"Além das vítimas, um papel de singular importância foi desempenhado pelos leigos convidados aos trabalhos da assembleia. Os resultados do relatório Ciase atravessaram a consciência eclesial", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 10-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Sinto agora a possibilidade de confiar” (Michael); “Um verdadeiro processo está ocorrendo” (Jean-Luc); “Haverá um antes e um depois” (Brigitte). As avaliações de algumas das vítimas de abusos de eclesiásticos na conclusão da assembleia geral dos bispos franceses (Lourdes, 2-8 de novembro de 2021) indicam uma mudança que pode vir a ser "um passo decisivo" segundo a avaliação do presidente, Mons. Eric de Moulins-Beaufort.
A onda de choque do relatório da comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (CIASE; cf. SettimanaNews) reconfigurou a ordem do dia, reformulando os temas previstos (pobreza e meio ambiente, ecumenismo, problemáticas internas etc.). Os numerosos leigos que participaram da assembleia encontraram os bispos atônitos e desorientados, alguns até dispostos a renunciar. Um tsunami de emoções, testemunhos e gestos que propiciaram orientações e decisões impensáveis até poucos meses atrás.
Depois de alguns dias, no dia 5 de novembro, a assembleia chegou a algumas orientações básicas. Em primeiro lugar, o reconhecimento de haver uma responsabilidade institucional da Igreja nas violências sofridas pelas vítimas. Além dos limites do direito positivo e do direito canônico, todo o corpo episcopal se reconheceu como responsável diante das 330.000 vítimas relatadas pelo relatório Ciase. Além disso, afirmou a dimensão sistêmica dessas violências. Não são apenas frutos de indivíduos isolados, mas foram possibilitadas pelo funcionamento, pela mentalidade e pelas práticas ativas na Igreja Católica. Tudo isto exige um dever de justiça e de reparação, premissa de um perdão que tenha raízes firmes na verdade.
Na última manhã de trabalhos, foram votadas medidas gerais e particulares. Aquelas gerais são:
- o lançamento de uma Instância nacional independente para o reconhecimento e o ressarcimento ou reparação das vítimas. Funcionará no modelo da Ciase;
- o pedido ao Papa para enviar um grupo de visitantes para avaliar, diocese por diocese, as práxis e os resultados da proteção de menores;
- o refinanciamento de fundos destinados aos ressarcimentos com recurso a bens móveis e imóveis da Conferência Episcopal e das dioceses. A Igreja francesa concorda em empobrecer-se para honrar suas dívidas para com as vítimas;
- a assembleia dá início a nove grupos de trabalho, presididos por leigos e leigas, para responder às recomendações da CIASE em relação a temas relacionados com a gestão e a prevenção dos abusos. Nos grupos deve haver a presença das vítimas. Dizem respeito: - à partilha de boas práticas em relação aos casos relatados; – ao tema da confissão e do acompanhamento espiritual; - ao cuidado dos sacerdotes acusados e sob exame; - ao discernimento vocacional e formação do clero; - ao acompanhamento aos bispos em seu ministério; - ao acompanhamento ao ministério dos padres; - ao envolvimento dos leigos nos trabalhos da Conferência Episcopal; - à análise das causas das violências sexuais na Igreja; - aos instrumentos de vigilância e controle das associações de fiéis com vida comum e dos grupos que se referem a um determinado carisma.
As medidas particulares também são numerosas e significativas. Vou citá-las de acordo com a lista do comunicado dos bispos.
1. Uma revisão e avaliação externa do funcionamento das "células de escuta" já em funcionamento em muitas dioceses.
2. Verificação dos antecedentes criminais para todos os agentes pastorais.
3. Um celebret (é o documento eclesiástico necessário para os padres para confessar e celebrar) não mais diocesano, mas em nível nacional. Isso permitirá evitar migrações suspeitas de uma diocese para outra.
4. A presença de pelo menos uma mulher na equipe de formação dos seminários e das casas de formação.
5. Um grupo de trabalho nacional para redigir uma carta de proteção dos menores (edifícios, formação, regulamentos, verificações) para dioceses, movimentos e comunidades.
6. Um gabinete de especialistas para indicar os riscos e medidas preventivas para a defesa de menores.
7. Todos os conselhos e as comissões da Conferência dos Bispos devem ser compostos por bispos e outros membros do povo de Deus.
8. Os bispos se comprometem a assinar um acordo em cada diocese com o Ministério Público sobre as denúncias por abusos.
9. A indicação de um tribunal penal canônico em nível nacional a partir de 1º de abril de 2022.
10. A comissão doutrinal do episcopado inicia uma discussão sobre os pontos doutrinários indicados pela CIASE (moral sexual, presbiterado, manipulação da Palavra, poder de ordem e poder de jurisdição, etc.).
11. Pedido ao conselho para as questões canônicas para definir os elementos críticos levantados pela CIASE para serem submetidos à aprovação da Santa Sé.
É difícil subestimar as novidades expressas pelos votos dos bispos e é surpreendente que isso tenha sido alcançado graças às vozes das vítimas reunidas pela Ciase, uma comissão encomendada pelos bispos e religiosos/as do país. Está previsto para 2023 um evento sinodal para avaliação e uma confirmação dos passos realizados.
Além das vítimas, um papel de singular importância foi desempenhado pelos leigos convidados aos trabalhos da assembleia. Os resultados do relatório Ciase atravessaram a consciência eclesial. “A raiva é grande, principalmente entre os mais ativos da Igreja” (S. Bukhari). “Na esteira do relatório da Ciase, fiquei dividido entre a tristeza e a esperança. Mas a esperança se desfez após a declaração de alguns bispos. Minha raiva aumentou, especialmente porque a comissão havia encontrado casos muito recentes de má gestão" (S. Adrien). “No plano teológico, nada permite concluir que os leigos sejam ontologicamente incapazes de exercer o poder de governo, mesmo sem serem titulares de tal poder” (A. Kaptijn).
Entre os participantes nos vários conselhos eclesiais, existe uma insistente demanda de passar do poder consultivo ao deliberativo, ou pelo menos serem integrados na decisão final. “Animada por uma fé viva, amo profundamente a Igreja e estou decididamente empenhada, mas neste momento a minha confiança na instituição católica é forte e fundamentalmente abalada pela extensão das disfunções sistémicas reveladas pela Ciase” (H. de Chergé).
Do longo e apaixonado relatório final do presidente da conferência, Mons. Eric de Moulins-Beaufort, recolho algumas sugestões. Os abusos são uma realidade. “Somos obrigados a constatar que a nossa Igreja é um lugar de crimes graves, de ataques intoleráveis à vida e à integridade de crianças e adultos”.
Perante a surpresa de alguns pela ausência de um pedido de perdão, respondeu: “Os amigos (vítimas) ajudaram-nos a compreender que ainda temos um caminho a percorrer. Um bispo disse-nos isso veementemente: podemos sempre pedir perdão a Deus e contar com a sua misericórdia, mas não podemos forçar o perdão de um ser humano a quem ofendemos”. O reconhecimento da responsabilidade institucional vem do pedido das vítimas, dos leigos, da sociedade e, sobretudo, da fidelidade ao Pai manifestada por Jesus. “Estava na hora de dar este passo” para não sermos cúmplices involuntários de atos inqualificáveis. Uma decisão que também é uma libertação. “Livres para mostrar que a nossa Igreja, à qual pertencemos e que queremos servir, não é uma instituição preocupada consigo mesma, afogada na sua autoglorificação”.
Como bispos, "entendemos que precisamos dos outros". “Temos tudo a ganhar confiando nos serviços de polícia e de justiça do nosso país”. Já não podemos contar com o apreço partilhado pela Igreja, nem com a admiração pela exigente solidão dos nossos sacerdotes. “Caminhamos para o empobrecimento da nossa Igreja. Por vários motivos, o desejamos e o aguardamos”. “O conjunto de resoluções que votamos constitui um vasto programa de renovação de nossas práticas de governo em nível diocesano e nacional. Transmitiremos ao Santo Padre, depois de as ter avaliado, as recomendações do CIASE sobre a Igreja universal”. A partilha de decisões, sua avaliação, o controle mútuo, um papel diferente para as mulheres são para melhor servir ao povo de Deus. Junto com a Igreja universal, entramos no processo sinodal em vista do evento de 2023.
A breve, mas precisa carta de encorajamento do Papa Francisco sustentou o caminho dos bispos: “Estou certo de que, juntos e sob o impulso do Espírito Santo, encontrareis os meios para render honra e consolar as vítimas, exortando todos os fiéis à penitência e à conversão dos corações, tomando todas as medidas necessárias para que a Igreja seja uma casa segura para todos, cuidando do povo santo de Deus, ferido e escandalizado, retomando assim com alegria a missão, olhando decididamente para o futuro”.
A assembleia foi enriquecida por um gesto penitencial realizado pelos participantes em frente à basílica do rosário. Um gesto de memória e penitência inspirado numa imagem que se tornou o emblema do evento. Uma das vítimas descobriu e fotografou na igreja da Santa Cruz em Saint Gilles Croix de Vie, na penumbra de um pilar, uma escultura de uma criança chorando e, ao fundo, uma figura eclesial de rosto severo que a vítima identificou com o agressor da criança.
Diante da ampliação dessa imagem, aconteceu o momento de silêncio e oração da assembleia. Olhando para a criança que chora, Mons. Eric de Moulins-Beaufort disse:
“Alguém te fotografou, permitindo que muitos te vissem, te olhassem. Ele se reconheceu em ti, viu na tua imagem o seu destino esmigalhado e violentado. Alguém te redescobriu e encontrou em ti um irmão ou uma irmã, graças à qual poder expressar o próprio segredo. Aquele que tantos e tantas guardaram e guardam sem encontrar palavras para dizê-lo e sem encontrar corações capazes de escuta”. Diante de ti “eu, Eric, bispo da Igreja Católica” junto com os bispos, padres e fiéis “imploro de Deus que neste dia me ensine a ser teu irmão”.
E a Irmã Veronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França, acrescentou: “Meu Deus, os homens e as mulheres cometeram não apenas o injustificável, mas de fato o intolerável. A vossa Igreja foi e é lugar de crimes contra a humanidade da pessoa. Suplicar-te, meu Deus, parece algo muito pequeno, parece demasiado pouco. Suplicar também a cada uma das pessoas cuja vida é lançada no abismo do inferno, porque vós sois, eles são, o seu rosto, meu Deus. Tu, Deus, humilhado, zombado, crucificado”.