11 Novembro 2020
Foi apresentado o relatório elaborado a pedido de Bergoglio pela Secretaria de Estado sobre o ex-cardeal de Washington: até 2017 nenhuma prova de sua culpa havia sido fornecida. Assim que Francisco teve certeza de que o cardeal estadunidense havia cometido abuso sexual contra menores, imediatamente tirou-lhe o cargo em 2018, único caso até então em seu pontificado, e depois, no ano seguinte, reduziu-o ao estado laico. Sua promoção, em vez disso, remonta ao início dos anos 2000, com João Paulo II que estava ciente de algumas acusações contra o prelado dos EUA.
A reportagem é de Francesco Antonio Grana, publicada por Il Fatto Quotidiano, 10-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Até 2017, ninguém, nem o Cardeal Parolin, nem o Cardeal Ouellet, nem o Arcebispo Becciu ou o Arcebispo Viganò, forneceram ao Papa Francisco qualquer documentação relativa às acusações contra McCarrick, incluindo as cartas anônimas que datam do início dos anos 1990". É o trecho mais importante do dossiê sobre o ex-cardeal de Washington, Theodore Edgar McCarrick, realizado em dois anos pela Secretaria de Estado a pedido de Bergoglio.
Do relatório, cuja divulgação, decidida pelo Papa, marca um grande passo na transparência nos casos de pedofilia e que não por acaso é divulgado após as eleições dos EUA, emerge que até 2017 não havia sido fornecida nenhuma prova da culpabilidade do ex-arcebispo da capital dos EUA. Assim que Francisco teve a certeza de que o cardeal estadunidense havia cometido abuso sexual contra menores, imediatamente tirou-lhe o cargo em 2018, único caso até então em seu pontificado, e depois, no ano seguinte, reduziu-o ao estado laico.
“O Papa Francisco - consta também no relatório - só tinha ouvido que havia alegações e rumores relativos à conduta imoral com adultos, que ocorreram antes da nomeação de McCarrick para Washington. Acreditando que as acusações já haviam sido examinadas e rejeitadas por João Paulo II, embora ciente de que McCarrick estivesse em atividade durante o pontificado de Bento XVI, Francisco não viu necessidade de mudar a linha adotada nos anos anteriores”.
O dossiê, portanto, desmente o que foi alegado pelo ex-núncio nos EUA, monsenhor Carlo Maria Viganò, grande partidário de Donald Trump, que afirmou ter informado Bergoglio, poucos meses após a eleição, das graves acusações feitas contra McCarrick, sem que o Papa agisse imediatamente. Por esta razão, Viganò pediu a Francisco que renunciasse. “Em junho de 2017, - consta no relatório - a arquidiocese de Nova York foi informada da primeira acusação conhecida de abuso sexual de uma vítima menor de 18 anos realizada por McCarrick no início dos anos 1970. Pouco depois que a acusação foi considerada fidedigna, o Papa Francisco exigiu a renúncia de McCarrick do Colégio de Cardeais. Na sequência de um processo penal administrativo conduzido pela Congregação para a Doutrina da Fé, McCarrick foi considerado culpado de atos contrários ao sexto mandamento do Decálogo envolvendo menores e adultos, e com base nisso foi exonerado do estado clerical”.
Como foi possível que por muitas décadas, e ao longo de três pontificados, os graves delitos cometidos por McCarrick nunca tenham sido provados pelo Vaticano? E que em 2000 Wojtyla decidiu promovê-lo como arcebispo da capital dos Estados Unidos e no ano seguinte nomeá-lo cardeal? O relatório responde com muita clareza a essas perguntas, repercorrendo a gênese das duas importantes escolhas feitas pelo pontífice polonês. “A documentação - lê-se no dossiê - mostra que o Papa João Paulo II tomou pessoalmente a decisão de nomear McCarrick e o fez após receber o parecer de vários conselheiros de confiança de ambos os lados do Atlântico”. McCarrick havia sido nomeado bispo auxiliar de Nova York por São Paulo VI em 1977 e, em 1981, São João Paulo II o transferiu para a liderança da diocese de Metuchen para depois, em 1986, promovê-lo a arcebispo de Newark.
Quando, em 2000, a oportunidade de confiar-lhe a arquidiocese de Washington foi considerada, o então cardeal arcebispo de Nova York, John Joseph O'Connor, escreveu uma carta ao Papa com as já graves acusações que estavam sendo feitas contra o futuro cardeal. Havia sido observada, afirma o relatório, “atividade sexual de McCarrick com outro sacerdote”. Além disso, "uma série de cartas anônimas, enviadas à Conferência Episcopal dos Estados Unidos, ao núncio apostólico e a vários cardeais nos Estados Unidos nos anos de 1992 e 1993, acusavam McCarrick de pedofilia com seus 'netos'". E novamente: "Sabia-se que McCarrick havia compartilhado a cama com jovens adultos na residência do bispo em Metuchen e Newark" e "sabia-se que McCarrick havia compartilhado a cama com seminaristas adultos em uma casa de praia na costa de Nova Jersey". A gravidade de tais informações fez com que o Papa desistisse temporariamente de proceder à nomeação, decisão também apoiada pelo então núncio apostólico nos Estados Unidos, arcebispo Gabriel Montalvo, e pelo então prefeito da Congregação para os Bispos, Cardeal Giovanni Battista Re.
Mas o papa mudou de ideia depois que McCarrick escreveu uma carta em 6 de agosto de 2000 ao secretário de Wojtyla, o atual cardeal Stanislaw Dziwisz, evidentemente informado sobre seu processo de indicação para Washington e das acusações que o bloqueavam. Nela, McCarrick afirma: “Nos setenta anos da minha vida, nunca tive relações sexuais com qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou idoso, clérigo ou laico, nem nunca abusei ou tratei de outra pessoa com falta de respeito". Anteriormente, Wojtyla havia pedido uma investigação adicional sobre as acusações e os quatro bispos de Nova Jersey entrevistados "confirmaram que McCarrick compartilhou a cama com jovens homens, mas não indicavam com certeza que McCarrick tivesse realizado qualquer conduta sexual imprópria". O dossiê afirma que “o que agora se sabe, graças às investigações realizadas para a preparação do relatório, é que três dos quatro bispos estadunidenses forneceram à Santa Sé informações imprecisas e, além disso, incompletas sobre a conduta sexual de McCarrick com jovens adultos. Tais informações imprecisas parecem ter provavelmente influenciado as conclusões dos assessores de João Paulo II e, consequentemente, do próprio João Paulo II”. Além disso, “o Papa João Paulo II conhecia McCarrick há tempo, tendo-o encontrado pela primeira vez em meados da década de 1970. McCarrick interagiu com ele frequentemente, tanto em Roma quanto em viagens ao exterior, incluindo a visita do Papa a Newark em 1995 e por ocasião das estadias anuais em Roma para a Papal Foundation. A relação direta de McCarrick com João Paulo II provavelmente teve um impacto no processo de tomada de decisão do Papa”.
Um capítulo importante, que não deve ser subestimado, foi o que aconteceu durante o pontificado de Ratzinger. “No início do pontificado de Bento XVI - informa o relatório - as informações recebidas pela Santa Sé a respeito da conduta de McCarrick foram geralmente semelhantes às que estavam disponíveis para João Paulo II no momento de sua nomeação para Washington. Pouco depois de sua eleição em abril de 2005, por recomendação do núncio apostólico e da Congregação para os Bispos, o Papa Bento XVI prorrogou o mandato de McCarrick em Washington por dois anos, mandato que foi considerado um sucesso”. Mas depois, com base em novas acusações, "a Santa Sé mudou drasticamente sua orientação e procurou urgentemente um novo arcebispo para a Sé de Washington, solicitando a McCarrick que renunciasse 'espontaneamente' do cargo depois da Páscoa de 2006".
O relatório mostra também que naquele período D. Viganò, como delegado das representações pontifícias, havia sinalizado aos superiores da Secretaria de Estado as informações recebidas da nunciatura, ressaltando a sua gravidade. Mas, enquanto soava o alarme, ele também percebia que não estava diante de acusações comprovadas. O então Cardeal Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, abordou a questão diretamente com Bento XVI. Naquele contexto, na ausência de vítimas menores, e por se tratar de um cardeal que já havia renunciado ao cargo, foi decidido não abrir um processo canônico formal para investigar McCarrick. Uma escolha que hoje parece um grave erro.
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O relatório McCarrick: “Já em 2000 ele era acusado de abusos contra menores. Wojtyla decidiu pessoalmente promovê-lo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU