04 Janeiro 2023
Incomodar o katéchon de São Paulo talvez seja excessivo, considerando as ressonâncias escatológicas e apocalípticas ligadas à figura misteriosa de "aquele que detém". No entanto, é claro, nos últimos anos Bento XVI representou, como Papa Emérito, um “elemento decisivo de estabilização e de distensão”, reflete no Vaticano quem o conheceu muito bem. “Sobretudo na vertente daqueles que, de forma mais ou menos abusiva, se inspiravam nele e se opõem a Francisco, a morte de Joseph Ratzinger poderia causar dois efeitos opostos. Ou pacificar ainda mais, o que, aliás, é improvável. Ou, mais provavelmente, provocar uma forte instabilidade, tanto no Vaticano quanto na Igreja universal”.
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada por Corriere della Sera, 03-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bento XVI, do Mosteiro Mater Ecclesiae, foi exemplar do ponto de vista daquilo que outrora, quando era mais difundido, se chamava “sensus Ecclesiae”. O Papa é o Papa, para um católico não é possível escolher como referência aquele que mais se aproxima das suas ideias. Uma lição que Ratzinger ofereceu imediatamente, em 28 de fevereiro de 2013, quando se dirigiu aos cardeais poucas horas antes de sua renúncia ao pontificado se tornar efetiva, sem poder saber quem seria seu sucessor:
“Entre vocês, entre o Colégio dos Cardeais, está também o futuro Papa a quem já hoje prometo a minha reverência e obediência incondicionais”. As mesmas palavras as repetiu a Francisco quando o novo Papa o chamou a Castel Gandolfo na noite de sua eleição.
Assim, por quase dez anos, através de seus escritos ou das confidências confiadas ao biógrafo Peter Seewald, as palavras de Ratzinger retiveram as mais evidentes pressões centrífugas. E não se trata apenas da ala extrema, os “sedevacantistas” ou teóricos da conspiração vários que nunca perdoaram a sua renúncia ou imaginaram que não era válida e Bento teria sido forçado por sabe-se lá que poderes: “São todos disparates. Ninguém tentou me chantagear. Nem eu o teria permitido”, explicou o emérito.
Os descontentamentos cresceram ao longo dos anos e tiveram os Estados Unidos como epicentro da oposição. Há tempo se fala do "cisma" da direita católica estadunidense, hostil a Bergoglio e rica de financiamentos e redes, que há anos paira como um espectro, uma ameaça à qual Francisco já havia respondido sereno, mas seco, em 2019, falando aos jornalistas: "Rezo para que não haja um cisma, mas não tenho medo: houve muitos cismas na Igreja...".
O panorama é variado, no entanto. Há a parte mais extrema e colorida, representada pelo ex-núncio em Nova York Carlo Maria Viganò, agora arcebispo aposentado, que já pediu a renúncia de Francisco em 2018 e no meio tempo o acusou, entre outras coisas, de estar “do lado de o Inimigo", ou seja, Satanás, e conduzir com um "falso magistério" uma Igreja que quer ser "braço espiritual da Nova Ordem Mundial e promotora da Religião Universal" para concretizar "o plano da Maçonaria e a preparação o advento do Anticristo”.
Há o ultraconservador cardeal Raymond Leo Burke, ex-amigo e depois em disputa com Steve Bannon, líder dos opositores explícitos. E depois há a resistência menos explícita, mas mais insidiosa: em novembro os bispos dos Estados Unidos elegeram por maioria como novo presidente Timothy P. Broglio, um militar do ordinariato e ex-secretário do então cardeal secretário de Estado Angelo Sodano, candidato que se sabia bem distante de Francisco. Quem nunca digeriu o pontificado de Bergoglio está se organizando, não é mistério que já se pensa no próximo conclave. A referência da ala mais conservadora, no Vaticano, é o cardeal guineense Robert Sarah, de 77 anos.
No extremo oposto, está o outro temido "cisma", aquele "progressista" que tem como referência a Alemanha e o Sínodo da Igreja Alemã, com discussões sobre o sacerdócio feminino, a possibilidade de dar a bênção a casais homossexuais, a revisão do celibato sacerdotal obrigatório ("para alguns padres, seria melhor se fossem casados", observou o cardeal alemão Reinhard Marx), enfim, uma série de questões debatidas sobretudo entre os fiéis do norte da Europa. No meio, entre Espanha, França e também a Itália, descontentamentos de episcopados silenciosos que ainda não aparecem. Francisco sabe de tudo isso.
Aproxima-se o Sínodo que se reunirá em outubro de 2023, não é por acaso que quis estender os tempos e prever uma segunda parte em 2024, para deixar as tensões crescentes se acalmarem. O pontífice quer que a Igreja reflita sobre si mesma e encontre novas formas de falar ao mundo, sem barricadas nem rompantes à frente: até falar em “ir para trás” e “progressismo” ideológicos como “provas de infidelidade”.
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A ala mais conservadora agora pode perder todos os freios. Será que a facção estadunidense vai pressionar Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU