. Com poucos dias de diferença, o ex-presidente argentino Mauricio Macri, homem forte do futuro governo de Javier Milei, referiu-se aos piqueteiros como “orcs”, enquanto um ministro israelense considera os palestinos “animais humanos”.
Para poder eliminar um setor da sociedade, primeiro é preciso despojá-lo de sua humanidade, então, pode ser assassinado sem cometer crime, como destacou Giorgio Agamben.
Traçada a passos largos, a história do capitalismo tem sido, desde o cercamento dos campos na Inglaterra, a partir de 1600 aproximadamente, a da destruição das pradarias, florestas e terras comuns para criar parcelas individuais, expropriando os camponeses para forçá-los a trabalhar nas fábricas. O deslocamento das populações foi acelerado com a Conquista da América e, mais recentemente, com o extrativismo.
O sistema aprendeu de suas dificuldades e de nossas resistências. Sua aposta é que dentro de algumas décadas já não existam os povos originários e os camponeses que colocam tantos obstáculos à sua acumulação. Sabem que após cinco séculos, os povos permanecem aí. E esse “problema” não podem extirpar matando em massa, somente.
Por isso, o ataque às crianças em todas as partes. Não são por acaso a imensa maioria dos pobres do mundo? Isso não é um acaso qualquer. Se o alvo são povos e setores inteiros da sociedade, a melhor forma de esmagá-los é fazendo as crianças desaparecerem de diferentes modos, como vem acontecendo em Gaza.
Devemos defendê-los como uma forma de sobrevivência.
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Os de cima vêm com tudo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU