09 Março 2021
Boaventura de Sousa Santos (Coimbra, 1940) está há quase um ano confinado em sua cidade. Aproximadamente, o mesmo tempo em que a pandemia surgiu em Portugal. De lá escreveu um complexo ensaio sobre sua visão do que significou até agora e o que deveria significar no futuro a deflagração da crise sanitária.
O futuro começa agora: da pandemia à utopia [Boitempo, 2021] é o título da obra em que este reconhecido sociólogo defende uma mudança de era, em nível mundial, em que a natureza esteja no centro de tudo. Aproveitamos a oportunidade para falar com ele sobre o porquê tem medo, ao lado da esperança, mas também acerca do teletrabalho, da resposta das organizações populares diante da inoperância dos Estados, da relação entre colonialismo, capitalismo e patriarcado, das notícias falas e sobre como conviver com a incerteza científica.
A entrevista é de Guillermo Martínez, publicada por Público, 06-03-2021. A tradução é do Cepat.
Você comenta que “os privilegiados que puderam continuar trabalhando, através do teletrabalho, se fecharam em casa, paradoxalmente para se sentir menos fechados. E trabalharam ainda mais intensamente”. A casa, o lar, mais uma vez como privilégio que não está ao alcance de todos.
Sim, mas um privilégio com ressalvas. Por um lado, os que puderam teletrabalhar não perderam seu emprego e, em alguns casos, viram como a relação com seus familiares melhorava. Sabemos, por exemplo, que no norte global os pais jovens passavam no máximo 20 minutos por dia com seus filhos, assim, agora, tiveram a oportunidade de estar mais tempo com eles. Ao mesmo tempo, sabemos que em todos os países aumentou, sem exceção, a violência machista e o feminicídio, razão pela qual estar em sua casa pode ser bom, mas também sinônimo de conviver mais tempo com o agressor, neste caso, seu companheiro.
Que impacto o teletrabalho terá a partir de agora?
Digamos que o capitalismo, a nova onda que emerge através da Quarta Revolução Industrial pelas mãos da inteligência artificial, viu nesta pandemia um experimento global para poder mudar as relações trabalhistas. Caminhamos para um estágio em que não haverá fábricas, mas também não haverá protestos de sindicatos, por exemplo, nem greves, muito mais difíceis de se construir, caso não se trabalhe lado a lado, nem se conheça os companheiros. Há um perigo neste capitalismo eletrônico porque, de alguma maneira, significa um regresso ao período inicial do capitalismo, quando os artesãos trabalhavam em suas casas. A única questão é que agora faremos isso submetidos ao empresário.
Inquieta-me ver como os sindicatos e os partidos políticos de esquerda não estão interessados em enfrentar este problema que virá após a pandemia. Há uma estratégia global, e não só no campo trabalhista, mas também na educação, onde serão eliminadas as associações estudantis, dos campi universitários, e será muito mais difícil articular as demandas. Em minha avaliação, o capitalismo não passou por nenhuma crise, mas, ao contrário, se fortaleceu com a pandemia, como já aconteceu na crise financeira de 2008.
Por fim, a ideia do teletrabalho é importante porque criará novas oportunidades, mas os grupos sociais mais progressistas e populares terão que enxergá-lo assim e não deixar que os interesses do capital mundial, que também veem novas oportunidades, prevaleçam.
Escreve entre o medo e a esperança, como se o primeiro fosse imposto e a segunda a única coisa que nos resta. Do que você tem medo? Por que tem esperança?
Tenho medo porque o povo não sai para protestar na rua. Alguns países, sobretudo governados pela direita, aproveitaram a pandemia para legislar questões que pioram a situação das classes populares, como Brasil, Colômbia, Reino Unido, Estados Unidos e Hungria. Ao contrário, na Índia foram às ruas pequenos camponeses e agricultores que viram seus direitos suprimidos.
Meu medo é que os Estados, cada vez mais submetidos à lógica capitalista, não recebam uma pressão popular pacífica para melhorar as condições sociais que serão minadas após a pandemia. E também me causa medo que, embora não vejo o que foi dito acima, sim, observo como a extrema direita cresce em todo o mundo porque eles não têm medo de protestar.
A esperança vem do estudo que fiz da resposta que algumas comunidades deram aos efeitos da crise sanitária. Mostraram que existia uma alternativa possível na qual era possível defender a vida e a economia. Ao contrário, os governos de direita não protegeram nem uma e nem outra, como ocorreu nos países que comentei antes. Minha esperança tem ressalvas. Penso que deveríamos encarar um novo modelo civilizatório, começar uma transição para outra sociedade baseada em um consumo e produção anticapitalista, antirracista e antipatriarcal.
Defende que o surgimento do coronavírus supõe uma mudança de era. A partir de agora, pertencemos à natureza e não vice-versa, ainda que tudo indique que as classes privilegiadas seguirão petrificadas em sua posição de máximo lucro à custa da destruição da natureza. Que cenário enfrentaremos nesta nova era?
A fronteira que separará a esquerda da direita, a partir de agora, será em que posição se localizam. Para a direita, a natureza nos pertence, e para a esquerda, nós pertencemos à natureza. Sendo assim, se existem esquerdas que assumirão a primeira postura, estarão ocupando o papel da direita. Qualquer luta contra a injustiça e a discriminação tem que incluir a Mãe Terra, a natureza, como um dos seres não humanos mais discriminados, silenciados e humilhados.
As políticas ambientais que a União Europeia está promovendo e que as empresas devem cumprir não deixam de ser uma forma continuísta do capitalismo. As empresas vão para outros lugares, como a África e a América Latina, onde sem consciência ecológica destroem tudo o que existe em sua passagem, tanto em nível ambiental, como os povos indígenas que ainda resistem. A Europa não só pode cuidar dos europeus, como deve fazer o mesmo com todo o mundo, e todo o mundo deve cuidar de si mesmo.
O fato de que as patentes das vacinas contra o coronavírus não tenham sido eliminadas é um sinal muito preocupante, do pior que pode nos passar. Os grandes desafios serão em nível global, e alguns não podem estar acima de outros porque, caso contrário, cairemos todos.
A análise que você apresenta gira em torno de três eixos que nos conduziram até aqui e que você tenta desconstruir no ensaio: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Por outro lado, a maioria das pessoas nem sequer se reconhecem como oprimidas ou opressoras, quando são. O que é preciso mudar para tomar consciência disso?
O fundamental é ter uma alternativa. As injustiças não abrem possibilidades de resistência por elas próprias. Há resistência quando há alternativa, por isso defendo que a pandemia mais grave estamos sofrendo há 40 anos, quando nos fizeram acreditar que não há alternativa possível ao neoliberalismo. Isto bloqueou a política e, por isso, temos políticos medíocres na grande maioria dos países. Criou-se a ideia de que não há outras possibilidades e isso faz as pessoas entrarem em certo fatalismo, claramente relacionado ao crescimento do conservadorismo religioso. Como a esquerda aceitou que não há outra solução a não ser o neoliberalismo, a alternativa agora é a extrema direita, que dizem que são antissistema.
Quando surgiu a pandemia, as pessoas não pediram ajuda aos mercados, mas ao Estado, razão pela qual é preciso fortalecer a parte democrática do mesmo e começar um debate aberto e claramente anticapitalista, no qual sejam propostas políticas de transição. As organizações sociais, as universidades e os partidos políticos de esquerda precisam ver nisto que ocorreu uma possibilidade de mudança e perceber que viver em uma crise permanente é uma armadilha, porque o único fenômeno que nunca está em crise é ela própria.
Na primeira parte de seu livro, trata da devastação provocada pela pandemia e, em um dos capítulos, indaga sobre como o capitalismo fez da pandemia o que fez com a vida humana e a natureza: torná-la um negócio, em seus próprios termos. Quem são os vencedores e os vencidos?
Os vencedores foram os capitalistas, que tinham as tecnologias. É o capital tecnológico que venceu, empresas como Google, Amazon e Apple, mas também será o financeiro, caso consiga fazer com que não haja mudanças importantes em relação ao perdão da dívida de alguns países. Em relação aos vencidos, as classes mais baixas que já vinham sobrevivendo como podiam.
Também reflete sobre a resposta que os diferentes Estados deram à crise sanitária. Apesar do fato de que sem saúde não há economia possível, o imediatismo fez com que a recuperação seja ainda mais lenta e, em muitos casos, dolorosa. Neste sentido, o que foi bem feito e o que não?
Na Europa, prevaleceu a ideia de defender a vida, exceto na Suécia, o que teve um resultado catastrófico. Os países que saem pior em termos de economia e proteção da vida foram aqueles desde o início minimizaram os efeitos da crise, muitas vezes, negacionistas e governados pela direita, como o Reino Unido, Estados Unidos e Brasil.
Diante da inoperância dos Estados, em muitas regiões foram criadas dezenas de redes de solidariedade e apoio mútuo entre os cidadãos. Este poderia ser o germe da utopia?
Eu defendo a ideia da utopia a partir da autodeterminação dos povos e das comunidades, do que eles próprios pensam ser o melhor para eles. Não defendo uma solução tipo Rojava ou Zapatista pelo mundo todo, porque as condições são diferentes em cada país, mas muitos lugares se protegeram da pandemia com suas próprias regras, como os povos indígenas da América Latina. Tudo isto, penso, são experimentos de alternativas anticapitalistas, antirracistas e antipatriarcais. Talvez possam ser o início da utopia, mas, sem sombra de dúvidas, não haverá utopia se as mulheres não forem consideradas um sujeito político decisivo. A utopia virá com a autodeterminação e os cuidados, o que inclui a natureza.
Na segunda parte do ensaio, entra de cheio na ideia de que o século XXI pode ser o começo de uma nova era. Inclina-se, segundo descreve, para o que sugere um novo modelo civilizatório, baseado na primazia da vida digna e em uma relação com a natureza radicalmente distinta da que mantivemos na era moderna e que nos levou à beira da catástrofe ecológica e a um mundo distópico viral. Por acaso, temos outra opção para sobreviver?
Não. De fato, agora, sim, que não existe alternativa. Ou defendemos a natureza ou será um suicídio. A vida humana constitui 0,01% da vida total do planeta, e apesar de ser tão pouco, nós nos arrogamos o direito de destruí-la por completo.
Argumenta que “em tempos de pandemia, as notícias falsas se traduzem diretamente em mortes e, portanto, constituem ações criminosas que os países não estão preparados para punir exemplarmente, assim como também não estão preparados para frear eficazmente a difusão de notícias falsas”. Aqueles que propagam estas informações falsas podem estar matando as pessoas?
Sim, sim, podem. A propagação de notícias falsas, daqui para frente, pode constituir crimes contra a humanidade. Demonstro isto no livro: uma publicação em uma página web dizia que tomando grandes quantidades de álcool puro ou de alto teor, matava-se o vírus. O resultado foi a morte de 800 pessoas e quase 30.000 hospitalizações por este motivo, em 80 países diferentes, além de muitas pessoas ficarem cegas por isto.
‘Conviver com incertezas científicas’ é o título de um subcapítulo, em seu texto. Se a ciência é a melhor forma que temos para entender a realidade, como é possível viver no desconhecimento?
Temos que viver a incerteza com grande humildade. Além disso, é necessária uma mudança epistemológica no conhecimento. Eu chamo isto de epistemologias do sul, pois é preciso democratizar e perceber que não existe apenas o tipo de conhecimento científico com o qual estamos acostumados. Por exemplo, os saberes indígenas não podem ser depreciados pela ciência. Assim como devemos lutar contra as notícias falsas, também temos que aprender a valorizar este outro e fugir das certezas absolutas.
Se existem os deuses, talvez eles tenham alguma certeza, mas nós não, somos humanos e temos que conviver com a incerteza.
O propósito do livro é ajudar “aqueles que, durante a pandemia, assumiram a defesa da vida digna e imaginaram políticas e modos de vida que no futuro possam nos defender melhor das pandemias”. Uma vez superado o coronavírus, quais outras pandemias teremos que enfrentar?
A pior pandemia virá se não superarmos esta crise e seguirmos com a ideia de que não existe alternativa ao capitalismo neoliberal. Ocorrerão outras pandemias muito difíceis também, como a de não ter acesso à saúde pública e a conversão desta em um negócio, em vez de um bem social. A pandemia da fome, a pandemia da brutalidade policial, a pandemia da violência machista, a pandemia da falta de moradia e, sobretudo, a pandemia que precisaremos enfrentar se não mantivermos a água como um bem público e de acesso universal. As estimativas marcam que até 2050 metade da população não terá água potável, ao mesmo tempo em que a água já é negociada no mercado de futuros. O capitalismo fará o que for para se antecipar a qualquer situação em que possa se beneficiar.
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“Tenho medo porque o povo não sai para protestar na rua”. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU