13 Janeiro 2021
"Alienado como Hitler sob cerco do Exército Vermelho, presidente não está, porém, perdido. Crê que seu futuro apenas começou, e nisso tem razão. Mas quem dará as cartas não é sua vontade – e sim três fatores, que merecem ser examinados a fundo", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras, 11-01-2021.
Trump não é Hitler, os EUA não são a Alemanha nazista, nenhum exército invasor está a caminho da Casa Branca. Apesar de tudo isto, não é possível evitar uma comparação entre Trump nestes últimos dias e os últimos dias de Hitler. Hitler no seu bunker, Trump na Casa Branca. Os dois, tendo perdido o sentido da realidade, dão ordens que ninguém cumpre e, quando desobedecidos, declaram traições, e estas vão chegando até aos mais próximos e incondicionais: Himmler, no caso de Hitler, Mike Pence, no caso de Trump. Tal como Hitler se recusou a acreditar que o Exército Vermelho soviético estava a dez quilômetros do bunker, Trump recusa-se a reconhecer que perdeu as eleições. Terminam aqui as comparações. Ao contrário de Hitler, Trump não vê chegado o seu fim político e muito menos recolherá ao seu quarto para, juntamente com a mulher, Melania Trump, ingerir cianureto, e ter os seus corpos incinerados, conforme testamento, no exterior do bunker, ou seja, nos jardins da Casa Branca. Por que não o faz?
No final da guerra, Hitler sentia-se isolado e profundamente desiludido com os alemães por não terem sabido estar à altura dos altos destinos que lhes reservara. Como diria Goebbels, também no bunker: “O povo alemão escolheu o seu destino e agora as suas pequenas gargantas estão sendo cortadas”. Ao contrário, Trump tem uma base social de milhões de norte-americanos e, entre os mais fiéis, grupos de supremacistas brancos armados e dispostos a seguir o líder, mesmo que a ordem seja invadir e vandalizar a sede do Congresso. E, longe de ser pessimista a respeito deles, Trump considera os seus seguidores os melhores norte-americanos e grandes patriotas, aqueles que farão a “America great again”. Hitler sabia que tinha chegado ao fim e que o seu fim político seria também o seu fim físico. Trump, longe disso, acredita que a sua luta verdadeiramente só agora começa, porque só agora será convincentemente uma luta contra o sistema.
Enquanto muitos milhões de norte-americanos querem pensar que o conflito chegou ao fim, Trump e os seus seguidores desejam mostrar que agora é que vai começar – e continuará até que a América lhes seja devolvida. Joe Biden está, pois, equivocado quando, ao ver a vandalização do Congresso, afirma que isto não é os EUA. É, sim, porque os EUA são um país que não só nasceu de um ato violento (a chacina dos índios), como foi por via da violência que todo o seu progresso ocorreu, traduzido em vitórias de que o mundo tantas vezes se orgulhou, da própria união dos Estados “Unidos” (620.000 mortos na guerra civil) até à luminosa conquista dos direitos cívicos políticos por parte da população negra (inúmeros linchamentos, assassinatos de líderes, sendo Martin Luther King. Jr. o mais destacado entre eles), como ainda é o país onde muitos dos melhores líderes políticos eleitos foram assassinados, de Abraham Lincoln a John Kennedy. E essa violência tanto dominou a vida interna como toda a sua política imperial, sobretudo depois da II Guerra Mundial. Que o digam os latino-americanos, o Vietnã, os Balcãs, o Iraque, a Líbia, os palestinos, etc.
Joe Biden também está equivocado quando diz que o pesadelo chegou ao fim e que agora se vai retomar o caminho da normalidade democrática. Pelo contrário, Trump tem razão ao pensar que tudo está a começar agora. O problema é que ele, ao contrário do que pensa, não controla o que vai começar e, por isso, os próximos anos tanto lhe podem ser favoráveis, reconduzindo-o à Casa Branca, como podem ditar o seu fim, um triste fim. Enquanto sistema político e social, os EUA estão num momento de bifurcação, um momento, próprio dos sistemas muito afastados dos pontos de equilíbrio, em que quaisquer pequenas mudanças podem produzir desproporcionadas consequências. É, pois, mais difícil ainda do que o usual prever o que se vai passar. Identifico três fatores que podem causar mudanças num ou noutro sentido: desigualdade e fragmentação, primado do direito, Stacey Abrams.
Desde a década de 1980, a desigualdade social tem vindo a aumentar, tanto que os EUA são hoje o país mais desigual do mundo. A metade mais pobre da população tem hoje apenas 12% do rendimento nacional, enquanto o 1% mais rico tem 20% desse rendimento. Nos últimos quarenta anos o neoliberalismo ditou o empobrecimento dos trabalhadores norte-americanos e destruiu as classes médias. Num país sem serviço público de saúde e sem outras políticas sociais dignas do nome, uma em cada cinco crianças passa fome. Em 2017, um em cada dez jovens com idade entre os 18 e os 24 anos (3.5 milhões de pessoas) tinha passado nos últimos doze meses por um período sem lugar onde morar (homelessness). Endoutrinados pela ideologia do “milagre americano” das oportunidades e vivendo num sistema político fechado que não permite imaginar alternativas ao status quo, a política do ressentimento que a extrema-direita é exímia em explorar fez com que os norte-americanos vitimizados pelo sistema considerassem que a origem dos seus males estava noutros grupos ainda mais vitimizados que eles: negros, latinos ou imigrantes em geral.
Com a desigualdade social aumentou a discriminação étnico-racial. Os corpos racializados são considerados inferiores por natureza; se nos causam mal, não há que discutir com eles. Há que neutralizá- los, depositando-os em prisões ou matando-os. Os EUA têm a taxa de encarceramento mais alta do mundo (698 presos por 100.000 habitantes). Com menos de 5% da população mundial, os EUA têm 25% de população prisional. A probabilidade de jovens negros serem condenados a penas de prisão é cinco vezes superior à de jovens brancos. Nestas condições, é de surpreender que o apelo ao anti-sistema seja atrativo? Note-se que há mais de 300 milícias armadas de extrema-direita espalhadas por todo o país, um número que cresceu depois da eleição de Obama. Se nada for feito nos próximos quatro anos para alterar esta situação, Trump continuará a alimentar, e com boas razões, a sua obsessão de voltar à Casa Branca.
Os EUA transformaram-se nos campeões mundiais da rule of law e da law and order. Durante muito tempo, em nenhum país se conhecia o nome dos juízes do Supremo Tribunal, exceto nos EUA. Os tribunais norte-americanos exerciam com razoável independência o papel de zelar pelo cumprimento da Constituição. Até que certos sectores das classes dominantes entenderam que os tribunais podiam ser postos mais ativamente ao serviço dos seus interesses. Para isso, decidiram investir muito dinheiro na formação de magistrados e na eleição ou nomeação de juízes para os tribunais superiores. Esta mobilização política da justiça teve uma dimensão internacional quando, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim, a CIA e o Departamento de Justiça passaram a investir fortemente na formação de magistrados e na mudança da lei processual (delação premiada) dos países sob a sua influência.
Assim surgiu a lawfare, guerra jurídica, de que a Operação Lava-Jato no Brasil é um exemplo paradigmático. Trump cometeu vários crimes federais e estaduais, entre eles, obstrução da justiça, lavagem de dinheiro, financiamento ilegal de campanha eleitoral e crimes eleitorais (o mais recente dos quais foi a tentativa de alterar fraudulentamente os resultados das eleições na Geórgia em Janeiro de 2021). Funcionará o sistema penal como nos habituou no passado? Se assim for, Trump será condenado e muito provavelmente preso. Se isso acontecer, o seu fim político estará próximo. Caso contrário, Trump trabalhará a sua base, dentro ou fora do partido republicano, para regressar com estrondo em 2025.
Esta ex-congressista negra é a grande responsável pela recente eleição dos dois senadores democratas no estado da Geórgia, uma vitória decisiva para dar a maioria do Senado aos democratas e permitir assim que Biden não seja objeto de obstrução política permanente. Qual é o segredo desta mulher? Ao longo de dez anos procurou articular politicamente todas as minorias pobres da Geórgia – negras, latinas e asiáticas – um estado onde 57.8% da população é branca, um estado tido por racista e surpremacista, onde tradicionalmente ganham os conservadores. Durante anos, Abrams criou organizações para promover o registo eleitoral das minorias pobres alienadas pelo fatalismo de ver ganhar sempre os mesmos opressores. Orientou o trabalho de base para incentivar a união entre os diferentes grupos sociais empobrecidos, tantas vezes separados pelos preconceitos étnico-raciais que alimentam o poder das classes dominantes.
Ao fim de dez anos, e depois de uma carreira notável que podia ter atingido o auge com a nomeação para vice-presidente de Biden – no que foi preterida em favor de Kamala Harris, mais conservadora e próxima dos interesses das grandes empresas de informação e de comunicação de Silicon Valley – Abrams consegue uma vitória que pode liquidar a ambição de Trump de regressar ao poder. No mesmo dia em que os vândalos partiam vidros e saqueavam o Capitólio, festejava-se na Geórgia este feito notável, uma demonstração pujante de que o trabalho político que pode garantir a sobrevivência das democracias liberais nestes tempos difíceis não pode estar limitado a votar de quatro em quatro anos, e nem sequer ao trabalho nas comissões parlamentares por parte dos eleitos. Exige trabalho de base nos locais inóspitos e muitas vezes perigosos onde vivem as populações empobrecidas, ofendidas e humilhadas que, quase sempre com boas razões, perderam o interesse e a esperança na democracia. O trabalho de Stacey Abrams, multiplicado pelos movimentos Black Lives Matter, Black Voters Matter e tanto e tantos outros, muitos deles inspirados por Bernie Sanders e a “nossa revolução” por ele animada, podem vir a devolver à democracia norte-americana a dignidade e a vitalidade que Trump pôs em risco. Se assim for, a melhor lição que os norte-americanos podem aprender é que o mito do “excepcionalismo americano” é isso mesmo, um mito.
Os EUA são um país tão vulnerável como qualquer outro a aventuras autoritárias. A sua democracia é tão frágil quanto frágeis forem os mecanismos que podem impedir autocratas, antidemocratas de serem eleitos democraticamente. A diferença entre eles e os ditadores é que, enquanto estes últimos começam por destruir a democracia para chegar ao poder, os primeiros usam a democracia para ser eleitos, mas depois recusam-se a governar democraticamente e abandonar democraticamente o poder. Da perspectiva da cidadania, a diferença não é muito grande.
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Trump não tomará cianureto. Artigo de Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU