12 Março 2019
“Toda a Igreja que treme de febre, porque não é possível desmembrá-la em pedaços, exceto em caso de autópsia. Mas, graças a Deus, ela ainda está viva e por isso lutará contra essa doença mortal", escreve Luc Ravel, arcebispo de Estrasburgo, em artigo publicado por Huffington Post – France, 10-03-2019. A tradução é de André Langer.
Segundo ele, "seu melhor apoio nestes anos difíceis, será a humildade da serva”.
Por todos os lados, todos os dias, um golpe de espada atravessa o Corpo da Igreja Católica. Santa por sua Cabeça, Cristo, todo o seu corpo estremece de surtos febris.
A Igreja toda treme e estremece! Nos últimos dias, um cardeal nos Estados Unidos foi destituído do estado clerical (“reduzido ao estado laical”, numa expressão usual, mas infeliz, para os batizados), o senhor McCarrick. Um outro, o número 3 da Igreja, o cardeal Pell, na Austrália, foi condenado por abuso sexual de menores. No verão passado, os números assustadores da Pensilvânia. No outono, os da Alemanha e da Irlanda. No Chile, o Papa teve que exigir a renúncia de todos os bispos. Não há necessidade de recordar os fatos e números: os meios de comunicação estamparam-nos em suas manchetes.
A França não se sai melhor. Nada, por enquanto, sobre a África, onde esses crimes são silenciosos, como uma bomba-relógio. A Omerta [lei do silêncio] ali é um pouco mais tenaz do que entre nós. Mas, a luz já começa a penetrar as práticas dos clérigos que ultrajam as jovens irmãs. Nada ainda sobre a Ásia, sobre a Índia e outros continentes. Por enquanto, apenas o Ocidente está na grelha. Estamos apenas no meio do baixio. Nós não podemos falar sobre essas coisas no passado. Temo as revelações dos próximos meses.
Esses golpes são o sintoma de um terrível câncer. Ignorar esse mal é simplesmente suicida.
Imaginemos um homem diagnosticado com câncer. Ele não se alegrará. Ele pode ir a Lourdes para pedir a graça de uma cura. Mas ele certamente consultará excelentes especialistas e aceitará terapias violentas. Com alguma chance, esses cuidados não o impedirão de continuar suas atividades habituais. Mas, seja como for, toda a sua vida será marcada. Seu corpo, certamente, mas também seu coração agora na experiência do sofrimento: é um homem maduro que sairá dessa situação.
A Igreja encontra-se exatamente neste ponto.
E amo apaixonadamente essa Igreja que me faz ser o próprio Cristo. Eu choro pelas vítimas. Por todos os fracos que se afastam de Cristo por causa desses crimes. Mas eu não choro pelos dissabores da instituição. Muito ruim para mim que faço parte disso, muito ruim para ela que não foi capaz de viver de acordo com a graça que a anima.
Sejamos claros: a Igreja também é uma instituição com seus bispos, sacerdotes e diáconos. Sem ela, a Igreja Católica não existiria mais. Mas sua cura não virá da instituição, apegada à sua autodefesa, como qualquer instituição que perde sua credibilidade. Os cuidados eficazes consistirão de fato na carne da Igreja, do Povo de Deus habitado pelo Espírito, quando irá se arraigar novamente não sobre o poder da autoridade, mas sobre sua missão de amor e de luz. É este dinamismo pelo mundo de leigos enraizados no Senhor que cuidará e curará todo o Corpo. “O santo e paciente Povo fiel de Deus, sustentado e vivificado pelo Espírito Santo, que é o rosto melhor da Igreja profética que, na sua doação diária, sabe colocar no centro o seu Senhor. Será precisamente este santo Povo de Deus que nos libertará do flagelo do clericalismo, que é o terreno fértil para todas essas abominações” (Papa Francisco, 24 de fevereiro de 2019).
Senhoras e senhores batizados, vocês serão os terapeutas da instituição e devolverão o gosto de encontrar Cristo em sua Igreja. Nós vamos assumir as nossas responsabilidades por esses criminosos. Assumam as suas responsabilidades em relação à instituição. Ajudem-na a encontrar o equilíbrio. Encarreguem-se dela em sua oração e em sua vigilância. Vocês têm a graça de fazer isso, mas o farão apenas com uma condição: entrem na sensibilidade da Cabeça, o Cristo, com a morte dos mais pequeninos, das vítimas. Os indiferentes e os insensíveis continuarão a cruzar o campo de batalha com seus rifles. E atenção: a etapa mais complicada da nossa luta contra esses abusos sexuais na Igreja, e mais tarde na sociedade, é a sensibilização de todos!
A Cabeça da Igreja, o Cristo, fala através do seu Vigário na terra: “Todos – Igreja, consagrados, Povo de Deus e até o próprio Deus – carregamos as consequências das suas infidelidades” (Papa Francisco, 24 de fevereiro de 2019). Mas alguns membros do seu Corpo dizem mesmo entrados em 2019: “Paremos de falar sobre isso, já estamos fartos disso”. “Tratemos dos casos particulares e não exageremos!” São reflexões de católicos que não se sentem concernidos. Tais observações são trágicas: para as vítimas passadas (que não podem mais suportar essa indiferença por parte dos “bons” cristãos); para as futuras vítimas (porque com esses raciocínios haverá outras); para a Igreja, que pode morrer disso. É como se a mão estivesse dizendo: “Pouco me importa se o fígado foi acometido por um tumor cancerígeno; eu sou a mão, e não serei atingido”.
Por que é necessário sensibilizar todos os cristãos? Não seria suficiente formar algumas pessoas para controlar e garantir que isso não volte a acontecer?
A primeira razão vem da experiência: ninguém se vangloria desses crimes, energicamente condenados pela justiça. Repará-los é uma missão quase impossível para alguns. Existem “especialistas” e realmente notáveis: policiais, juízes, médicos, psicólogos, assistentes sociais. Em uma sociedade que funciona adequadamente, como a França, esses especialistas podem agir “depois” do crime. Na melhor das hipóteses, no momento em que são cometidos. Mas nunca antes para prevenir. Estaríamos na absoluta ilusão de acreditar que alguns textos e alguns especialistas (pessoas, comitês, grupos...) poderão resolver um problema difuso na sociedade civil, provocado por criminosos espertos e sufocados pelos silêncios impostos.
A segunda razão vem da teologia da Igreja: nós formamos um só corpo. O que afeta um membro, especialmente um membro frágil, como a criança ou a pessoa com necessidades especiais, afeta todos os outros membros. O Papa Francisco nos recordou as palavras de São Paulo: “Quando um membro sofre, todos os membros sofrem”. Permanecer indiferente é ainda conceber a Igreja como uma associação piramidal com um presidente e seu gabinete para lidar com coisas chatas.
A terceira razão nasce da nossa missão cristã: todo cristão deve ir ao encontro do seu irmão humano, especialmente se ele sofre. E justamente, é hora de pensar a missão junto a essas pessoas que sofrem abusos sexuais. Inspirada pelo Espírito, a Igreja sempre foi capaz de responder às grandes pobrezas de seu tempo através de escolas, hospitais, a libertação de escravos, orfanatos, etc. A situação das pessoas abusadas sexualmente é terrível. E é endêmica: 18 milhões na Europa, 90% no círculo das pessoas próximas, na família. Podemos imaginar que alguns especialistas possam responder a esse sofrimento?
É toda a Igreja que treme de febre, porque não é possível desmembrá-la em pedaços, exceto em caso de autópsia. Mas, graças a Deus, ela ainda está viva e por isso lutará contra essa doença mortal.
E seu melhor apoio nestes anos difíceis, será a humildade da serva. E a transparência e a vigilância serão as fases da sua convalescença. Em seu longo caminho de reeducação, a Igreja se tornará radiante d’Aquele que ela carrega em vasos de barro: como será belo o eterno Bom Pastor, a Luz das Nações!
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“Eu choro pelas vítimas, mas não pelos dissabores da Igreja”. Artigo de Luc Ravel, arcebispo de Estrasburgo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU