10 Março 2023
"O Norte de África, como zona tampão para a Europa em termos de imigração, resulta em efeitos colaterais que colocam as populações à prova. E por enquanto a voz que se impõe é aquela do racismo que fingimos não ver", escreve Karima Moual, em artigo publicado por La Repubblica, 09-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O presidente da Tunísia, Kais Saied, em discurso ao conselho de segurança sobre os imigrantes subsaarianos no país, além de descrevê-los como fonte de crimes e violências, foi mais longe e, como qualquer líder de extrema-direita, para tornar sua mensagem mais poderosa contra os subsaarianos, agora indesejados em Túnis, falou de um plano de "substituição étnica" evocando um “plano criminoso para alterar a composição demográfica da Tunísia, substituindo uma população árabe e muçulmana com uma negra". Saied também mencionou a existência de organizações que recebem dinheiro do exterior para participar dessa empreitada de colonização direcionada, segundo ele, a ofuscar a identidade árabe-muçulmana.
São palavras que geraram indignação e aumentaram os episódios de racismo e discriminação já denunciados no país. De Túnis foi desencadeada uma fuga, com viagens organizadas pelas embaixadas dos países de origem como Guiné e Costa do Marfim. A ferida é tão profunda que no Sul estão se preparando para boicotar as mercadorias da Tunísia, além das relações econômicas, e o Banco Mundial suspendeu as negociações com o país, já inadimplente.
Mas o que se esconde por trás das palavras de um presidente árabe, muçulmano, conservador e tão populista como Saied?
Infelizmente existe uma verdade amarga, que poucos conhecem, e talvez, com essas declarações, finalmente a campainha de alarme chegará mais longe, sem ficar restrita nas fronteiras africanas. O racismo, o preconceito, a violência e a conspiração que carregam as palavras de Saied são uma onda crescente, com o fluxo de imigrantes subsaarianos fugindo de várias crises para se aproximar da Europa, mas que acabam presos em países do norte africano, como Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito. Uma margem sul do Mediterrâneo que foi encarregada pela Europa para servir de policial para a repulsão dos migrantes.
O resultado é uma bomba social que abriga um sentimento vivo, o do racismo dos árabes em relação aos negros. Se existe um racismo tão sorrateiro, violento e despudorado que não conhece vergonha contra os negros, aliás, que ainda hoje se apresenta com orgulho, este com certeza se encontra entre os próprios africanos.
Justamente nestes últimos dias estourou a polêmica sobre o show de Kevin Hart, que deveria acontecer no Cairo, mas foi cancelado. A razão? As intenções "afrocêntricas" do comediante afro-americano, que havia lembrado (ao público estadunidense) que alguns faraós eram negros. Foi uma bomba, petições e apelos para mantê-lo afastado. É brincadeira? Os ancestrais dos egípcios com pele negra? A verdade é que a África está dividida em pelo menos duas partes distintas. A África do Norte, árabe-muçulmana, de pele mais clara, e aquela do Sul, subsaariana, de pele negra. Não há o que fazer, embora a história da África seja feita de entrelaçamentos, o racismo, o ódio e o preconceito contra quem tem a pele negra continuam vivos e intactos. Um sentimento revigorado pelo crescimento dos fluxos.
É claro que todos os países do Magrebe adotaram políticas de integração tentando tamponar aquele abscesso que todos os árabes conhecem bem. O Marrocos, que mais do que qualquer outro tem uma presença significativa de subsaarianos, e que melhor do que outros tem estabelecido acordos com os países de origem, com regularizações e uma política de convivência, no entanto mostra suas rachaduras.
Magrebe, a parte ocidental do mundo árabe. (Foto: Wikipedia)
Em Casablanca, por exemplo, no bairro de Ouled Ziane, os subsaarianos vivem na degradação e denunciam violências e racismo. Em Tânger, sua presença, esperando para passar para a Espanha, se transformou em confrontos armados como no verão passado com centenas de migrantes que tentaram forçar a fronteira de Ceuta e Melilha. Em suma, o Norte de África, como zona tampão para a Europa em termos de imigração, resulta em efeitos colaterais que colocam as populações à prova. E por enquanto a voz que se impõe é aquela do racismo que fingimos não ver.
Mapa do Marrocos, com destaque em Casablanca. (Foto: Blog de Geografia | Professor Gabriel Egiio do Carmo)
Saied sabia que estava falando para um público que concordava com ele. As mesmas palavras estão contidas em vídeos e posts nas redes sociais, onde fervilham grupos racistas contra o novo monstro: “O negro. Os imigrantes subsaarianos, que são demais. Eles são uma ameaça, diferentes de nós. Primeiro nós, tunisianos, marroquinos, argelinos, egípcios…”.
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Quando a África se descobre racista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU