28 Junho 2022
"Não é normal que essas mortes aconteçam. Elas não são alheias. A dura repressão das forças policiais que as provocam não é normal. Nem pode ser tachada apenas como uma ação excessiva, mas temporária para virar a página em breve. A causa da morte é que houve uma avalanche. E o mais forte caiu sobre o mais fraco. É válido como metáfora para a explicação profunda desta tragédia?", escreve o jesuíta José Luis Pinilla Martin, em artigo publicado por Religión Digital, 27-06-2022.
São muitos os dados, as informações, os ecos que se produzem nestes dias sobre os gravíssimos acontecimentos ocorridos no posto fronteiriço da cerca de Melilla em que os mortos já chegam às dezenas e os feridos às centenas. Não quero que seja mais um episódio na gestão dos fluxos migratórios. Não. Nem é normal que essas mortes aconteçam. Eles não são estranhos. Tampouco é normal a dura repressão das forças policiais que os provocam. Tampouco pode ser tachado apenas como um desempenho excessivo, mas de passagem para virar a página em breve. E assim regressar às relações entre Espanha e Marrocos ligadas à geopolítica com a Argélia e o Magrebe que se redireciona como se nada tivesse acontecido. Nós apenas lamentamos suas mortes? ¡oh! Temos convidados em casa! É por isso que vamos enterrar em breve os cadáveres e as memórias. E no passado acentuássemos a violência dos migrantes e não o desespero de milhões de pessoas que batem à nossa porta. Deus os ajude.
Mapa das fronteiras de Marrocos e Espanha, ao norte da África. Os enclaves espanhois Ceuta e Melilla, fazem fronteira com Tânger e Nador, respectivamente.
Entre os pronunciamentos, há notas muito fortes de muitas instituições eclesiais que respondem, (cada uma de sua esfera e com acentos variados), ao mandato evangélico de defender essas vidas tão tragicamente ceifadas por jovens que procuram precisamente isso: a vida. E liberdade, abrigo, teto, terra e pão. Nessas vozes e no nosso caso e independentemente de quem se importe, (partidos políticos incluídos) a ideologia nunca estará acima do evangelho, nem medirá suas palavras para não aprofundar muito. Dessa forma, entram na corrente da busca pela dignidade que tantas pessoas, organizações sociais e outros grupos civis demandam. Como faríamos em circunstâncias semelhantes? Nenhuma ideologia pode ser imposta às boas novas de Jesus ou à forma como ele as transmitiu.
Por isso procuro nestas cartas apenas o reflexo de um olhar. A produzida pelo amontoado de cadáveres humanos empilhados, enrolados, amontoados nas sarjetas da cerca e da vida. Talvez a modéstia de certas redes e mídias alertasse sobre a insolência dessa visão antes de divulgar essas imagens.
Eu olhei para eles com cuidado, lentamente. E não por atitude mórbida. Devagar. Porque lendo as informações sobre a tragédia, descobri que uma fonte oficial familiarizada com os eventos disse a um jornal sob condição de anonimato: “A causa da morte é que houve uma avalanche. E o mais forte caiu sobre o mais fraco”. É válido como metáfora para a explicação profunda desta tragédia?
Olhares rápidos para a realidade são facilmente excitantes. Ver é relativamente fácil; é um fenômeno biológico. Mas é preciso olhar, contemplar devagar, deixar afundar o cruzamento do que vê com o que sente, consentindo com o que acontece com o outro
Porque muitos daqueles que alcançaram aquela cerca, e aquelas mortes (nem tudo se resume às milhares de mortes injustas e cruéis e aos assassinatos na guerra na Ucrânia) também esquadrinharam outros horizontes a caminho das terras subsaarianas de onde vieram. Suas vidas são medidas não apenas pela idade, mas também pelos milhares de quilômetros e dificuldades que sofrem em cada pegada que deixam nas estradas. Milhares de passos para a luz ou para o silêncio dos mil sóis e luas que servem de testemunhas nuas. Como suas vidas nuas, empobrecidas, estupradas e violadas, famintas por dignidade e pão. Assim, sem nada, eles se deixam envolver por outros falsos sonhos. Mesmo os sonhos de plástico colorido oferecidos pela nossa Europa acastelada hoje, incapaz de ir além do "eu" (palavra que, aliás, não é rezada no Pai Nosso) e que esperamos possa se desdobrar em um "nós maior” (Papa Francisco dixit)
Já o repeti muitas vezes: educar o olhar sobre a vida dos pobres – neste caso, dos migrantes – é construir a vida sobre o “princípio-misericórdia”. Jon Sobrino o afirma. Isso não diz respeito apenas às pessoas na rua. Mas sobretudo aos administradores dos negócios públicos. Desde o primeiro - aquele que comanda - até o último, aquele que obedece. É uma habilidade necessária para construir interpretações mais ricas da realidade. E assim buscar o que é verdadeiro, deixando-nos levar pelas brasas que se instalam no coração. Deixar-se ir é ver. Aprofundar-se é um exercício que nos torna mais humanos e melhores. Somos o que somos capazes de olhar profundamente. Nosso olhar pode reter o sedimento e a passagem pela existência desses "náufragos fugindo da vida impossível" - como diria Galeano - ou "Ninguém sai de sua casa, / a menos que sua casa seja a boca de um tubarão" como se dizia a refugiada somali, Warsan Shire.
É importante parar e empoleirar-se em um cotidiano conquistado e permanente. Contemplativos, em suma! Também contemplativa diante da pilha de cadáveres empilhados, esmagados, seminus, sem olhar, que tentavam pular a cerca... sem papéis. E sem possibilidades reais de solicitar o refúgio a que têm direito! E que nenhum poder político pode negar.
A quietude e a contemplação favorecem a interiorização misericordiosa do sofrimento alheio. Que penetre em minhas entranhas. Eu faço isso e de alguma forma isso me machuca. A linguagem da misericórdia pode permanecer em fazer "obras de misericórdia" uma vez ou outra, (Isso também!), mas sem abordar as causas estruturais específicas do sofrimento e da injustiça, pode ser entendido de forma paternalista, sem reagir a uma sociedade que funciona impiedosamente. Para evitar equívocos e reducionismos, Jon Sobrino falou do já mencionado "princípio-misericórdia", ou seja, de um princípio interno que está na origem de nossas ações, que permanece sempre presente e atuante em nós, também desde e para a dimensão política e que imprime uma direção a todo o nosso ser e que configura todo o nosso estilo de viver.
Por isso. Pare amigo nessas cenas. Há muitos dados em muitos lugares. Eu aviso sobre as imagens. Não as esquive. Eles buscam a Justiça. E se puder, ouça o que aqueles que superaram o transe gritando “Boza” “Libertad”. Justiça e liberdade. Gravado nos olhos de cadáveres que não vêem mais. Justiça e Liberdade que, como diz Eduardo Galeano em "O Direito de Sonhar", "são como duas irmãs siamesas condenadas a viver separadas" mas que "voltarão a se reunir, juntinhas, ombro a ombro".
Não se esquive dessa(s) imagem(ns). Eles me levaram de volta ao que Santo Inácio de Loyola me ensinou e que muitas vezes me esquivo de fazer na minha vida cristã. Com minhas feridas também - como as suas - que quero acabar em cicatrizes. Ou seja, à identificação com o Cristo pobre e humilhado dos Exercícios. Que hoje contemplo no crucificado de um lado e do outro da cerca. Para amá-lo e segui-lo mais. Por mim e por todos os feridos que deixam suas vidas em frangalhos em tantas cercas da vida.
A história se repete. O que foi dito parágrafos atrás: “A causa da morte é que houve uma avalanche. E o mais forte caiu sobre o mais fraco”.
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As violências contra os migrantes na fronteira Espanha-Marrocos. Forte e fraco em ambos os lados da cerca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU