19 Outubro 2021
A onda de choque do relatório Sauvé, publicado no dia 5 de outubro de 2021, é medida pelas reações e reflexões que suscita, antecedendo o tempo da ação. Análise com a teóloga francesa Anne-Marie Pelletier.
A entrevista é de Marie-Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 14-10-2021. A tradução é de André Langer. A entrevista nos foi enviada pela teóloga entrevistada.
Prêmio Ratzinger, a teóloga Anne-Marie Pelletier acaba de publicar um ensaio contundente, L’Église et le féminin. Revisiter l’Histoire pour servir l’Évangile (A Igreja e o feminino. Revisitando a história para servir ao Evangelho). Nele, ela defende a necessidade de questionar a história da Igreja para sair da crise sistêmica.
O relatório da Ciase (Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja) foi publicado no dia 5 de outubro de 2021. Além do choque e do horror da realidade que descreve, que reflexões ele lhe inspira?
Vergonha, claro, e, convenhamos, raiva por tanto desprezo em relação às palavras das vítimas e tanto acobertamento. Tudo isso a portas fechadas da Igreja, tão rápida em se declarar perita em humanidade! Na cabeça pululam os textos das Escrituras que anunciam o julgamento que Deus faz recair sobre o pecado e sobre as mentiras. Que atualidade da Bíblia!
Mas, de certa forma, tudo está diante de nós. Trata-se agora de trabalhar para inaugurar um novo tempo, para conceber o catolicismo de outra maneira. Uma revolução certamente, ainda que a Revolução Francesa não possa ser o modelo para a Igreja neste caso! O que chamamos tecnicamente de “eclesiologia”, ou seja, a teologia da Igreja, que rege sua organização, deve ser questionado em suas raízes. A mudança é inevitável e não há dúvida de que essa perspectiva encontrará forte resistência; mas a conjuntura não nos deixa mais escolha. Afinal, a estrutura eclesiástica na qual vivemos há séculos não traz as promessas da vida eterna. De qualquer maneira, não era a estrutura eclesiástica da Igreja primitiva.
Em 'A Igreja e o feminino', você escreve que questionar o passado da Igreja, sua história, é necessário para lançar luz sobre a atualidade asquerosa do escândalo dos abusos sexuais...
Estou convencida de que uma tarefa que cabe a nós neste momento de profunda mudança é recuperar um ponto de apoio na história da Igreja. Não para restaurar essa parte carcomida do passado em colapso, mas para diagnosticar o que está acontecendo conosco e a crise pela qual estamos passando. Falamos muito hoje em dia sobre problemas sistêmicos: é muito justo. O mal não vem simplesmente de indivíduos isolados. Diz respeito a toda uma ordem eclesial que deve ser desmantelada. Mas essa ordem é ela mesma o produto de uma longa história, durante a qual preconceitos se formaram, prevaleceram interpretações tendenciosas das Escrituras, onde práticas que são simplesmente fruto da história se tornaram lei.
Assim, manter as mulheres afastadas do altar, defender um celibato eclesiástico indissociável do sacerdócio, zelar ciosamente pelo recinto masculino do sacerdócio ministerial, reivindicar um poder clerical sobre os corpos das mulheres, tantas outras normas do mundo católico, tudo isso está enraizado em um passado sobre o qual é preciso se debruçar. Precisamos fazer um inventário dessa herança, que mistura uma boa dose de preconceito com a palavra do Evangelho, retarda seu ímpeto e enfraquece sua novidade. Fazer esse trabalho lúcido já é um passo em direção à reforma.
A história da Igreja, você escreve, é a história da “carne mal pensada ou da carne impensada”... Como abordar a questão da sexualidade?
Todo ser humano luta com a sexualidade como uma dimensão importante da condição humana que nos torna seres encarnados. Nada é fácil nesta área. Nem na Igreja. Desde os primeiros dias do cristianismo, coexistiram vibrantes celebrações da carne e declarações suspeitas. A carne está na origem do mistério da Encarnação e da obra da salvação, por um lado. Mas, por outro lado, não se separa da experiência da fragilidade. Alguns rapidamente escolherão colocá-la a julgamento, desqualificá-la como algo que deve ser vencido na vida cristã, para o benefício do espírito.
No entanto, a exaltação da virgindade feminina aumentará com acentos exaltados a partir do século IV. A virgindade de Maria fará com que ela seja designada exclusivamente pelo nome de “Virgem”, o que esgotaria sua identidade. O ideal de uma vida que ignora a sexualidade se afirmará ao passar para os homens a quem foi confiado o sacerdócio ministerial, até que seja associado ao celibato. Essa tradição, portanto, reprimiu a sexualidade em vez de pensar sobre ela. Por isso mesmo, ela tomou o lugar privilegiado da fantasia. Mas, como sabemos, a característica do reprimido é voltar. E esse retorno está causando estragos, em proporção à censura que foi feita sobre ele. Isso é evidente na história que vem à tona nas notícias sobre a Igreja.
Logo após a publicação do relatório da Ciase, vimos um certo número de leigos se manifestar para pedir reformas, o que coincidiu com momento em que o Papa lançou um sínodo sobre a sinodalidade: o que poderá sair dessa sinergia?
Que os leigos finalmente falem, e especialmente as mulheres, essa é a grande questão hoje na Igreja. Não apenas como se se tratasse de pegar um microfone em uma arena política. Não, falar é, em primeiro lugar, existir em nome próprio, como “eu”. É existir de pleno direito. No entanto, ser cristão é começar por sentir-se convocado por uma palavra em que Deus te interpela como um “tu” para entrar em um diálogo, onde se aprende que é se querido e amado por Deus. Ser cristão é, em última análise, ser constituído pelo batismo em sujeito, que recebe o poder de dizer “estou aqui” e de falar abertamente. Todo o contrário de uma postura doentia de submissão em uma instituição que cultiva uma cultura do segredo.
Por uma conjunção que devemos dizer finalmente feliz, nestes tempos calamitosos, acontece que o Papa Francisco está neste exato momento exortando todo o povo de Deus a entrar em um processo sinodal. É a sua vez de falar!, diz o Papa. Devemos medir o alcance deste convite. De repente, o apelo à sinodalidade nos leva de volta à realidade da Igreja como esse corpo de Cristo evocado por São Paulo. Realidade orgânica, onde somos todos, igualados pelo batismo, uns para os outros. Onde as responsabilidades confiadas a alguns ou a algumas devem ser reconhecidas como um serviço à vida e à santidade do corpo. Este, parece-me, é o grande antídoto para os males que oprimem a Igreja.
Na condição de que o apelo do Papa seja ouvido...
E que o povo de Deus aproveite esta oportunidade para fazer a Igreja existir de outra maneira. Esse é o desafio. Vamos nos mexer para atender a este apelo? As paróquias vão se mobilizar? Interpelar suas autoridades, se necessário, lá onde elas querem se esquivar? Ousar assumir explicitamente o controle da dor das vítimas e o peso da vergonha de todos. Vamos nos mexer, ousar nos colocar a caminho juntos?
O Papa Francisco insiste na importância do discernimento, da consciência, do sensus fidei... Um elemento importante para sair de um funcionamento clerical. Mas onde e como se formar para isso?
Essa pergunta é fundamental. Mas, ela mesma, começa por exigir discernimento. Claro, sabemos que é insustentável opor uma Igreja que ensina e uma Igreja ensinada, como diziam no século XIX. Muitos leigos estão agora conscientes da necessidade de se formarem numa inteligência da fé adulta, informada, questionadora e amadurecida, que os torna capazes de viver a plenitude do seu batismo e de dar conta da sua fé num mundo em plena transformação. Mas a questão não é apenas adquirir um conhecimento e, com ele, uma autoridade que até então cabia exclusivamente ao clero.
Em última análise, é com a sabedoria que os cristãos precisam ser equipados. Uma tal sabedoria, que obviamente não exclui o conhecimento, vai além do conhecimento e de todas as formas de dominação. A Bíblia nos diz que o rei Salomão, em sua magnificência, entendeu isso. Ora, essa sabedoria, que se recebe de Deus, que concede ao homem os pensamentos de Deus, é adquirida primeiro na escola das Escrituras. Lidas em comunidade, por homens e mulheres que concordam em se submeter à palavra de Deus, essas Escrituras vão forjando corações inteligentes, segundo os critérios do Evangelho. É um programa e tanto fazer com que esta verdade penetre na vida das comunidades.
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“Devemos conceber o catolicismo de outra maneira”. Entrevista com Anne-Marie Pelletier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU