10 Dezembro 2021
“Nosso maravilhoso Papa não tirou literalmente os sapatos quando cumprimentou os migrantes em Lesbos ou os bispos ortodoxos em Atenas e Nicósia, mas o fez afetivamente. Ele alcança as pessoas como se estivessem 'em chamas com Deus'. Ele olha para o mundo e vê mais do que condenação; ele vê uma terra 'repleta de céu'. Ele espalha o Evangelho – ele evangeliza – toda vez que abre os braços para abraçar a outra pessoa como o filho de Deus que ela é”, escreve Michael Sean Winters, jornalista estadunidense, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 08-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Papa Francisco fez uma forte repreensão ao arcebispo de Los Angeles José Gomez, ao bispo Robert Barron, auxiliar da mesma arquidiocese, e a grupos como “Catholic Answers” e à EWTN em um discurso em 4 de dezembro para o clero, religiosos e seminaristas de Atenas, Grécia.
Certo, não foi exatamente assim. O Papa não mencionou nenhum clérigo ou organização americana durante sua palestra na Catedral de São Dionísio. Mas, em um sentido mais profundo, é profundamente verdadeiro.
Aqui está a parte específica do discurso do Santo Padre que parecia mostrar a diferença entre sua abordagem de evangelização e aquela encontrada entre os católicos americanos mais conservadores. Chamando uma atitude de aceitação essencial para a evangelização, o Papa disse que tal atitude “não visa ocupar o espaço e a vida dos outros, mas semear a boa nova no solo de suas vidas; aprende a reconhecer e valorizar as sementes que Deus já plantou em seus corações antes de entrarmos em cena. Lembremos que Deus sempre nos precede, Deus sempre semeia antes de nós. Evangelizar não é encher um recipiente vazio, mas sim trazer à luz o que Deus já começou realizar”.
O Papa lembrou a visita de São Paulo a Atenas e o que ele disse no Areópago. “Ele não lhes: 'vocês entenderam tudo errado' ou 'agora vou lhes ensinar a verdade'. Em vez disso, ele começou aceitando seu espírito religioso... Ele tira proveito do rico patrimônio dos atenienses. O apóstolo dignificou seus ouvintes e acolheu sua religiosidade. Embora as ruas de Atenas estivessem repletas de ídolos, o que o deixou 'profundamente angustiado', Paulo reconheceu o desejo de Deus escondido no coração daquelas pessoas e desejou gentilmente compartilhar com elas o maravilhoso dom da fé”.
O Papa terminou com uma frase que costuma usar. Falando de São Paulo, ele disse: “Ele não impôs; ele propôs”.
Esta é a pedagogia do acompanhamento. Dificilmente pode ser rotulado de “herético” ou “confuso”, como alguns conservadores costumam fazer. Tem suas raízes no exemplo de São Paulo. E, como sabemos por todas as biografias do Papa, e por observá-lo nos últimos anos, é uma pedagogia que lhe permitiu envolver a cultura de maneiras cativantes e profundas.
Compare isso com a forma como Gomez atacou os movimentos sociais em um discurso recente, chamando-os de “pseudo-religiões”, influenciados por ideias e teorias que são “profundamente ateístas”, semelhantes aos maniqueístas em alguns aspectos nada lisonjeiros e aos gnósticos em outros, e, finalmente, que eles são “também pelagianos, acreditando que a redenção pode ser realizada por meio de nossos próprios esforços humanos, sem Deus”. Se eu pudesse pegar emprestado uma frase do ex-vice-presidente Spiro Agnew, o discurso de Gomez o colocaria entre os “nattering nabobs of negativism” (no Brasil, uma expressão semelhante no contexto político seria “aqueles que torcem contra” ou “que torcem pra dar errado”).
Ou considere Barron. Em 2012, ele registrou esses comentários sobre “evangelização eficiente”. Tenho dificuldade em imaginar Francisco usando esse adjetivo, mas não importa. Barron mostra um vídeo do cardeal nova-iorquino Timothy Dolan entrando na Catedral St. Patrick's e diz: “Ele conhece um grande segredo. O segredo é a forma mais eficaz de evangelizar é compartilhar a alegria contagiante de ser amigo de Jesus Cristo”.
Agora, eu não discordo disso. Uma vida cheia de fé é atraente para os outros de uma forma que pode ser chamada de contagiosa. Mas Barron então adiciona um comentário manipulador que me impressionou quando ouvi pela primeira vez – e ainda me impressiona: “Esse é o movimento de abertura”. Movimento de abertura? Não é apenas uma rua de mão única, é uma rua de mão única em que o evangelizador orquestra inteiramente o encontro.
Você pode ir ao site do Catholic Answers, ou assistir a quase qualquer programa na EWTN e você encontrará uma abordagem semelhante para a evangelização: Nós temos as respostas, e se as pessoas não fossem tão facilmente enganadas pelo mal do mundo, elas reconheceriam que temos as respostas, aceitariam nossas respostas e nós as submeteríamos.
Barron pode ter mais alegria naquele vídeo do que Gomez conseguiu naquele discurso severo, e ambos são mais matizados e complicados do que a maioria dos programas na EWTN, mas o problema fundamental é o mesmo: não há nenhum sentido de que Deus já está trabalhando na vida da outra pessoa, e a fé é apresentada como uma série de proposições às quais se espera que as pessoas deem seu consentimento.
Para ter certeza, existem pessoas que respondem a uma abordagem altamente proposicional. Em sua obra-prima “Retorno a Brideshead”, Evelyn Waugh faz com que o narrador do romance, Charles Ryder, expresse sua admiração pela fé católica de seu amigo Sebastian. “Ninguém jamais me sugeriu que essas estranhas observâncias expressassem um sistema filosófico coerente e afirmações históricas intransigentes”. Waugh, como o narrador do romance, certamente concebeu a fé à qual se converteu como um “sistema filosófico coerente”. Mas Francisco – e os Papas Bento XVI, João Paulo II e Paulo VI, anteriores a ele – concebe a fé menos como um sistema de pensamento e mais como um modo de vida que brota do evento da morte e ressurreição de Jesus.
Confesso que vacilo entre os polos mais afetivo e o mais racionalista do catolicismo. Existem realmente “afirmações históricas intransigentes” no cerne do catolicismo e fico ansioso quando as pessoas tratam o “sistema filosófico coerente” que caracterizou o catolicismo pós-tridentino como massa ou simplesmente o descartam como se não tivesse mais valor.
Ainda assim, o maior perigo é sempre a idolatria de uma iteração particular do catolicismo. A deficiência intelectual é um problema, mas a criação de ídolos é uma violação do Primeiro Mandamento.
Antes de ler o texto do discurso do Papa, recebi um e-mail de um padre amigo, que me escreveu sobre seu trabalho com alguns jovens em uma coalizão de grupos de apoio a imigrantes na qual ele é o único líder religioso nessa mistura.
“Aprendi a valorizar esses jovens. E eles sabem disso”, escreveu ele. “Ultimamente, eles abriram espaços para eu oferecer reflexões. Certa vez, compartilhamos um texto de Henri Nouwen. Recentemente, dei a eles uma citação de Václav Havel sobre a esperança. Lentamente, eles abriram um aspecto espiritual que havia sido encerrado. Outro dia, eles desejavam a alguém Feliz Hanucá. Num outro dia, um deles me visitou e disse como estava satisfeita como católica por ter “nosso padre” conosco. Para mim, isso é o que significa acompanhamento. Sem sermões, sem textos de comunhão, apenas ficar na sala, afirmando-os. Vejo que a pessoa humana é fundamentalmente espiritual e se abrirá para isso quando o terreno estiver aberto para eles. Por que os restauracionistas têm tanto medo deste mundo secular?”
Ele terminou com uma citação do poema “Aurora Leigh” de Elizabeth Barrett Browning:
“A Terra está repleta de céu,
E cada arbusto comum em chamas com Deus;
Mas só quem vê tira os sapatos”
Nosso maravilhoso Papa não tirou literalmente os sapatos quando cumprimentou os migrantes em Lesbos ou os bispos ortodoxos em Atenas e Nicósia, mas o fez afetivamente. Ele alcança as pessoas como se estivessem “em chamas com Deus”. Ele olha para o mundo e vê mais do que condenação; ele vê uma terra “feita de céu”. Ele espalha o Evangelho – ele evangeliza – toda vez que abre os braços para abraçar a outra pessoa como o filho de Deus que ela é.
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Papa Francisco evangeliza de forma muito diferente que os conservadores dos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU