11 Dezembro 2020
Com vasta trajetória no movimento social e uma jovem carreira na política institucional, o filósofo, psicanalista, e líder do MTST Guilherme Boulos (Psol) chegou ao segundo turno das eleições municipais em São Paulo com uma votação expressiva, especialmente nas periferias de São Paulo. Apesar da derrota nas urnas, ele levou 2.168.109 votos na disputa contra o prefeito eleito Bruno Covas (PSDB), quase o mesmo número que a soma de todos os votos recebidos no primeiro turno por candidatos do Psol a prefeituras em todo o Brasil.
Por conta dessa ascensão, Boulos tem sido apontado como um novo rosto de liderança para a esquerda e uma figura capaz de unir o campo progressista. Ele afirma, no entanto, que seu protagonismo não deve estar acima desta união, que ele diz ser o objetivo mais importante e a única chance de derrotar o bolsonarismo: “Se a unidade não prosperar, se não houver uma compreensão e uma maturidade política de lideranças do nosso campo sobre a importância da unidade para derrotar o bolsonarismo, bom, só nos resta lamentar. Se o resultado for este, cada campo, cada partido de esquerda vai ter a sua candidatura, vai apresentar o seu projeto, e a chance de a gente repetir fracassos agindo dessa forma é muito maior. A sociedade toda vê isso, o eleitorado de esquerda vê isso. Não é possível que as direções políticas do campo da esquerda não sejam sensíveis a pelo menos fazer um esforço e uma tentativa nesse sentido”.
Mas pondera: “A unidade sozinha não vai dar vitória para a esquerda, a unidade é uma mensagem importante, mas não é suficiente para uma vitória, para derrotar o bolsonarismo. Tem um outro desafio que é reconectar a esquerda com o povo, esse desafio é a minha obsessão há 20 anos atuando no movimento de base, no MTST, nas ocupações de terra, nas lutas sociais”.
Sobre uma possível candidatura à presidência em 2022, não afirma mas não descarta: “É evidente que eu não tenho como descartar e dizer ‘não serei candidato em nenhuma hipótese’, isso aí é demagogia, não tenho nem cara, nem condição, e nenhuma razão para fazer isso. Mas tampouco acho que ajuda o projeto de esquerda eu chegar agora e me afirmar como candidato. Isso não está colocado para mim, eu não sou daqueles que sai de uma eleição já com a cabeça na seguinte”.
Guilherme Boulos foi escolhido para esta entrevista pelos Aliados da Agência Pública e, durante a conversa, respondeu a várias das perguntas que eles enviaram anteriormente.
A entrevista é de Andrea DiP, publicada por Agência Pública, 10-12-2020
A primeira vez que eu te entrevistei, para o perfil que fizemos para a Pública em 2017, você era super reservado quanto à sua família e a sua vida pessoal, era algo que você não queria expor de jeito nenhum. E como candidato desde 2018 sua vida passou a ser super exposta – sua família, sua casa. Como é isso pra você? Foi um processo fácil, tranquilo?
Olha, você foi a pessoa que fez o primeiro perfil meu que foi publicado. Eu tinha uma reserva muito grande em relação à exposição por duas razões: primeiro porque eu sempre encarei a política como um projeto coletivo. Obviamente existem lideranças que se formam, se legitimam nos processos, mas as lideranças têm que responder a esse processo coletivo, e não o contrário. E segundo, eu sempre trabalhei para preservar quem eu amo e está junto comigo, a minha família. As minhas filhas não tomaram a decisão que eu tomei, então não é justo que elas paguem o preço dessa decisão. Esse sempre foi o meu esforço. Eu consegui manter de algum modo essa reserva, enquanto liderança de movimento social.
Agora, quando eu virei candidato à presidência da República e depois candidato a prefeito de São Paulo, você tem o escrutínio por parte da mídia e uma curiosidade por parte das pessoas. E aí não é mais se ela vai admirar uma liderança ou não. As pessoas querem conhecer quem elas vão ou não votar como seu representante para governar o país ou a cidade. Como eu assumi uma nova tarefa, eu também me abri mais às consequências e às responsabilidades que essa nova tarefa de candidato trouxe pra mim.
A exposição inicial para a família, sobretudo em 2018, foi muito difícil. Principalmente, para as minhas filhas, que escutarem coisas na escola, [sofreram] ataques… e elas sentiram isso, são crianças… Em 2020 eu achei que precisava tratar isso de uma outra forma e talvez a melhor forma de protegê-las, e também a mim, era me antecipar aos ataques que viriam e expor como é a nossa vida de forma transparente, como é a nossa relação, como é a minha personalidade, qual é a minha trajetória, a minha história. E eu acho que foi uma estratégia bem mais acertada porque ajudou a desmistificar e quebrar preconceitos.
Qual a sua avaliação dessas eleições municipais, não só em São Paulo mas no Brasil?
O Bolsonaro perdeu as duas batalhas políticas de 2020, que foram as eleições nos EUA e as eleições municipais no Brasil, que foram decisivas para o projeto que ele construiu.
Se o Trump continuasse presidente dos EUA, o Bolsonaro teria um respaldo internacional. O Bolsonaro, aliás, reduziu a política externa brasileira a uma lambe botas dos Estados Unidos, a um apêndice do departamento de estado norte-americano. E a derrota do Trump deixa o governo dele numa situação muito delicada, porque ele já tinha virado na comunidade internacional o famoso “espalha rodinha” – ele chegava e as pessoas saíam, ninguém queria estar perto dele. E, lamentavelmente, ele arrastou o país e a imagem externa do país para esse lamaçal. A derrota de Trump, além de importante do ponto de vista da correlação de forças em nível internacional, é uma derrota política do Bolsonaro e do bolsonarismo.
Nas eleições municipais, sem sombra de dúvidas o Bolsonaro é o maior derrotado, mesmo com a máquina federal, mesmo tendo atuado de maneira até pessoal e direta indo para programas de televisão. As apostas que ele fez nas maiores cidades do Brasil fracassaram. Nós derrotamos o Russomano, o candidato do Bolsonaro, e tiramos ele do segundo turno em São Paulo. Eu acho que esse foi um dos grandes méritos da nossa campanha, nós fomos responsáveis diretos pela derrota do bolsonarismo em São Paulo. No Rio, o Crivella foi derrotado. Os candidatos dele foram derrotados nas principais capitais.
Outra característica importante dessa eleição é a visão geral da mídia e de analistas políticos que dizem “ah, o grande vitorioso é o centro”. Primeiro, eu acho que nós temos que ser um pouco mais rigorosos com os conceitos. Chamar o Dória de centro me parece uma excrescência. O “bolsodoria” não vai ser esquecido. A velha direita brasileira que agora tenta adotar uma roupagem centrista para se diferenciar do extremismo do Bolsonaro, sempre foi direita. No segundo turno de 2018, essa direita estava entusiasmada com o Bolsonaro, ajudou a elegê-lo, e uma parte dela inclusive dá sustentação no Congresso Nacional para o governo Bolsonaro.
Essa velha direita, que não pode ser chamada de centro, teve vitórias eleitorais importantes [em 2020]. São Paulo e Rio de Janeiro são expressão disso. No entanto, ela não mobilizou paixões na sociedade como o bolsonarismo fez em 2018 – foram paixões negativas, foi o ódio, foi o medo, mas ele mobilizou paixões e organizou um campo na sociedade. O PSDB, o Dória, o Bruno Covas, o Eduardo Paes, que paixões que essa turma mobiliza? Eles ganharam praças importantes nessa eleição, é verdade. Mas é aquela vitória envergonhada, silenciosa, que não aponta para um projeto de cidade, de país e de sociedade. Eles não representam nada para o futuro. Nesse sentido, a novidade política dessa eleição foram candidaturas de esquerda que apresentaram uma novidade.
Nós não tivemos uma vitória eleitoral expressiva no campo da esquerda, tivemos o Edmilson em Belém que é uma vitória extraordinária para o PSOL e para a esquerda, outras vitórias pontuais. Mas, a vitória política e moral, quem conseguiu apontar para um movimento que, embora não tenha tido força ainda para ganhar eleitoralmente, tem a possibilidade de vitórias futuras e de construção de um novo ciclo, de construção de um novo campo, quem fez isso fomos nós.
Aliás, a nossa capacidade de movimentar a juventude é uma expressão clara disso. A pesquisa às vésperas da eleição mostrava a gente com 65% entre jovens aqui em São Paulo. Envolver, mobilizar e engajar a juventude para acreditar novamente na política como ferramenta de transformação, isso é um sinal de futuro muito forte, é o sinal de uma nova geração de esquerda surgindo com capacidade de quebrar barreiras, de voltar a dialogar com os jovens, de voltar a dialogar com a periferia, de disputar as redes sociais de igual para igual com a máquina bolsonarista. Nós fizemos isso nessa eleição. Eu acho que a gente plantou uma semente muito forte que vai florescer, é uma questão de tempo. Por isso que eu vejo que apesar da gente não ter tido tantas vitórias nas urnas, nós tivemos uma inquestionável vitória política nesse campo.
Guilherme Boulos foi escolhido pelos Aliados da Pública para a Entrevista do Mês da Agência Pública (Foto: Agência Pública/José Cícero da Silva)
Me angustia muito essa história de “polarização”, palavra da moda, porque quando se fala em extrema direita, se imagina automaticamente o que seria uma extrema-esquerda, uma esquerda radical. A gente sabe que existiu essa guinada à extrema-direita, mas que essa história de guinada à extrema esquerda é fantasiosa. O Eduardo Paes e o Bruno Covas falaram isso na posse “somos alternativa ao extremismo”.
O Bolsonaro virou a régua política do Brasil tanto à direita, que basta você ficar parado num lugar que você vira bolivariano, comunista. O Dória foi chamado de comunista pelo bolsonarismo, olha o ponto de insanidade coletiva que a análise política chega. Esse jogo dos extremismos, das duas faces da mesma moeda, é falacioso, é mentiroso. Querer equiparar um projeto de esquerda ao Bolsonarismo…
Aliás, quem está fazendo essa equiparação ajudou a eleger o Bolsonaro, alguns deles governam com o Bolsonaro. Qual é a autoridade moral que essa gente tem pra falar de extremismo? Qual é a autoridade moral que o Dória tem – esse sim extremista – com esse discurso ideológico rasteiro anti-esquerda?
Eu acho que um dos papéis para o campo progressista no próximo período é rasgar o véu dessa fantasia, desmistificar cada vez mais. Primeiro mostrando que as nossas propostas – e eu fiz isso ao longo de toda a campanha – não têm nada do extremismo que eles buscam qualificar. O radicalismo é uma palavra que no imaginário social está ligado ao extremismo, mas radicalismo é tomar as coisas pela raiz, é você ir até às últimas consequências dos problemas. Nesse sentido, a vertente do termo radical é uma vertente positiva, é você aprofundar, é você pegar os problemas da sua estrutura. Agora, a forma como eles tratam evidentemente não é essa, eles tentam estabelecer a ideia de extremismo.
Dizer que o nosso projeto é extremista? Nós estamos falando de combate à desigualdade social, nós estamos falando de fazer com que as pessoas tenham teto, de cumprir o estatuto da cidade, estamos falando de cumprir a Constituição em última instância, estamos falando de defender o SUS contra um teto de gastos absurdo, estamos falando de defender a CLT contra uma reforma trabalhista que arranca as possibilidades de sobrevivência com dignidade das pessoas. Nós estamos falando de defender a previdência pública, de defender a educação pública. Nós estamos contra cortar jantar de restaurante popular, nós estamos contra transformar uma das áreas de esporte e lazer mais importantes da cidade em shopping center. Isso é ser extremista? É um escândalo o jogo de palavras que eles fazem. E é o papel da esquerda cada vez mais desmistificar isso e também a ideia de que eles são centro, de que eles são caminho do meio. O Dória e o DEM são o caminho do meio pra onde?
E se colocando como algo novo, alternativo.
Vamos dizer o português claro: essa gente é a turma que se sustenta historicamente no Brasil, é a turma herdeira das oligarquias cafeeiras, é herdeira de um pensamento escravista, elitista, racista, herdeira da ditadura militar. Essa turma do dito “caminho do meio” é a turma que promoveu as transições inacabadas e os grandes acordos nacionais da história brasileira. Esse centrão é o que promoveu a transição democrática sem redemocratização. É o centrão que promoveu o golpe de 2016 e o grande acordo nacional do Jucá. Esse centrão é o que levou também a política ao nível de descredibilidade que ela assumiu no imaginário popular, como uma atividade que não trata os problemas das pessoas, que não resolve os problemas, de que é tudo igual, de que é tudo a mesma coisa. Essa turma é parte do problema, não é parte da solução. Essa turma não tem a menor condição de apresentar um projeto popular, democrático e viável para o Brasil pós-bolsonaro, não tem a menor credibilidade histórica e nem a menor possibilidade política e social para isso.
Juntei aqui algumas perguntas feitas pelos nossos Aliados: O que a esquerda brasileira precisa fazer para resgatar a confiança do eleitor em 2022? Como deve ser a articulação dos partidos? Você acredita em uma frente ampla de esquerda ou isso está longe de se consolidar? E, por fim, quem você imagina derrotando o Bolsonaro em 2022?
Eu acho que a esquerda tem dois grandes desafios nesse próximo período e não é só 2022, é, sobretudo, 2021. O primeiro grande desafio é esse que as pessoas mais falam e que está mais visível, que é a unidade do campo progressista. Unidades não se constroem apenas por conveniências eleitorais às vésperas de uma eleição. A unidade tem que ser cimentada em torno de um projeto, de um debate de projeto para o país e em torno de lutas. Não só lutas institucionais, mas lutas sociais.
Eu pretendo contribuir nesse processo de construção de uma frente, uma articulação, uma unidade entre as lideranças, os partidos e as forças de esquerda no próximo período. Eu acredito que o que a eleição de 2018 e a eleição de 2020 ensinam pra gente é que essa unidade é imprescindível para derrotar o atraso, tanto do bolsonarismo quanto da velha direita.
Antecipar essa discussão sobre os nomes dessa unidade é colocar o carro na frente dos bois, porque você não vai ter unidade. Cada partido tem os seus nomes fortes, quadros importantes, se esse for o ponto de partida da discussão, não tem ponto de chegada. O ponto de partida da discussão precisa ser um projeto comum, uma experiência de luta, de mobilização, de construção de oposição unitária.
E você acha que isso é possível?
Eu acho que é possível construir o diálogo. Se esse diálogo vai conseguir desaguar numa frente, numa expressão única da oposição em 2022, isso é difícil de saber. Isso depende também da disposição de cada ator, eu tenho essa disposição de construir esse diálogo de peito aberto e de chamar e ter outras lideranças na mesa, ter outras forças políticas na mesa. Buscar construir. O meu partido tem essa disposição também e já demonstrou isso. Mas eu não posso falar pelos outros.
Agora, tem muita mistificação em torno disso também, sabe? A unidade sozinha não vai dar vitória para a esquerda, a unidade é uma mensagem importante, mas ela não é suficiente para uma vitória, para derrotar o bolsonarismo. Tem um outro desafio que é reconectar a esquerda com o povo, esse desafio é a minha obsessão há 20 anos atuando no movimento de base, no MTST, nas ocupações de terra, nas lutas sociais. O desafio que se traduz na ideia de um trabalho de base, que se traduz na ideia de uma presença da esquerda nas periferias dialogando, escutando, construindo redes de solidariedade para além de discurso político, construindo vínculo concreto, construindo relações de reconhecimento e acolhimento nos espaços sociais. Esse segue sendo um grande desafio. Sobretudo, no cenário que vamos viver em 2021. O próximo ano é um barril de pólvora anunciado.
Se de fato o Bolsonaro corta o auxílio emergencial, como já disse que vai fazer, nós estamos falando de mais de 50 milhões de famílias brasileiras que dependem desse valor para botar comida na mesa. No mês que vem esse valor pode não vir mais, tudo indica que esse mês pode ser o último. Nós vamos seguir brigando para que continue porque estamos falando aqui da vida, da sobrevivência das pessoas. Mas se não houver essa continuidade, num cenário em que a pandemia ainda persiste com uma sinalização forte de segunda onda, ao mesmo tempo com uma situação social e econômica crítica, nós estamos falando de talvez no ano que vem termos quase metade da população economicamente ativa brasileira ou desempregada ou subempregada, vivendo de bico. Nós estamos falando de um cenário sem precedentes e isso pode ser explosivo para o país.
A esquerda precisa não só estar atenta a isso, mas precisa ajudar a canalizar essa indignação, essa revolta, para uma luta organizada, que leve a mudanças reais no país e que não possa ser aproveitada pelo bolsonarismo como pretexto para novas ondas autoritárias. Eu estou muito preocupado com isso e estou muito focado em aprofundar e ampliar o trabalho de base.
Eu acho interessante você trazer isso porque me lembro de ser uma crítica que você sempre fez, da esquerda que vai para a política institucional e esquece o trabalho de base, e que muito desse momento que a gente está vivendo hoje também passa por aí. Vou juntar então mais algumas perguntas dos Aliados sobre isso: Como derrubar o muro ideológico que foi construído contra os partidos progressistas? E, pensando nesse trabalho de base, como dialogar com uma parcela crescente da população que é evangélica e que rejeita pautas chamadas identitárias? Como se comunicar com essas pessoas e como vencer uma eleição sem deixar de lado pautas como a violência de gênero, a descriminalização do aborto, direitos da população LGBT, política de drogas, que geralmente são pautas que os candidatos evitam por serem polêmicas?
Qual foi a mensagem da minha campanha com a Erundina a todo momento? A de que a gente precisa de uma prefeitura, de um poder público, voltado para as pessoas, com capacidade de sentir o sofrimento das pessoas, com capacidade de ter empatia. Ter a solidariedade como um princípio ético e organizador da política. Se eu pudesse resumir a nossa campanha em uma palavra seria solidariedade, essa foi a mensagem que a gente deixou.
Eu me lembro de uma autocrítica e de uma análise do Pepe Mujica sobre o ciclo de governos progressistas da América Latina, incluindo o dele. Ele dizia: “Nós formamos consumidores, mas não formamos cidadãos”. Ao dizer isso, o que o Mujica expressou? Olha, é claro, é fundamental melhorar o padrão de consumo das pessoas, tirar milhões de pessoas da pobreza, ter programas como o Bolsa Família, ter programas para ampliar o acesso à educação superior, isso é o ponto de partida em um país e em um continente tão desiguais como os nossos. Mas nós não podemos descuidar da disputa de valores, porque se não essas vitórias são facilmente revertidas depois, senão a pessoa que foi beneficiária do Prouni, do Bolsa Família, depois vai votar no Bolsonaro, como aconteceu aqui no Brasil. Então a disputa política não pode ser simplesmente uma disputa de políticas públicas, a disputa política tem que ser uma disputa de projeto de sociedade, uma disputa cultural, em última instância.
A própria esquerda deixou de debater valores, e às vezes deixou a direita ganhar de WO nesse campo. Foi assim no tema da segurança pública: o Bolsonaro deitou e rolou nisso nas eleições de 2018, foi assim em vários temas de costumes, é assim no tema da sexualidade. Foram essas brechas que a direita e a extrema-direita utilizaram. Eu não acho que a melhor alternativa pra esquerda seja não fazer a disputa, seja tentar escamotear os valores que ela acredita. Pelo contrário, não temos nenhuma razão para nos envergonhar diante da sociedade e dos valores que a gente defende. Se esses valores ficarem claros na mesa, quem tem razão para se envergonhar são eles. São eles que querem perpetuar uma sociedade pautada pela desigualdade, pelo preconceito, pela intolerância, só que fazem um marketing em torno disso. Então eu sempre pautei a minha atuação política por tentar trazer o debate de valores, e eu acho que nessa eleição de 2020 a gente teve muito sucesso nisso, e isso explica até onde a nossa candidatura chegou.
Eu acho que o diálogo com os evangélicos também tem que se dar em torno desses valores, dos valores da solidariedade, dos valores da defesa da igualdade. Eu fiz um encontro com evangélicos no 2º turno da campanha, vários pastores. O que eu ouvi deles como as suas demandas são as pautas que nós defendemos, porque a maior parte do povo evangélico é o povo que está nos extremos das periferias sofrendo porque não tem creche, porque não tem posto de saúde, porque falta médico, porque está desempregado. Na fila do posto ou quando você vai matricular o seu filho na creche, ninguém pergunta se você é evangélico, se você é católico, o que que você é.
Agora, existem temas que são tratados de um ponto de vista moral e que são polêmicos. Ao mesmo tempo que a esquerda não pode deixar de tratar esses temas ela tem que saber tratar esses temas. Existe uma diferença tremenda entre você perguntar para uma senhora evangélica do fundão de uma periferia de São Paulo “a senhora é a favor do aborto?”, ela vai lhe responder que não, via de regra. Agora você pode perguntar para ela: “a senhora é favor que se a sua filha, ou a sua vizinha, ou a sua sobrinha, fizerem um aborto ela seja presa ou seja morta?”, via de regra ela também vai te responder que não. “A senhora é a favor da liberação de drogas?”, provavelmente ela vai responder que não. Mas se você perguntar para ela, “Lá na cracolândia, qual a solução que a senhora acha melhor? Jogar bomba nas pessoas que são dependentes químicas, ou buscar um tratamento de redução de danos, de acolhimento e de resgate dessas pessoas?” Muito provavelmente ela vai responder a nossa proposta política. É uma questão de forma de abordagem, uma parte da esquerda também precisa aprender, justamente porque se distanciou do povo, desaprendeu a falar a linguagem do povo e a ter a sensibilidade necessária para dialogar com os sentimentos das pessoas. Eu acho que é isso que nós precisamos resgatar também.
Você acha que discutir a questão do aborto, da sexualidade é de fato uma coisa que a esquerda desaprendeu? Ou eram pautas sempre enxergadas como pautas menores e vespeiros em que era melhor não pôr a mão e fazer acordos, como a gente viu acontecer muitas vezes?
Acho que um pouco dos dois. Eu acho que teve um distanciamento de uma parte da esquerda com a periferia e com o sentimento popular, e ao mesmo tempo teve uma opção política de não tratar essas questões. Nos últimos anos você tem o fortalecimento maior dos movimentos feministas, da pauta LGBT na sociedade. Isso não é só no Brasil, isso é um fenômeno internacional. O movimento negro que eu acho que se coloca num outro lugar mas aqui no Brasil sobretudo a luta do movimento negro é a luta contra a desigualdade social, o Brasil é um país estruturalmente racista. Eu acho que o termo “pautas identitárias” expressa pouco do que são essas lutas e essas batalhas hoje no país. Esses movimentos foram ganhando cada vez mais força para trazer a sua pauta como uma pauta central. E a esquerda tem que ter a capacidade de se abrir para isso e incorporar isso na sua estratégia e nas suas pautas. Agora tem que ser capaz de fazer isso sem espantar o povo, construindo um diálogo que seja popular e que não fortaleça o tipo de estigmatização que a extrema direita faz da esquerda, que fez em 2018 e que segue fazendo em seu submundo de fake news.
Até porque são de fato pautas interseccionais, nenhuma se encerra em si né? Tem aqui uma pergunta também sobre crise da representação, essa descrença generalizada no sistema político, que é uma realidade e que faz as pessoas deixarem de participar justamente das decisões que afetam as vidas delas. Qual seria a maneira de confrontar essa crise e essa descrença generalizada? Como mobilizar as pessoas em torno da política?
Nós precisamos fortalecer formas de participação política direta e ampla dentro do campo da esquerda. Nós temos um desafio organizativo também. O sentimento de anti-política não surgiu do nada, a crise de representação não foi só resultado de uma campanha difamatória contra a política, foi resultado de uma incapacidade do sistema político de dar resposta às demandas básicas das pessoas. A crise de representação é um fenômeno real, não é só um fenômeno produzido ideologicamente, ele tem bases muito históricas. O nosso sistema democrático é muito limitado, aliás, nós nunca tivemos democracia plena no Brasil. Não existe democracia política sem democracia econômica, social, e mesmo com o nível de captura da política pelos grandes interesses corporativos e econômicos, como historicamente se fez e segue se fazendo aqui. Basta ver as planilhas de financiamento de campanha dos candidatos do establishment.
Agora, eu acho que a forma com que nós precisamos responder a isso é também ter a ousadia e capacidade de se reinventar no aprofundamento democrático, é isso que eu defendo, não só pensando na gestão do Estado. Nós fizemos isso, nosso plano de governo aqui em São Paulo, que foi uma formulação que eu fiz junto com a Erundina, governar a partir dos bairros, num contato direto com as comunidades, tirar as subprefeituras do aparelhamento político que tiveram, e vincular de uma forma transparente com as referências de cada região, com as comunidades. Essas são formas do governo, mas para além do governo existem formas de participação que têm que ser constantes na luta política, que eu acho que os nossos partidos ainda não deram resposta. O próprio PSOL ainda precisa desenvolver mais essas formas de núcleo, e acho que está muito aberto para isso, acho que nós vamos conseguir apontar novidades e apresentar espaços de participação política incluindo formas digitais no próximo período, que ajudem a criar o sentimento de pertencimento, que ajudem a criar envolvimento e disposição das pessoas em fazerem o debate político.
Tem também uma pergunta que diz assim: em entrevista à Folha de S. Paulo, Fernando Haddad afirma que o eleitorado se moveu para a direita nessas eleições e que a derrota de Bolsonaro é ilusória. Na mesma entrevista, ele afirma que o PT insistirá na candidatura própria em 2022, prioritariamente com Lula, deixando para analisar para o 2º turno uma possível união com outras forças de esquerda. Como você vê isso? Essa insistência do PT não levará a esquerda novamente a uma derrota?
Eu tenho muito respeito pelo Fernando Haddad, é um amigo, sou grato pelo apoio dele dedicado no 2º turno aqui em São Paulo, mas me permito discordar dele em relação ao balanço das eleições. O bolsonarismo e o Bolsonaro foram os grandes derrotados dessas eleições. É claro que o centrão, que dá sustentação hoje ao governo Bolsonaro no Congresso, teve vitórias. O direitão melhor dizendo. Essa turma teve vitórias, mas essa não é uma vitória do bolsonarismo e do Bolsonaro. O Bolsonaro onde tocou deu errado, então eu não tenho essa leitura. E acho que essa leitura deixa de ver um elemento de novidade que campanhas trouxeram pelo país, de rejuvenescimento, de surgimento de uma nova geração de lideranças de esquerda, e de apontamento para o futuro.
Eu vou seguir fazendo esforço de buscar construir unidade no nosso campo. Se a unidade não prosperar, se não houver uma compreensão e uma maturidade política de lideranças do nosso campo sobre a importância da unidade para derrotar o bolsonarismo, bom, só nos resta lamentar. Se o resultado for este, cada campo, cada partido de esquerda vai ter a sua candidatura, vai apresentar o seu projeto, e a chance de a gente repetir fracassos agindo dessa forma é muito maior. A sociedade toda vê isso, o eleitorado de esquerda vê isso. Não é possível que as direções políticas do campo da esquerda não sejam sensíveis a pelo menos fazer um esforço e uma tentativa nesse sentido. Eu vou insistir nesse caminho.
Por fim, existe uma análise de que você saiu de fato muito fortalecido e como a cara de uma nova esquerda brasileira. E que seria um forte candidato a disputar a próxima eleição à presidência. O que você diz sobre isso?
A gente precisa ser coerente com o que defende. É evidente que eu não tenho como descartar e dizer “não serei candidato em nenhuma hipótese”, isso aí é demagogia, não tenho nem cara, nem condição, e nenhuma razão para fazer isso. Mas tampouco acho que ajuda o projeto de esquerda eu chegar agora e me afirmar como candidato. Isso não está colocado para mim, eu não sou daqueles que sai de uma eleição já com a cabeça na seguinte, para mim a política não é carreira, para mim a política não é um projeto pessoal. Eu saio dessa eleição e tenho consciência do quanto o nosso projeto saiu fortalecido, e de quanto naturalmente a minha figura enquanto representante desse projeto também sai mais forte. Agora eu vou buscar usar essa força para o que eu considero que é a chave, o que o meu grupo político também considera, o meu partido considera que é a chave nesse momento, que é fortalecer a unidade, buscar a unidade da oposição, e ao mesmo tempo fortalecer os vínculos desse nosso projeto de esquerda com o povo brasileiro. Vou me dedicar a andar pelo país, rodar o país no próximo ano, levando esse projeto, vou me dedicar a conversar e articular de maneira exaustiva com outras lideranças do nosso campo, buscando enlaçar os nossos pontos de unidade, vou evidentemente fortalecer o meu partido, o PSOL, como todas as outras lideranças vão fortalecer, mas tendo a consciência clara de que, num momento histórico como o que a gente vive, o principal objetivo de quem é de esquerda no Brasil tem que ser derrotar esse projeto do atraso, e é nisso que eu vou me pautar no próximo período.
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“A unidade da esquerda é importante mas sozinha não garante a vitória. É preciso se reconectar com o povo”. Entrevista com Guilherme Boulos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU