28 Junho 2022
“Ninguém questiona que não haja nada de estranho ou de absurdo em demonstrar ser contra o controle dos corpos nos Estados Unidos da América, e ao mesmo tempo demonstrar ser absolutamente indiferente ao controle dos corpos pelo governo da Espanha na fronteira sul. Talvez a diferença esteja, como sempre, em que os corpos da fronteira sul são negros”, escreve Desirée Bela-Lobedde, comunicadora, afrofeminista, em artigo publicado por Público, 27-06-2022. A tradução é do Cepat.
No último dia 24 de junho, ocorreu outra tragédia na cerca de Melilla. Após a intervenção das forças e órgãos de segurança marroquinos, em território espanhol, a operação policial resultou na morte de ao menos trinta e sete pessoas negras africanas que tentavam pular a cerca, embora após a publicação deste artigo o número possa ser maior, uma vez que muitas outras ficaram em estado grave.
Vimos algumas declarações do presidente do governo mais progressista da história da Espanha falando em “pressão migratória”, falando do Sahel e da África subsaariana como se fossem a mesma coisa. Deveria ter vergonha de acreditar que o Sahel e a mal denominada África subsaariana são a mesma coisa. Ouvimos o Sr. Pedro Sánchez falar em “integridade territorial”. Também o ouvimos defender a atuação das forças e órgãos de segurança marroquinos e um acordo de migração entre os dois países que é a causa de morte para muitas pessoas africanas.
Como sempre e mais uma vez, ouvimos falar de “assalto violento bem organizado e bem efetivado”, uma expressão que leva à criminalização das pessoas africanas com um objetivo tramado e muito claro: justificar o uso da violência e da força desmedida contra elas.
A partir dessa criminalização, fala-se dos níveis de violência empregados pelos migrantes, como se a violência exercida por ambas as partes fosse comparável. Os migrantes, pois não chegam à categoria de pessoas. Tirar delas o rótulo de migrantes e falar de pessoas seria humanizá-las, e isso não interessa.
O que interessa - aos governos e à maioria dos meios de comunicação a favor do alarme social e do medo - é continuar associando as pessoas migrantes negras africanas à criminalidade, às invasões, com as ameaças à integridade. Ancorá-las na categoria de migrantes perpetua a desumanização. E a desumanização garante a indiferença.
Este é o mecanismo usado para que, quando o público espanhol veja em suas telas as imagens de todas aquelas pessoas - insisto: pessoas, não migrantes – agonizando ou já inertes, enquanto a polícia segue maltratando seus corpos, não haja alvoroço, não haja comoção, nem indignação. Que ninguém sinta a raiva lhe queimando por dentro diante de tanta violência.
De fato, o público espanhol já está insensibilizado: a pornografia da morte de corpos negros foi tão promovida que, à força de vê-los sem vida, poucas pessoas reagem. Assim, ninguém sai às ruas para pedir explicações do porquê os direitos humanos dessas pessoas estão sendo sistematicamente violados. Pessoas, não migrantes, insisto.
O trabalho coletivo de desumanização está bem consolidado. Não são pessoas, são migrantes. Vêm da África para invadir, para ameaçar os valores desta Europa fortaleza que se construiu e progrediu roubando e espoliando suas terras e escravizando seus habitantes. São criminosos, são feras selvagens e violentas: a propaganda já se encarregou de retratá-las assim, despersonalizando-as para justificar o tratamento violento e desumanizado que se exerce sobre elas.
São outra categoria de pessoas de menor valor. Não são loiras de olhos azuis. Não são católicas, nem europeias. Por isso não merecem a mobilização social, nem a acolhida imediata. Por isso merecem a morte e um tratamento indigno e vexatório. Por isso não merecem rotas seguras para migrar e chegar à Europa. Por isso não merecem medidas imediatas para a regularização de sua situação. Por isso merecem o genocídio invisível e a morte.
O mecanismo de criminalização utilizado pelo governo mais progressista da Espanha e pelos meios de comunicação para justificar as políticas migratórias de morte funciona perfeitamente. As imagens deste fim de semana, mostrando a polícia marroquina amontoando corpos negros e deixando-os agonizar até a morte, ignorando o dever de socorro, passaram despercebidas pela maioria do público espanhol, que olhava para os Estados Unidos para demonstrar sua indignação e sua raiva pela revogação do direito ao aborto. Para isso, sim, direcionaram as condolências, a raiva e as demonstrações de apoio.
Novamente e como sempre, estamos ancorados na hierarquia das vidas de primeira e as vidas de segunda. A maioria silenciosa é capaz de alguns exercícios incríveis de dissociação. Ninguém questiona que não haja nada de estranho ou de absurdo em demonstrar ser contra o controle dos corpos nos Estados Unidos da América, e ao mesmo tempo demonstrar ser absolutamente indiferente ao controle dos corpos pelo governo da Espanha na fronteira sul. Talvez a diferença esteja, como sempre, em que os corpos da fronteira sul são negros.
Parece que vidas negras só importam se são estadunidenses. O quadradinho preto e as hashtags não são merecidos pelas vidas negras africanas. Neste fim de semana, foram organizadas concentrações nas redes sociais para expressar rejeição às políticas e acordos sobre migração e morte dos governos espanhol e marroquino. Não foi nenhuma surpresa ver que todas as pessoas escandalizadas, que há vários dias denunciam a perda de direitos humanos que a revogação da sentença de Roe contra Wade implica, ignoraram as vinte e sete mortes em Melilla, assim como fizeram em relação à tragédia na praia Tarajal. E assim sempre.
Mais uma vez, a desumanização e criminalização dessas pessoas faz com que o cidadão comum acredite que algo de merecido existe. Compram os discursos propagandísticos e trapaceiros de “que venham, mas que venham de forma legal. Porque, claro, se não vierem de forma legal, é normal que isso aconteça com elas”, encoraja-se a dizer algum presunçoso, e os presentes aceitam em silêncio mostrando sua concordância com um discurso racista amplamente aceito. Parece que aqueles que vêm de forma ilegal não tem direito à vida.
Está ocorrendo um genocídio invisível diante de nosso olhar desatento. Na verdade, não é um genocídio invisível, é um genocídio invisibilizado. E a maioria da população olha para o outro lado, guardando um silêncio cúmplice.
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Espanha. O genocídio invisível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU