10 Agosto 2023
O grupo manifesta um conservadorismo que é total e verdadeiramente desta época.
O comentário é da historiadora Daniele Palmer, em artigo publicado por La Croix International, 07-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Descrever o Opus Dei como mundano provavelmente pareceria estranho à maioria dos leitores, senão até perverso. Afinal, o grupo está envolvido em polêmicas desde seu nascimento, atraindo críticas por suas práticas sigilosas, o conluio de seus membros com a ditadura de Francisco Franco na Espanha e suas crenças muitas vezes rigidamente conservadoras.
Mas o significado mais literal de “mundano” é “deste mundo”; e é assim que o Opus Dei entende a si mesmo e é assim que ele chegou a definir seu carisma. A chave para entender esse grupo é a secularidade comum.
Ao longo da história do cristianismo, a tensão entre “este mundo” e o “outro mundo” traçou muitos limites e definiu inúmeras identidades. Para alguém como Agostinho de Hipona, os dois polos eram bem claros: o reino do transcendente é a Cidade de Deus, a terra da promessa de eternidade; e o secular – saeculum – é o tempo entre agora e a Segunda Vinda, antes que o trigo seja separado do joio. Ser conscientemente secular ou mundano é considerar-se total e verdadeiramente desta era.
E é assim que o Opus Dei se vê. Nos dois volumes intitulados “Opus Dei: A History (1928-2016)”, dois antigos membros do grupo, José Luis González-Gullón e John F. Coverdale, tentam definir as qualidades específicas que deram forma ao Opus Dei. E o que eles perceberam, a quase um século desde que o grupo foi fundado, é que ele está inextricavelmente ligado à ordinariedade desta época, a “uma mensagem que une o humano e o religioso”.
Opus Dei: A History (1928-2016), de John F. Coverdale e José Luis González Gullón (Scepter, 2023).
O Opus Dei foi fundado pelo padre Josemaría Escrivá de Balaguer na Espanha em 1928. Durante a Guerra Civil Espanhola, seus membros consolidaram sua presença no país e fortaleceram seu domínio sobre seus círculos culturais, políticos e profissionais. Poucos leitores ignorarão a história mais do que ligeiramente incomum do Opus Dei.
Como uma novidade na Igreja, ele começou a ganhar a aprovação de algumas figuras-chave, especialmente dos papas Pio XII e João Paulo II. Isso permitiu que ele crescesse como uma pequena associação de leigos católicos espanhóis e um punhado de padres até se tornar uma “prelazia pessoal” de 100 mil membros – um status especial no direito canônico que lhe concede jurisdição sobre todos seus membros fora do sistema geográfico diocesano.
A rápida ascensão do Opus Dei tem sido vista com desconfiança dentro e também fora da Igreja. Seus membros são conhecidos por serem fervorosamente francos e abertos sobre suas posições em questões sociais contestadas como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo (posições, deve-se dizer, que muitos católicos comuns fora do Opus Dei compartilham).
Sua crença na rígida separação entre os papéis de homens e mulheres – em que as últimas são instruídas pelo grupo para servir aos primeiros – levou muitas pessoas a considerá-los desconfortavelmente conservadores, até mesmo reacionários. No entanto, não é aqui que eles recebem mais críticas.
Escrivá acreditava na necessidade de encontrar Deus e de santificar-se, dentro das responsabilidades ordinárias da vida cotidiana. Em termos concretos, isso envolvia uma aceitação total e sincera das profissões – formas de vida características da era moderna. Entre as fileiras do Opus Dei, é comum encontrar advogados, banqueiros, acadêmicos, jornalistas e políticos de prestígio. O Opus Dei prepara e orienta seus membros de uma forma extraordinária. Todos eles recebem uma atenta formação espiritual baseada em grande parte no livro de “O Caminho”, de Escrivá; muitos acabam em uma das faculdades e universidades bem financiadas do grupo, instituições que oferecem as disciplinas que compõem o quadrivium moderno: filosofia, direito, economia e comunicação.
Tudo isso para ajudar os membros do Opus Dei a se aprofundarem em seus locais de trabalho – de bancos e escritórios de advocacia a universidades e ministérios governamentais – e a aproveitarem ao máximo suas carreiras profissionais. Como um membro me disse uma vez, eles demonstram, por meio de suas atividades profissionais, como os dons do cristianismo são refinadamente afinados pelos instrumentos fornecidos pelo Opus Dei. Um membro típico do Opus Dei é um membro bem formado em sua profissão, com um senso bem articulado, embora um tanto idiossincrático, do que significa ser um cristão moderno.
Durante os anos da ditadura de Franco, muitos de seus aliados e ministros mais próximos eram membros do Opus Dei. Os opusdeístas, como seus críticos os chamavam, compunham muitos ministérios e escritórios que mantiveram viva uma das ditaduras mais autoritárias e duradouras da Europa Ocidental. No entanto, como observaram os comentaristas internacionais dos anos 1960, esses tecnocratas “ultracatólicos” também foram fundamentais para livrar a Espanha de seu passado apenas parcialmente industrializado e principalmente agrário.
Os opusdeístas levaram o país, aos chutes e aos gritos, para o mundo moderno. Para seus aliados dentro do regime de Franco e aqueles que ainda hoje os aclamam como os modernizadores do país, eles são considerados pioneiros da política e da administração racionalizadas; para seus críticos, eles foram oportunistas exploradores que instrumentalizaram a economia de livre mercado da Guerra Fria para manter a Espanha moral e culturalmente em um limbo pré-moderno – uma crítica sobre a qual os autores de “Opus Dei: A History (1928-2016)” não têm muito a dizer.
A verdade está em algum lugar entre os dois extremos. Seria absurdo negar que muitos opusdeístas foram cúmplices de alguns dos aspectos mais desagradáveis do regime de Franco, embora muitos membros do Opus Dei considerem isso mais acidental do que intencional. González-Gullón e Coverdale afirmam que há pouco na conduta política dos opusdeístas que seja especificamente atribuível à sua pertença ao Opus Dei.
“Todos os membros”, enfatizam, “gozam de liberdade em questões políticas e culturais”. Tudo o que o Opus Dei faz, insistem, é cumprir um “propósito puramente espiritual e evangelizador”. Mas a distinção aqui é clara demais. Mesmo que os aliados de Franco no Opus Dei não fossem exatamente controlados por seus conselheiros espirituais, as convicções que motivaram seu trabalho certamente surgiram, sim, da percepção de todo o grupo sobre o que o mundo moderno tinha a oferecer e o que precisava ser mudado.
González-Gullón e Coverdale arriscam algumas críticas mínimas à liderança anterior do Opus Dei. Em 1956, em preparação para seu quinto governo, Franco abordou várias lideranças do Opus Dei, pedindo-lhes conselhos sobre as nomeações ministeriais. Isso marcou o início da íntima ligação do grupo com o regime de Franco. Seguindo o conselho do padre Antonio Pérez Hernández, importante membro do Opus Dei, muitos opusdeístas foram levados para o rebanho franquista. González-Gullón e Coverdale admoestam Pérez, escrevendo que ele “claramente violou” os desejos de Escrivá.
O que os autores não nos dizem é que Pérez já havia deixado claro seu objetivo dois anos antes: “A autoridade eclesiástica”, declarou ele em uma conferência de 1954 à qual compareceram muitos líderes políticos e religiosos da Espanha, “deve ter a possibilidade de produzir efeitos jurídicos”. Mais tarde, Pérez deixaria o Opus Dei e o sacerdócio em 1959, mas, dois anos depois, em um discurso que marcava a criação da Universidade de Navarra, dirigida pelo Opus Dei, Escrivá agradeceu a Pérez por seu trabalho e elogiou sua orientação à frente de centenas de estudantes, pais e figuras públicas notáveis.
Alguns dos críticos do Opus Dei parecem não perceber o que há de mais característico no grupo. Podem-se considerar suas visões morais um tanto arcaicas, mas parece um erro rotular um grupo de financistas e políticos tecnicamente qualificados como pré-modernos. A “mundanidade” enfatizada por González-Gullón e Coverdale oferece uma saída para essa aparente contradição. Abraçar a secularidade implica, como diria Agostinho, entregar-se à história e, mais especificamente, à época em que se vive. Em certo sentido, isso é diametralmente oposto ao que alguns chamam de “opção beneditina”, segundo a qual o fiel cristão se retira do mundo e vive recluso em claustros confortavelmente remotos.
Em contraste, ser desta época ou entregar-se à ordinariedade da vida cotidiana exige que não repudiemos totalmente aquelas identidades, valores e práticas que fazem do presente o que ele é. O Opus Dei começou em uma das conjunturas mais significativas da Europa Ocidental – quando os impérios doentios do início da modernidade deram lugar ao comércio internacional – e o grupo nunca tentou escapar da época a que pertencia: uma modernidade marcada pelas lutas e esperanças de uma classe média ascendente. Ele teve que aprender os complicados passos morais e culturais da estranha dança do capitalismo com o cristianismo.
Em certo sentido, a mundanidade moderna do Opus Dei pode ser resumida no próprio Escrivá. Nascido em uma família de classe média com reivindicações não consumadas à nobreza, seus estudos no seminário foram acompanhados por uma formação jurídica. Mesmo antes de sua ordenação, ele acreditava que era necessário tornar-se um doutor da lei: a jurisprudência, junto com o comércio, eram as chaves da sociedade.
Ao longo de sua vida, ele admiraria e elogiaria figuras capazes de salvar bancos ou de tirar empresas da falência. A luxuosa decadência da nobreza europeia do início do século XX foi negada a ele, mas ele não buscou inspiração nas classes trabalhadoras e nos movimentos que elas criaram. Seu conservadorismo e o do movimento que ele fundou eram típicos das classes médias empenhadas na competência técnica e na administração racional.
Essa fórmula não mudou muito nas décadas de 1960 e 1970, anos que marcaram a expansão internacional do Opus Dei. Embora o grupo esteja presente hoje em mais de 80 países, sua cultura institucional mantém-se semelhante à que era desde o início, um fato menos surpreendente quando se considera que quase metade dos membros do grupo são espanhóis e mais de um terço reside na Espanha.
A linguagem que González-Gullón e Coverdale usam para descrever o período durante o qual o Opus Dei se internacionalizou ressalta o consistente conservadorismo moral e cultural do grupo. A partir dos anos 1960, escrevem, muitas pessoas começaram a rejeitar “um mundo regulado que buscava prosperidade econômica”. Seduzida por “ideias neomarxistas e freudianas”, uma “rebelião juvenil levou ao abuso público generalizado de álcool e drogas, assim como à atividade sexual promíscua”. Todos esses “excessos”, comentam, “foram justificados por um perceptível direito à autossatisfação”.
Muitos notaram que não é possível encontrar muitos membros do Opus Dei defendendo os mais pobres e os mais marginalizados da sociedade. Isso pode ser verdade, mas é igualmente difícil encontrar um grande número de profissionais de colarinho branco não católicos agarrados a causas que não lhes dizem respeito imediatamente. A origem do problema pode não ser o próprio Opus Dei, mas sim a visão de mundo burguesa que muitos de seus membros, incluindo seu fundador, representam: uma forma de se relacionar com o mundo que prioriza a extração e o uso, que carece de sensibilidade em relação aos desejos e às necessidades dos menos afortunados e é cronicamente inconsciente de sua cumplicidade com o sistema e de sua capacidade de facilitar a transformação.
Todas as rachaduras e manchas na sociedade são explicadas como sinais de crescimento e de desenvolvimento, e devem ser enfrentadas com soluções técnicas cada vez maiores e cada vez mais invasivas. É isso que o Papa Francisco chamou de “paradigma tecnocrático”.
No entanto, o que González-Gullón e Coverdale conseguiram com essa obra é surpreendente: uma impressionante narrativa abrangente da história de quase um século do Opus Dei. Esse relato textual cronologicamente ordenado da evolução do grupo preenche uma lacuna real, fornecendo informações valiosas não disponíveis nem mesmo no livro “Opus Dei: An Objective Look Behind the Myths and Reality of the Most Controversial Force in the Catholic Church”, de John Allen. Mas o que talvez seja mais notável no livro é a franqueza de seus autores sobre as mazelas do Opus Dei, visto que eles mesmos são membros.
Sua relativa franqueza insere-se, sem dúvida, na nova estratégia adotada pelo Opus Dei no início dos anos 2000. Quando a versão cinematográfica de “O Código Da Vinci” foi lançada em 2006, o grupo mais uma vez voltou à atenção do público, em grande parte de forma hostil. Mas, desta vez o Opus Dei reagiu de forma diferente. Não se escondeu atrás do silêncio que seu fundador exaltava nem montou uma contraofensiva beligerante. Sob a orientação de Juan Manuel Mora, diretor de comunicação do Opus Dei, o grupo acolheu os observadores curiosos. Mora instruiu a equipe de comunicação a hospedá-los nas muitas residências e centros do grupo ao redor do globo, a tratá-los bem, a serem abertos e a responderem às perguntas – em suma, a removerem o véu. Ao escreverem seu livro da forma como fizeram, González-Gullón e Coverdale fizeram algo semelhante.
Mas para muitos leitores o Opus Dei ainda parecerá algo estranho, independentemente do quanto seja desmistificado. E, no contexto da Igreja Católica do século XXI, ele é um tanto estranho. Para aquelas pessoas que acompanham os argumentos furiosos entre os campos autodenominados “tradicionalistas” e “liberais” dentro da Igreja, um grupo tão felizmente desinteressado nessas disputas pode parecer um pouco fora de sintonia.
Uma boa parte da fonte dessas discussões culturais católicas, em ambos os lados da divisão, é uma tentativa de recuperar o cristianismo de seu estado corrompido. Os tradicionalistas acham que a Igreja errou ao se envolver com a modernidade liberal; os liberais acham que a Igreja pré-conciliar errou ao buscar o poder em vez do amor de Cristo. Ambos os lados acham que a Igreja foi poluída pela história – ou, pode-se dizer, pelo mundano.
Precisamente devido à sua própria mundanidade resoluta, o Opus Dei opta por não fazer o mesmo. “Não entendo os tradicionalistas”, disse-me certa vez um membro do Opus Dei. “O que há de tão especial na Missa Tridentina?”
O grupo acolhe a história; não encontra nenhuma razão para contestar a modernidade, mas permanece convencido de que a Igreja nunca cederá inteiramente às pressões de um mundo pós-religioso. O progresso material prevalecerá, mas a Igreja também, de modo inevitável e aproblemático. E certamente, para o bem e para o mal, isso é muito semelhante ao modo como muitos católicos comuns veem a relação entre sua fé e a época a que pertencem.
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A secularidade do Opus Dei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU