18 Outubro 2013
O individualismo define o bem a partir de si mesmo, do seu uso e consumo; o Papa Francisco, ao invés, diz que o bem é objetivo, mas só se pode reconhecê-lo e praticá-lo passando através da consciência e que, por isso, "obedecer a ela significa se decidir diante do que é percebido como bem ou como mal".
A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 17-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo, "todos podem ficar tranquilos: o Papa Francisco é perfeitamente católico! Mas justamente por isso ele reproduz o paradoxo já ocorrido com o cardeal Martini, de conseguir ser verdadeiramente universal e tocar os corações de muitos, incluindo os não crentes".
Eis o texto.
O acadêmico holandês Ian Buruma afirmava na terça-feira neste jornal que o pensamento do Papa Francisco sobre o primado da consciência "concorda bem com o extremo individualismo da nossa época" e, declarado o seu espanto a respeito, apresentava como ícone-símbolo da posição papal nada menos do que Edward Snowden, o homem que, para seguir a própria consciência, chegou a revelar os segredos da espionagem norte-americana. Mas o que tem a ver esse extremo individualismo com a posição papal? Bem pouco, provavelmente nada.
Quando se fala de ética, trata-se em primeiro lugar de responder a esta pergunta: existe o bem, o bem como algo universal e objetivo que vale para todos, sem depender das circunstâncias, ou tudo depende das circunstâncias e não existe o bem, mas só o conveniente? Essa é a pergunta número um da teologia moral. A pergunta número dois segue logicamente: assumindo que esse bem universal existe, qual é, como se reconhece, quem o pode reconhecer?
A resposta do catolicismo, reproduzida com perfeição na carta do papa a Scalfari, objeto da polêmica de Buruma e sobretudo de alguns católicos tradicionalistas, é simples e clara: 1) existe um bem comum a todos os homens, universal, objetivo, que não depende das circunstâncias ou dos sentimentos ou das emoções, mas que se substancia na natureza das coisas; 2) tal bem consiste naquilo que favorece a vida e, como tal, cada homem pode reconhecê-lo mediante a luz da própria consciência.
A capacidade de conhecer o bem objetivo mediante a consciência subjetiva é expressa pelo catolicismo com o conceito clássico de sindérese, definido pelo Catecismo como "a percepção dos princípios da moralidade" (art. 1780; cf. também Tomás de Aquino, Summa theologiae, I, q. 79, a. 12). O termo vem do latim, synderesis, que reproduz o grego syneidesis, isto é, precisamente "consciência". A sindérese expressa a capacidade luminosa de cada consciência humana de reconhecer o bem mesmo prescindindo do próprio interesse e das diversas circunstâncias históricas e geográficas, a capacidade de saber se se está fazendo o bem ou não, fundando assim o que Hans Jonas chamou de "o princípio-responsabilidade", ou seja, a capacidade de juízo responsável, fundado por sua vez na realidade da liberdade. Normalmente, nos referimos a essa dimensão dizendo "luz da consciência", ou também "voz da consciência".
É clara a diferença com relação ao individualismo extremo que Ian Buruma atribui ao papa: o individualismo define o bem a partir de si mesmo, do seu uso e consumo; o Papa Francisco, ao invés, diz que o bem é objetivo, mas só se pode reconhecê-lo e praticá-lo passando através da consciência e que, por isso, "obedecer a ela significa se decidir diante do que é percebido como bem ou como mal".
O primado da consciência (não ontológico, mas gnoseológico) é um conceito peculiar do catolicismo que o Papa Francisco nada mais fez do que reapresentar, e o fato de que isso soe tão novo deveria levar a sérias interrogações sobre a qualidade de um certo catolicismo de corte predominante nas últimas décadas, ansioso por parecer ortodoxo, mas, na realidade, muitas vezes amante do poder e a ponto de trair o espírito interior mais autêntico do catolicismo.
Exatamente em linha com o que foi afirmado pelo papa respondendo a Scalfari, move-se um documento da Comissão Teológica Internacional (órgão de nomeação pontifícia composto por cerca de 30 eminentes teólogos) de 6 de dezembro de 2008, intitulado "Em busca de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural". Depois de introduzir o princípio da sindérese, o documento magisterial afirma que o bem moral "dá testemunho de si mesmo e é compreendido a partir de si mesmo" (n. 56). Anteriormente, as diversas religiões eram apresentados como "testemunhas da existência de um patrimônio moral largamente comum", que "explicita uma mensagem ética universal imanente à natureza das coisas e que os homens são capazes de decifrar" (n. 11).
São palavras poderosíssimas que indicam que, para a vida moral, não são indispensáveis leis, códigos, exterioridades, autoridades: existe uma mensagem ética "imanente" na natureza das coisas, e os homens, crentes ou não, com a sua consciência, com base na sindérese, "são capazes de decifrá-la". Vem daí que cada um, com a sua razão, pode ser capaz de estabelecer o que é certo fazer e o que evitar, basta que seja honesto consigo mesmo. Naturalmente, isso não é nada fácil, e por isso são de ajuda as leis, os códigos e todos os aparatos exteriores promovidos pela autoridade, que, porém, deve ser ultimamente avaliados e, por assim dizer, autorizados pela luz da consciência.
A tradição católica é clara a esse respeito. Assim diz a Bíblia: "A consciência de um homem às vezes costuma perceber melhor do que sete sentinelas colocados no alto para espiar" (Eclesiástico 37, 14). Assim diz São Paulo: "Tudo o que não vem da consciência é pecado" (Romanos 14, 23). Assim diz Jesus: "Por que não julgam por vocês mesmos o que é certo?" (Lucas 12, 57).
Entre as inúmeras auctoritates, eis o cardeal John Henry Newman: "Certamente, se eu tivesse que envolver a religião em um brinde ao término de um jantar, eu beberia à saúde do papa, se isso vos agrada. Mas antes à consciência, e depois ao papa". Eis o Vaticano II: "A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser (...) Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais"(Gaudium et spes, 16). Eis o jovem Joseph Ratzinger: "Acima do papa, como expressão do direito vinculante da autoridade eclesiástica, ainda está a consciência individual, que, acima de tudo, é preciso obedecer, se necessário até mesmo contra a injunção da autoridade eclesiástica" (citado por Hans Küng no primeiro volume das suas Memórias).
Eis o Catecismo atual: "O ser humano deve obedecer sempre ao juízo certo da sua consciência" (art. 1.800). E eis a Comissão Teológica no parágrafo 59 do documento citado: "Somente a consciência do sujeito, o juízo da sua razão prática, pode formular a norma imediata da ação"; e logo a em seguida: "A lei moral não pode ser apresentada como o conjunto de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é fonte de inspiração objetiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão".
Esse é o núcleo da mais autêntica tradição católica: o processo de decisão é eminentemente pessoal. Nenhum individualismo, portanto, no máximo personalismo, o que é bem diferente. Por isso, todos podem ficar tranquilos: o Papa Francisco é perfeitamente católico! Mas justamente por isso ele reproduz o paradoxo já ocorrido com o cardeal Martini, de conseguir ser verdadeiramente universal e tocar os corações de muitos, incluindo os não crentes.
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O primado da consciência. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU