19 Março 2021
Srećko Horvat, filósofo croata sub 40, está aprendendo a dirigir. A decisão lhe gera sentimentos contraditórios, mas a considera inevitável, após um ano de pandemia que o obrigou a se estabelecer em seu país natal e a considerar um meio de transporte individual mais seguro, em termos sanitários e também mais rápido. “Na Croácia, a rede de trens está destruída. Você leva mais tempo para ir de Zagreb a Belgrado, hoje, do que 200 anos atrás, no Império Austro-Hungaro”.
Olhar o mundo a partir da Croácia e dos países considerados “periféricos” é uma constante em sua análise como filósofo e também como ativista. Em 2016, com Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia e fundador ao mesmo tempo do partido Syriza, criou o Movimento Democracia na Europa 2025, que buscava uma união de movimentos de esquerda para repensar instituições globais como, por exemplo, a União Europeia.
Junto com Varoufakis, também formou a Internacional Progressista, composta por representantes de diferentes países do mundo, como Noam Chomsky, Naomi Klein e Fernando Haddad. As representantes argentinas são Elizabeth Gómez Alcorta e Alicia Castro.
Confortável no encontro entre a linguagem da filosofia e as referências à cultura popular, habitualmente vinculado a Slavoj Žižek, neste ano de pandemia, Horvat publicou dois livros. Um se chama Everything Must Change!, que consiste em uma série de conversas sobre o mundo pós-Covid-19, com diversas celebridades: de Gael García Bernal a Vijay Prashad, passando por Brian Eno, Saskia Sassen e Shoshana Zuboff. O outro é After the apocalypse, no qual relaciona diferentes ameaças – da crise climática à pandemia, o fascismo e o capitalismo – e convida para uma reinvenção do mundo.
Com sua visão internacionalista, observa com paixão e preocupação a nova geopolítica que a pandemia acentua, entre vacinas escassas e circunscritas, novas ordens globais e uma reorganização do poder.
“Não acredito que a globalização esteja perto de acabar, mas me parece que vemos um novo tipo de globalização. Em vez dos Estados Unidos exportando seus produtos para o mundo todo e sendo muito poderoso financeiramente, através do FMI e o Banco Mundial, a situação está mudando pela influência da China na periferia, no Sul Global, não somente na África, mas também nos Balcãs, que estão ligados à Iniciativa da Faixa e Rota. É uma globalização diferente. Se isso é bom ou ruim, não sei”.
A entrevista é de Natalí Schejtman, publicada por El Diario, 17-03-2021. A tradução é do Cepat.
Até que ponto a pandemia reforçou ideias que você já tinha, como por exemplo a ideia do apocalipse?
Lamentavelmente, confirmou muitos de meus medos e das análises que fizemos com muitos teóricos críticos, por anos ou décadas, no sentido de que se você privatiza as instituições estatais de saúde, educação, cuidado, etc., quando uma catástrofe acontece, causada ou não por seres humanos, é necessário um setor público forte, uma infraestrutura que se preocupe com o futuro das pessoas.
O que vemos, lamentavelmente, é que a catástrofe foi usada como uma espécie de terapia de choque, como diria Naomi Klein, no sentido de que assim como Palantir está penetrando no Sistema Público de Saúde Britânico, privatizando dados dos históricos clínicos, em outras partes da Europa, podemos ver outras empresas do Vale do Silício fazendo uso da pandemia.
E depois tem outra coisa interessante, mas ao mesmo tempo preocupante, que é a geopolítica das vacinas. Enxerga-se um cenário raro – mais do que raro, esperável – em que, na Europa, dois países são os primeiros no avanço da vacinação: um é o Reino Unido e o outro é a Sérvia. Um porque saiu da União Europeia e o outro porque não faz parte. O que a Sérvia está fazendo é buscar doses da vacina chinesa, da vacina russa, etc.
Referindo-se às vacinas russas e chinesas, o primeiro-ministro da Hungria disse, há pouco, a frase de Deng Xiaoping: “Não importa a cor do gato, desde que possa caçar ratos, é um bom gato”. A Croácia também está negociando com a China.
Sendo assim, penso que devido à pandemia, toda a esfera geopolítica está mudando. As coisas que estavam ruins, pioraram, e acredito que algumas coisas que estavam boas, melhoraram um pouco mais, quando se fala em solidariedade, cooperação, ajuda mútua, resistência, com as pessoas abrindo os olhos sobre algumas coisas que estão podres.
Nos últimos dez anos, ficou claro que existe um movimento de extrema direita. No último ano de quarentenas, houve casos em que as direitas de diferentes países rejeitaram medidas de isolamento. Em certa medida, os movimentos progressistas ficaram despolitizados ou invisibilizados, ao se retirarem do espaço público?
Sim e não. Não diria que há uma despolitização, diria que foi uma posição difícil para a esquerda, especialmente a que não está no poder. Nas quarentenas, a maior parte da oposição estava em sua casa. Até mesmo os parlamentos de alguns países estavam fechados. Em muitos países, você ainda tem um estado de exceção.
Mas se você olhar para o último ano, após o assassinato de George Floyd, houve um grande movimento de Black Lives Matter que foi além, a ponto de canalizar a energia progressista nas ruas. Mas depois, obviamente, se você acelera o filme e chega até o atual momento, consegue ver para onde a energia, essa economia libidinal, a frustração e a raiva foram canalizadas: para o Capitólio, com essa performance dos seguidores de Trump.
Penso que existe uma pergunta mais profunda sobre como a esquerda é capaz ou incapaz de usar e entender a economia libidinal, sobre o que fazer com as emoções acumuladas, a frustração, a raiva das pessoas que estão desempregadas e insatisfeitas com o sistema. Vendo Bolsonaro, no Brasil, Orbán, na Hungria, ou a Polônia, que agora proibiu o aborto, podemos notar que essa energia é, muitas vezes, sequestrada, usada e manipulada pela direita populista radical.
Considero que a esquerda tem muito trabalho a fazer, quando se trata de entender as emoções e como sãos importantes as políticas em relação aos desejos, o inconsciente, as emoções, nesta época de redes sociais, quando tudo está mediado e pode ser manipulado. Acredito que a esquerda, até agora, é incapaz de usar isso do modo como a direita faz.
O que ficou da experiência de movimentos de esquerda como Ocuppy Wall Street ou Syriza, na Grécia?
Eu estava justamente em Nova York quando ocorreu e o apoiei muito, ao mesmo tempo em que fui muito crítico, no sentido de que não acredito que a horizontalidade pura, só ocupar as ruas, seja o suficiente para uma mudança política radical.
Não considero que tenha falhado, penso que muitos desses movimentos, de 10 anos - Syriza, Primavera Árabe, Indignados –, renderam-se, como o Syriza, na Grécia, outros dividem o poder, como o Podemos, na Espanha, mas penso que muitos deles deixaram uma grande influência em nossos dias.
Você pode dizer: “falharam, onde está a esquerda, exceto em alguns países [?]”. Mas penso que não se pode olhar os movimentos progressistas desse modo, porque às vezes quando algo reluz como uma falha, é difícil ver nas décadas seguintes como o seu potencial se cumpriu.
Se não tivesse acontecido o Occupy Wall Street, não estou certo de que haveria uma Alexandria Ocasio-Cortez e os democratas socialistas, nos Estados Unidos. O mesmo na Grécia, você não teria o movimento DiEM25 que fundamos com Yanis. E o mesmo com o Fórum Social de Porto Alegre, há 20 anos.
Não devemos desprezar uma luta ou um evento social histórico só porque não teve “êxito” em um ponto. O importante é não nos afundarmos no que Walter Benjamin chamava de “melancolia de esquerda”: “nada é possível, tudo sempre se corrompe”. Penso que isto não é verdade.
Na Primavera Árabe, as redes sociais foram vistas como fundamentais para a mobilização. Agora, são vistas como veículo de mensagens extremistas e notícias falsas. Conservam um potencial útil para a democracia?
Se você observa hoje, a primeira impressão seria a de que as redes sociais estão cheias de notícias falsas, manipulação, o maior problema seria, em termos clássicos marxistas, quem é o dono dos meios de produção. Os jovens iniciam os seus dias indo diretamente ao Instagram ou Tik Tok, nem sequer vão ao Google. Embora seja preocupante que muitos de nós googlelizamos o início de nossos dias. Neste sentido, penso que esta esfera que está privatizada nas mãos de poucas empresas do Vale do Silício é percebida como uma esfera pública.
Existe outro problema agora. Além da extrema direita utilizando as redes sociais ou se organizando para espalhar notícias falsas, você tem outro fenômeno muito interessante na figura de Elon Musk: as redes sociais sendo utilizadas, agora, para a especulação financeira. Ele coloca a palavra “bitcoin” na descrição de seu perfil no Twitter e o Bitcoin cresce 14.000 euros. Só por um sinal puro, o valor cresce.
É o que o filósofo Bifo Berardi chama de semiocapitalismo: os sinais e o capitalismo juntos onde os símbolos, mediados pelas redes sociais, podem criar uma diferença no mundo material. Eu sou sempre pragmático: acredito que temos que usar as redes sociais, inclusive contra as empresas a que pertencem.
Costuma falar do uso dos “memes de produção”, parafraseando os “meios de produção”. Avalia que ainda faz diferença usar os códigos da cultura popular para produzir mensagens que desafiam?
Absolutamente. A história dos memes retorna. Não começou com a internet ou os computadores. Se você observa a Revolução de Outubro ou a Revolução Francesa, a forma como diferentes cartazes e obras de arte circulavam, e com muita frequência, se dava com uma simples mudança nas imagens para produzir uma mensagem crítica. Algo parecido está acontecendo hoje, dos dois lados. Mas, é claro, Bolsonaro e esses tipos de grupos estão usando-os muito melhor.
Pode-se falar sobre o poder dos memes - ou da impotência dos memes, não tenho certeza para ser honesto -, com Bernie Sanders, para a ascensão de Biden. É bastante triste que Bernie Sanders tenha se tornado um meme. Não pôde ser presidente dos Estados Unidos, porque é muito radical para eles, então, se torna um meme.
Mas até mesmo este meme tem uma espécie de potencial emancipatório, como possui uma piada, uma piada de mau gosto, que tem esse potencial emancipatório porque, ao menos, canaliza algo que é traumático para você. Não deveríamos subestimar o poder dos signos, dos símbolos, algo que atrai sua atenção. É uma velha forma de subversão, simplesmente mudando uma imagem para gerar o que Brecht chamava de efeito do distanciamento, de estranheza.
No início da pandemia, você falava de suas consequências sociais em relação ao medo do outro, algo ainda mais perigoso que o próprio vírus. Continua pensando nessa direção?
Penso que é ainda pior do que no início. A situação psicológica de que existe algo que não acaba é realmente dura para muita gente, mesmo que você tenha a sorte de ainda ter um trabalho. Considero que faz parte da natureza do ‘homo sapiens’ se socializar, fazer contato com o outro, sentir o cheiro, ter encontros espontâneos, que agora desapareceram. Não existe espontaneidade no Zoom. Penso que os efeitos são profundos nos medos, na ansiedade, no comportamento social.
Em algum aspecto, isto pode ser pior que a Covid-19, por mais blasfemo que possa parecer. Odeio seriamente o vírus e a pandemia e acredito que devemos nos proteger, mas é preciso olhar também para estes efeitos, que às vezes são mais duros que o próprio vírus. Penso que isto traz muitas perguntas.
Giorgio Agamben foi muito criticado, mas considero que até certo ponto tinha razão. É claro que estava errado em menosprezar o vírus e dizer que não era sério, mas, sim, tinha razão no fato de que isto abria uma nova era na biopolítica, no sentido de que independente do que fosse o vírus, o que estávamos enfrentando era uma verdadeira situação de estado de exceção da biopolítica.
Em Israel, já existe esta espécie de biopolítica da vacinação. Se você está vacinado, pode entrar nos lugares. Na Europa, estão falando em passaportes de vacinação, logicamente, estão criando cidadãos de primeira, segunda e terceira.
O medo do outro cria uma atmosfera perigosa. Depende de quem esteja no poder e de como usa este medo para manipular e para implementar medidas que possam ser totalitárias.
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“A esquerda tem muito trabalho a fazer para entender a importância das emoções”. Entrevista com Srećko Horvat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU