Bento XVI, a coragem de um papa conservador. Artigo de Alberto Melloni

O Papa Emérito Bento XVI, que faleceu no útimo sábado (31). (Foto: Vatican Media)

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04 Janeiro 2023

"No mundo pós-bipolar, a utopia conservadora de Ratzinger – um catolicismo de minoria criativa que prepara um renascimento cristão conservador para quando desmoronar a ditadura do relativismo e a tirania do desejo – não encontrou sucesso. Não porque um pensamento progressista o tenha vencido, mas porque aquela direita, cujos rancores animais ele subestimava, ganhou força com os populismos e os nacional-populismos muito além dos bordados de sua moderação ao estilo CSU", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por ISPI (Istituto per gli Studi di Politica Internazionale), 31-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A longa velhice de Joseph Ratzinger mostrou o quão corajosa e oportuna foi a escolha de renunciar ao papado em 12 de fevereiro de 2013. Porque aquele passo atrás, que exigia uma força de ânimo intacta e perfeita lucidez, não poderia ter sido feito quando a fraqueza de um ou da outra o teria tornado necessário. E os anos que separaram aquela renúncia do desaparecimento do já idoso ex-papa dizem que, sem aquela renúncia, a Igreja Católica Romana teria tido à sua frente um homem relutante em governar, que se encontrava no centro de uma fase de desordem sistêmica na igreja católica que não tinha precedentes desde o início do século XVI e que em 2013 havia apenas visto o início da tempestade.

Bento XVI – padre imaculado, teólogo tímido e vingativo – ascendeu ao papado graças a um acordo de um bloco conservador do qual havia se feito porta-voz o próprio João Paulo II em 6 de janeiro de 2005: ele havia aceitado concorrer para vencer e havia vencido (contra Bergoglio).

Convencido pelo 1968 de que os males da Igreja e do mundo vinham daquele ano crucial, o Papa Ratzinger estava perfeitamente ciente dos processos degenerativos que cresciam na igreja wojtyliana. Mas estava convencido de que poderia dominá-los com seus próprios instrumentos intelectuais: e, se necessário, intimidá-los, retirando-se com a indignação de um homem cândido diante das torpezas, das más condutas, das misérias morais do clero, episcopado, dos movimentos, da cúria.

Males que, em vez de se assustarem com a retirada do papa, tendiam a se espalhar por todos os lugares onde encontrassem espaço - chegando assim até ao apartamento pontifício, onde um camareiro furtava papéis e os vendia a receptadores protegidos pela benevolente cobertura do "jornalismo investigativo" e parte de um enfraquecimento da voz internacional da Igreja Católica.

Além disso, o escândalo dos bispos em silêncio conivente diante dos crimes de pedofilia cometidos por clérigos colocava um problema específico para Ratzinger. Desde 1996, quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi ele quem havia bloqueado a tentativa dos bispos estadunidenses de estabelecer diretrizes comuns sobre abusos, para defender o cardeal Law que, antes do Spotlight, reivindicava o direito do próprio bispo decidir o que fazer (sic!).

Aquele veto, motivado teologicamente por uma tese sobre a antecedência ontológica da Igreja universal sobre a Igreja particular, revelou-se tragicamente errado sob todos os pontos de vista: e tornando-se Papa, Bento XVI percebeu que o silêncio episcopal, que durou um poucas décadas a mais em comparação com a cultura burguesa e muitas legislações do século novecentistas, destruíram a credibilidade de dioceses e igrejas inteiras em um desastre pelo qual o pontífice assumia publicamente uma responsabilidade que recaia sobre o papado e expressava uma "vergonha" tão sincera como antipódica em relação à busca de causas que não podiam ser encontradas, como ele acreditava, nos movimentos de 1968.

Pressionado pela sua relutância em governar e o despudor para o qual sua cultura conservadora não via saída, Bento XVI decidira assim renunciar ao ministério petrino, cobrindo com a enormidade de seu fim um papado em que retomara o diálogo com a igreja na China e alimentou uma cultura conservadora desprovida de ideias próprias. E além disso, nos dez anos de seu período como emérito, criou, sem necessidade de normas, uma práxis perfeita para o ex-papa: entregou-se em forma de prisão voluntária nos domínios temporais de seu sucessor, se impôs um silêncio a que não era obrigado, escreveu apenas coisas muito breves e substancialmente repetitivas sobre o que já havia dito, rejeitou qualquer tentativa de ser usado contra Francisco.

No entanto, tanto quanto o papado do sucessor foi imediatamente um papado do "primeiro" – primeiro homem do hemisfério sul a ascender a um posto de nível mundial, primeiro papa jesuíta, primeiro papa filho de migrantes, primeiro papa jamais libertado pelos Aliados, primeiro garoto nascido em uma metrópole, primeiro papa a se tornar padre após o concílio, primeiro papa com uma irmã divorciada, etc. – aquele de Ratzinger foi um papado “último”.

Último papa a ter sonhado com uma centralidade intelectual da Europa no mundo; último papa a ter respirado por dentro o ar do Vaticano II e formado em um sistema teológico estruturado como o alemão; último papa a usar um uniforme da Segunda Guerra Mundial; último papa com uma relação pessoal com um partido democrata-cristão no poder. O último papa a não ter rejeitado a ideia de renunciar…

No mundo pós-bipolar, a utopia conservadora de Ratzinger – um catolicismo de minoria criativa que prepara um renascimento cristão conservador para quando desmoronar a ditadura do relativismo e a tirania do desejo – não encontrou sucesso. Mas não porque um pensamento progressista o tenha vencido, mas porque aquela direita, cujos rancores animais ele subestimava, ganhou força com os populismos e os nacional-populismos muito além dos bordados de sua moderação ao estilo CSU.

Ratzinger via nas legislações sobre os direitos LGBT uma cultura anticatólica e nas mil teorias sobre o gênero uma ideologia unitária: mas sem perceber que a "guerra cultural" que ele desenhava no papel tornava-se um verdadeiro desenho de poder com variações substanciais nos EUA de Trump, na Alemanha da AfD, na França de Le Pen, na Rússia de Putin: e o fundamentalismo familista que após a eleição de Bergoglio assumirá tons sedevacantistas (um líder político italiano vestiu a camiseta "o meu papa é Bento" ) teria usado aquelas suas posições com uma atitude que não saberia como governar.

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