19 Novembro 2022
O tema da consciência – um tema complexo e que remete à dimensão transcendental constitutiva do ser humano –, na jornada de estudos “Consciência e humanidade”, foi lido a partir de diversos pontos de vista, na escuta de vozes de diferentes confissões, católica e protestante, e na tentativa de uma síntese ecumênica.
A reportagem é de Paola Zampieri, publicada em Settimana News, 14-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Perspectivas interdisciplinares e ecumênicas, interpretações bíblicas e filosóficas, considerações de teologia, psicologia e doutrina social: é grande a riqueza de estímulos que emergiram durante a jornada de estudos “Consciência e humanidade. Fundamentos teóricos, fontes antigas, reflexões modernas e contemporâneas”, que foi realizada em Pádua e online nos dias 20 e 21 de outubro de 2022, promovida pela Asli (Academia de Estudos Luteranos na Itália) e pela Faculdade Teológica de Triveneto, em colaboração com a Absi (Associação Bíblica da Suíça Italiana), o ISE (Instituto Ecumênico San Bernardino de Veneza) e a Cátedra Rosmini da Faculdade Teológica de Lugano.
“A proposta nasceu do desejo de recordar o quinto centenário da Dieta de Worms (1521). Naquela ocasião, Martim Lutero, diante do imperador Carlos V, fez aquele gesto de ruptura que levou à cisão da cristandade ocidental e ainda atestou um princípio novo: a liberdade de consciência. Esse tema é ainda hoje um apelo urgente à responsabilidade da pessoa humana”, destacaram Lubomir Žak (Universidade Palacky de Olomouc, República Checa, Asli) e Michele Cassese (Instituto de Estudos Ecumênicos San Bernardino de Veneza, Asli) na introdução dos trabalhos.
O tema da consciência – um tema complexo e que remete à dimensão transcendental constitutiva do ser humano –, na jornada de estudos “Consciência e humanidade”, foi lido a partir de diversos pontos de vista, na escuta de vozes de diferentes confissões, católica e protestante, e na tentativa de uma síntese ecumênica.
Ao lado do exemplo de fiéis que tentaram conjugar consciência cristã e compromisso político, foram destacadas as contribuições das recentes pesquisas em andamento em psicodinâmica e neurociências.
A primeira sessão acolheu as contribuições do biblista Ernesto Borghi, do filósofo Franco Buzzi, do psicólogo Pierluigi Imperatore e do filósofo Markus Krienke.
As reflexões propostas enfatizaram e se referiram a alguns conceitos-chave, a começar pelo de “limite”, como dimensão de verdade fundamental com a qual a consciência se põe em relação e que marca o fato de não bastar a si mesma.
O limite relembrou a “dependência” do ser humano e a conectou à “ética do reconhecmento e do cuidado”, como manifestação da responsabilidade, tocando as dinâmicas afetivas mais profunda do ser humano e, portanto, aquilo que diz respeito à dignidade da pessoa.
A consciência da “gratuidade” emergiu como um âmbito para tomar consciência de “quem sou” e compreender que a consciência não é um dado apenas intelectual, mas toca o íntimo do ser humano, as profundezas, a “interioridade” e abre o desafio de como se reapropriar hoje do próprio mundo interior.
O problema do “mal”, que talvez interrogue mais o ser humano do que o bem, e a ênfase no fato de que a consciência implica “relação” (com o outro, comigo mesmo e com Deus) são outras ênfases que caracterizaram uma reflexão articulada entre filosofia e ciências humanas.
Na segunda sessão, de natureza teológica, intervieram os luteranos Johannes Schilling e Dietrich Korsch, e os católicos Lorenzo Raniero e Sergio Gaburro.
Várias vezes ressoou a palavra “alteridade” como elemento constitutivo da consciência e da ação: não há consciência sem alteridade, que vincula, interpela, move e pede “responsabilidade”. Isso levanta a questão sobre o que nos une e leva ao reconhecimento da inteligibilidade do real como aquilo que obriga a consciência.
O que me obriga a ser responsável é o reconhecimento do sentido, que é buscado na medida em que é doado e que é a instância última que me mantém prisioneiro, segundo Lutero.
Outro aspecto crucial é a relação “consciência-autoridade” e a divisão das Igrejas sobre as questões éticas.
No entanto, também foi ressaltado que o discernimento moral está presente em todas as confissões cristãs e que, com base nele, o diálogo sobre ética pode ser retomado. No diálogo ecumênico, a consciência moral cristã pode estar no centro de sua ação de discernimento nas problemáticas éticas que ainda dividem as Igrejas, e justamente nesse seu papel ela é vista como um caminho possível de unidade diferenciada.
Abaixo, destacam-se algumas passagens de cada palestra.
A primeira sessão – “Entre filosofia e ciências humanas”, 21 de outubro – foi aberta por Ernesto Borghi (Associação Bíblica da Suíça Italiana, Instituto Superior de Ciências Religiosas Romano Guardini de Trento, Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional – Seção São Tomás de Aquino), com a palestra “Nas raízes da cultura euro-mediterrânea: análises e interpretações bíblicas”.
A grecidade transmitiu um espectro semântico da palavra consciência como consciência de si e do próprio ser, como possibilidade de olhar para o próprio íntimo e de tomar decisões consequentes e regras morais estranhas ao próprio particular, como oportunidade objetiva de discernir o bem e o mal.
Ter consciência, na Bíblia, no entanto, significa algo mais, como explicou Borghi. “Em primeiro lugar, implica estar dotado de um lugar de avaliação subtraído do apanágio de uma única matriz cultural. É algo universal, o apelo decisivo ao qual qualquer um pode confiar pelo simples fato de ser humano. Em segundo lugar, significa dispor de um lugar de projetação que se torna voz urgente de Deus, mesmo que não possa se referir a palavras específicas de Deus, a situações que já ocorreram. Ele deve se inserir no discurso da história da salvação, referindo-se ao seu núcleo central – Cristo morto e ressuscitado – que é o verdadeiro lugar hermenêutico para entender o desígnio de Deus e sua lógica constante.”
A leitura bíblica foi contrabalançada pela leitura filosófica proposta por Franco Buzzi (Veneranda Biblioteca Ambrosiana, Instituto Lombardo Academia de Ciências e Letras, Asli), que falou de “Estrutura e princípios da consciência moral do ponto de vista fenomenológico-transcendental: uma possível reconstrução”.
O relator propôs algumas linhas para uma ética do “reconhecimento”, entendida como “restituição” de si. “A primeira tarefa ou dever absoluto que interpela a pessoa é a de se reconhecer e de se manter na consciência da diferença ontológica. Permanecer na verdade dessa dependência absoluta implica a consciência (teórica e prática) de existir por dom.”
A fim de ser ele mesmo de acordo com a verdade, aquele que recebe totalmente a si mesmo como dom só pode devolver tudo de si mesmo. Há um círculo perfeito entre consciência e liberdade; uma não é possível sem a outra, e uma se exercita sempre e somente na outra e por meio da outra. “Do ponto de vista da ética, reservar-se para o Absoluto torna possível – e este é o aspecto rigorosamente complementar do ‘retrair-se’ – envolver-se totalmente no mundo e na relação com os outros em projetos que realizem o melhor possível a dignidade do ser humano. Nesse complementar ‘retirar-se’ e ‘envolver-se’, exerce-se cotidianamente uma ética que eu chamaria do ‘reconhecimento’ e da ‘restituição’.”
Hoje, a consciência é também objeto de estudo das ciências psicológicas, e as pesquisas neurobiológicas representam um importante desafio para quem pretende sustentar o fundamento de uma compreensão religiosa da pessoa humana.
Foi nesse campo que se moveu Pierluigi Imperatore (Epoché Institut, Nápoles), explicando “O que influi na consciência de acordo com as recentes pesquisas em psicodinâmica e neurociências”. Relembrando os processos e as dinâmicas da constituição do “eu” e, portanto, da autocompreensão, da autoconscientização e da autoconsciência, ele mostrou a implicação dos neurônios (e das redes neurais) e a constituição bioquímica do cérebro humano para o funcionamento da mente humana.
“Os modelos das neurociências afetivas e da psicodinâmica, tanto epistemológica quanto ontológica, não são contrários ao livre arbítrio, graças à ativação do córtex pré-frontal dorsolateral. Este permite intervir com processos de tratamento mesmo em relação a sujeitos com distúrbios graves (por exemplo, autores de abusos).”
Markus Krienke (Faculdade Teológica de Lugano, Asli) abordou o tema “A consciência cristã dos leigos no compromisso político. Entre história e espiritualidade", propondo um panorama histórico a partir da mudança paradigmática na doutrina católica sobre o Estado, provocada pelo Concílio Vaticano II, passando por uma compreensão nova da política, de tipo liberal-cristão, promovida pelo desenvolvimento de uma ética indutivo-reflexiva e, portanto, de tipo autônomo, como alternativa à moral heterônoma do magistério: o catolicismo político.
E, ainda, tocou o tema da consciência e do Estado entre os católicos liberais do século XIX e Rousseau/Hegel, para terminar com exemplos concretos do compromisso dos católicos na política como expressão de sua consciência social cristã: os alemães Ludwig Windthorst, Bismarck, Franz Hitze, Joseph Mausbach, Georg von Hertling, e os italianos Pe. Romolo Murri e Pe. Luigi Sturzo, fundador do Partido Popular Italiano.
“O compromisso dos leigos cristãos na política, na sociedade na virada dos séculos XIX e XX – que vai além de tudo o que havia sido escrito na teologia e no magistério sobre esse tema –, deu uma contribuição imprescindível para uma compreensão cristãmente adequada em coerência com aquilo que afirmavam os primeiros cristãos com base no anúncio de Jesus e no dado bíblico para essa sociedade.”
A segunda parte da jornada de estudos – “Reflexões teológicas”, 22 de outubro – foi aberta com uma contribuição de recorte histórico.
Johannes Schilling (Universidade de Kiel) em sua palestra “‘Aqui estou firme’. Uma sentença e seu impacto” detiveram-se nas palavras de Lutero perante o imperador Carlos V, na Dieta de 1521, que o baniu. “A participação de Lutero na Dieta de Worms marca o nascimento da liberdade de consciência. Pela primeira vez na história, uma pessoa invocou a própria consciência diante do imperador e de todo o império – ou, mais precisamente, sua consciência capturada pela Palavra de Deus.”
Quando perguntado se queria se retratar de suas posições, Lutero respondeu: “Estou impressionado com as passagens da Escritura que foram citadas por mim e estou vinculado em consciência à Palavra de Deus. Por isso, não posso e não quero me retratar de nada, porque agir contra a consciência é difícil, prejudicial e perigoso. Deus me ajude, amém”.
Schilling comenta: “Aqui está o nascimento, o kairos, da consciência. Não temos o texto do discurso de Lutero. Dispomos apenas de um rascunho que, no entanto, não contém as frases finais”. E acrescenta: “Provavelmente, Lutero nunca proferiu as famosas frases em Worms: ‘Aqui estou, não posso fazer de outra forma’, mas as divulgou em primeira pessoa logo após o evento. Como recordação imediata, essas palavras faziam parte de sua confissão – uma confissão cujo centro são as palavras: ‘Capta conscientia in verbis Dei’. Quando se fala atualmente de consciência, quase nunca se menciona o fato de ela ser capturada pela Palavra de Deus, pelo menos na Alemanha. Com a ausência dessa referência, porém, Lutero não é compreendido: a consciência capturada pela Palavra de Deus é algo diferente da coragem civil. E pelo menos os cristãos deveriam manter firme essa diferença”.
“Fides nihil aliud est quam bona conscientia”: essa frase de Lutero foi usada por Dietrich Korsch (Universidade de Marburgo, Asli) como diretriz para uma compreensão atual da consciência, segundo o método da análise hermenêutica e fenomenológica (“O julgamento da consciência e a liberdade da fé. Sobre o fundamento da autoconsciência humana”).
“Viver significa agir, e na ação nós mesmos participamos da realidade comum a todos nós. Percebemo-nos como que colocados na realidade. Sempre a pressupomos. E esse pressuposto é obrigatório para nós.” A obrigatoriedade nasce por meio da imagem interior de mim, que é criada na passagem interior do fato de ser interpelado à formulação de uma resposta: é a consciência que acompanha a minha vida e ação. Mas a consciência é frágil: “Nunca conseguimos alinhar a imagem interior de nós mesmos e as nossas ações no mundo, e, no julgamento da consciência, o fracasso é compreendido como culpa”.
Na grande promessa do cristianismo, Deus cuida do ser humano no fulcro de sua existência, ou seja, da consciência, e o conduz à sua realização: “‘Reino de Deus’, na pregação de Jesus, é a formulação que resume essa ampla pertinência de Deus. Viver na convicção de que o próprio Deus é a causa da passagem do apelo do ser humano à resposta humana é fé. Assim, Deus mesmo está no centro da vida humana como causa da imagem de si mesmo e da consciência atual. Essa presença de Deus na consciência torna possível agir no mundo com uma consciência consolada. Portanto, ‘fides nihil aliud est quam bona conscientia’”.
Lorenzo Raniero (Instituto de Estudos Ecumênicos San Bernardino de Veneza) explorou o tema “A consciência moral cristã no caminho da ética ecumênica. Perspectivas de diálogo”.
Na relação dialógica entre a norma universal e a consciência pessoal do cristão, afirmou, o processo de discernimento assume uma importância particular. Se esse é um traço comum às Igrejas, na ética ortodoxa a prática da oikonomia é a expressão de uma consciência pastoral, e não da consciência pessoal do fiel. Na perspectiva protestante, a contínua relação com Deus em Cristo é a própria condição para a manifestação de uma práxis ética consequente à mensagem do Evangelho.
A ligação da tradição moral católica com o processo de discernimento da consciência cristã se sintetiza nos conceitos de epikeia/aequitas e phronesis/prudentia: na sua ligação, unem-se felizmente a universalidade dos valores e a historicidade da condição humana.
“No diálogo ecumênico, a consciência moral cristã é colocada no centro de sua ação de discernimento nas problemáticas éticas que ainda dividem as Igrejas, e justamente nesse seu papel ela é vista como um caminho possível de unidade diferenciada”, concluiu Raniero. “A retomada do diálogo ecumênico sobre os temas éticos pode partir do julgamento moral da consciência em situação, ou seja, das diferentes respostas para captar como a consciência coletiva das Igrejas remete, de modo sempre dinâmico, ao mesmo horizonte teológico.”
“Reconhecendo a realidade, o ser humano toma consciência: é interpelado. Embora não sendo capaz de entender o Fundamento, não pode ignorá-lo”: assim começou Sergio Gaburro (Faculdade Teológica de Triveneto).
Em sua palestra “Tomar consciência como ser ‘tomado’. Um caminho de liberdade”, ele destacou alguns traços que atravessam o humano, sublinhando, com uma imagem plástica, que “a consciência não é um sujeito que emerge e se torna o maestro da orquestra humana, mas é um complexo de funções que compõem e tocam compondo”. O impulso se acende, e a orquestra começa a tocar compondo.
A atividade filosófica e teológica, queira-se ou não, afunda suas raízes também no inconsciente e no horizonte da liberdade humana, em um território difícil de determinar, que escapa a toda tentativa de apreensão. “Se vem a faltar a consciência de tal limite, iludimo-nos de que podemos nos tornar perfeitamente conscientes. Na realidade, a tomada de consciência corresponde a permanecer sempre no limiar, sem a pretensão de tê-la superado. Não há caminho já pré-estabelecido, mas o caminho da consciência se faz andando! Tal caminho não é o movimento rumo à meta, não é nem mesmo o prazer pelo trecho já realizado e a ânsia pelo que resta a percorrer, mas apenas a experiência interior que é, ao mesmo tempo, um estado de suspensão e de conhecimento e, portanto, figura da própria existência humana.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Consciência e humanidade: diálogo a várias vozes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU