07 Outubro 2020
Em 2050, nada será como agora, mas a mudança já está acontecendo, afirma Santiago Niño-Becerra, doutor em Economia e professor de Estrutura Econômica da IQS School of Management (Universidade Ramon Llull), que antecipou o crash de 2010 e conta os dias (os anos) que restam para o sistema atual em seu novo livro: “Capitalismo 1679-2065”. À crise, destaca, surgiu um “cisne negro”, o imprevisto da pandemia de covid-19.
A crise será resolvida em um período de dois a quatro anos, mas o diagnóstico do economista assusta: “Por quê? Porque o que vem é novo. Se for para fazer uma comparação, estamos como em 1785. Foi um momento com uma crise agrária forte, uma paralisação total da economia em toda a Europa e uma situação de grande incerteza. Como agora”.
A entrevista é de Ana Abelenda, publicada por La Voz de Galicia, 06-10-2020. A tradução é do Cepat.
Como a covid agravou e acelerou a crise que enfrentamos há uma década?
A pandemia nos tornou conscientes de coisas que eram sabidas ou de ferramentas que existiam e não eram utilizadas. Foi por necessidade. Já temos uma novidade que se chama teletrabalho. O teletrabalho veio para ficar. Agora, o que os estudos mostram é que existem pessoas que preferem não teletrabalhar, é um assunto pessoal. Mas para a empresa média, teletrabalhar sai muito mais barato que o trabalho presencial.
Então, o inimigo do teletrabalho é mais social que econômico?
Sim. Mas a realidade é indiscutível: antes do vírus, na Espanha, pouco mais de 5% da população estavam teletrabalhando, hoje, são 26%. Isto, claro, tem consequências. Outro dia fui abastecer a moto e perguntei ao frentista se a venda havia se recuperado. Disse-me: “Que!!!, estamos com 30% a menos”. Muito menos pessoas estão transitando.
Isso mudará após a pandemia?
Em 2019, cerca de 1 bilhão de pessoas transitou no mundo. Estou convencido que jamais 1 bilhão de pessoas voltará a transitar. Uma das consequências do vírus é que influencia nosso modo de agir. Muitas pessoas aproveitam tais momentos para fazer reformas em casa. Não sei o que aconteceu, que todo mundo está trocando as janelas. Busca-se o conforto em casa, e isto terá algumas consequências. E sobretudo em um país como a Espanha, que é, ou era, de sair muito...
Há prognósticos mais otimistas que o seu em relação ao que vem, com confiança em uma mudança social e empresarial que atenuará a crise climática.
Estou certo que a crise climática será resolvida. Grande parte da culpa pela crise climática é do sistema produtivo, um imenso esbanjador de recursos. A fumaça que sai de uma chaminé ocorre porque o sistema produtivo não aproveita os recursos 100%. A tecnologia irá resolver a crise climática. Mas é preciso haver um interesse. Dois elementos poderosos lutam quando podem tirar algo, mas quando se chega a um equilíbrio de poder, nenhum vencerá, então, melhor pactuar. A crise climática não será resolvida porque todos nós nos tornamos bons de repente, mas por puro interesse.
A chave da mudança estará na inteligência artificial, afirma.
Sem dúvida. Cuidado, o que nós estamos chamando de inteligência artificial não é autêntica inteligência artificial. A inteligência artificial será um sistema que funcionará sem que ninguém o controle, sozinho. Ele se regulará, aprenderá, chegará à conclusão de que necessita disto e não daquilo. Será positivo, buscará o processo idôneo, mas, claro, a pessoa passará para um segundo plano.
Darwin disse que na evolução sobrevive a espécie que consegue se adaptar. Mas, agora, sobrevive aquilo que se decide que deve sobreviver. “Blade Runner 2049” explica isto bem: o humano como tal está em retrocesso. Há uma espécie nova, evoluída, que assumiu o protagonismo. As pessoas da geração T (as que tem hoje menos de 12 anos), dentro de 40 anos, como serão, como viverão? Não terão conhecido outra coisa...
Sua tese neste livro é que verão o fim do sistema capitalista.
Sem dúvida. Mas eu não digo que haverá uma guerra...
Nossos filhos viverão pior que nós e nós pior do que viveram nossos pais? Consideremos que me refiro a alguém entre 40 e 50 anos.
Sim. Uma pessoa entre 40 e 50 anos, quando tiver 65 anos viverá pior do que vive hoje uma pessoa de 65. Porque as pessoas que hoje têm 65 anos podem desfrutar de um modelo de proteção social sólido, inclusive agora têm acesso a ele. Os que hoje têm de 20 a 25 anos, em 2060, estarão piores do que seus pais. Os resquícios que restarem do modelo de proteção social serão, então, insuficientes.
Alerta que o problema específico da Espanha é a estrutura do PIB, formada a partir de um modelo produtivo muito limitado e muito dependente do turismo e o lazer.
Pense que 28% do PIB na Espanha é gerado pelo turismo, mais lazer, restauração, hotelaria e transporte. São atividades que requerem socialização e movimentação. A pergunta é: o que fazemos para substituir isso que parte?
Mudar o modelo produtivo?
Sim, mas para isto é necessário tempo, investimento. Recordo que houve um ministro da Indústria na democracia, na Espanha, que disse que a melhor política industrial é a que não existe.
Agora, a preocupação é quando chegarão os fundos europeus.
Os famosos 140 bilhões, dos quais, dizem, 60 bilhões vão nos presentear por nossa cara bonita e o resto serão empréstimos, não será assim. Esses fundos estarão sujeitos a alguns projetos (de coisas como digitalização, avanço tecnológico, meio ambiente... não serão para regularizar um hotel) que terão que ser apresentados a Bruxelas, e ver o retorno que esse investimento terá. A Dinamarca irá aproveitá-los, mas a Espanha tem atividades muito tradicionais. Estes fundos não vão salvar a nossa vida.
Veremos cada vez mais desemprego?
Mais gente parada? Muito poucas mais, ou nada mais. Veremos crescer muito o subemprego. Um contrato por duas horas diárias, durante um mês, coisas assim. A tecnologia, na medida em que se sofistique, irá substituir muito trabalho, mas será dentro de 15 anos, quando começaremos a ver substituição em massa de trabalho por tecnologia. E isto favorecerá o subemprego.
Quem serão os beneficiados?
O grande capital das grandes corporações, que estão se concentrando cada vez mais. O setor bancário é um exemplo. Chegamos ao ponto em que quando uma empresa decide absorver a outra, o preço não importa. No mundo sobra dinheiro. O difícil é encontrar quota de mercado, valor agregado...
A Amazon será a dona do mundo?
A Amazon será dona de uma parte do mundo. Acredito que o mundo é das grandes plataformas, as que existem e as que estão sendo criadas, como Walmart. E relaciono isto ao tema climático. Em outubro do ano passado, começou-se a acusar a Amazon de que com tanta entrega estava poluindo. A Amazon disse que compraria 100.000 caminhonetes elétricas. A mensagem: “Poluo? Não tem problema, já corrijo”.
A liberdade está realmente ameaçada pelas medidas anti-covid?
A liberdade individual e a privacidade declinam. O sistema, através do Estado e os poderes públicos, oferece maior segurança, mas o preço é a liberdade. Foi necessário ceder liberdade, primeiro, pelo terrorismo, agora, pela pandemia (que não a nego), e depois será pela necessidade diante da escassez de recursos.
A liberdade depende da renda?
Sim, mas até certo ponto. Hoje, nem o mais bilionário pode correr em uma pista a 300 por hora. Há coisas que nem com a renda. O exemplo é a China.
Um modelo com grandes defensores...
Porque garante uma ordem.
A nova normalidade já estava aqui anos antes da covid, alerta.
Sim, usar máscara não é a nova normalidade. A nova normalidade é a inteligência artificial, a concentração de capital... tudo isto que vem de trás, mas a dinâmica vai se acelerando.
Haverá maior expectativa de vida?
Não. A expectativa de vida foi crescendo, graças à extensão da saúde pública universal, porque interessava. Quanto mais pessoas existiam, mais PIB gerava. Cada vez há uma população excedente maior, não é ‘necessário’ que as pessoas vivam muito, se não são úteis. A expectativa de vida irá reduzir na medida em que o modelo de proteção social retroceder.
Fala apenas de duas classes no futuro, alta e baixa.
Sim, a classe média está retrocedendo, desde fins dos anos 1980. Isto influencia, claro, na redistribuição da renda.
O que acredita que acontecerá em novembro, nos Estados Unidos?
Mudará a linguagem, porque tudo indica que a Administração Trump sairá e entrará a de Biden. Mas em nível econômico, bem poucas coisas mudarão. Os Estados Unidos são cada vez menos competitivos, precisam se defender do resto do mundo com protecionismo. Isto não irá mudar.
Continuará crescendo o populismo avivado por esta crise?
O populismo emergiu, porque interessou a uma série de setores, mas diminui. O exemplo está na Alemanha.
O sistema capitalista morrerá, disse. Vítima de si mesmo?
Irá entrar em colapso por esgotamento. Morrerá, sim, como todos. Por que o sistema feudal morreu? Porque deixou de ser útil. O mesmo ocorrerá com o capitalismo, e já se começa a ver na queda da liberdade individual. Não é que seja trágico, é que a história muda. E nesta mudança muitos setores vão piorar. O homem da rua não morrerá de fome, mas, em resumo, poucas alegrias.
O que nos aguarda neste inverno e em 2021?
Será dominado pelo vírus, mas iremos nos adaptando. Sevilha cancelou a Cavalgada de Reis, veremos coisas assim em toda a Espanha e não nos rebelaremos, adaptaremos. Caso sejam realizados testes massivos, um pouco como em “Minority Report”, com o departamento pré-crime, é possível detectar o enfermo antes que a doença se manifeste, e vão sendo realizadas quarentenas seletivas, e caso sejam desenvolvidos medicamentos, será possível adoçar um pouco a vida. Mas a Espanha fechará este ano com um déficit de 9 a 12%. Como não há uma reconversão da dívida, os netos das crianças que estão nascendo hoje continuarão pagando dívida.
Destaca que “provavelmente a Revolução Francesa do sistema capitalista pode ser o desaparecimento do Estado” e virá um modelo tipo “Admirável mundo novo”, de Huxley.
Sim, um mundo em que cada um sabe qual é o seu lugar, onde o necessário passa a ser o importante. A tecnologia conduzirá o controle operativo da vida. A sustentabilidade, justificada pela eficiência, impregnará, após um tempo, todas as ações produtivas. Eu termino o meu livro com uma frase de Manuel Castells, hoje ministro das universidades, que é uma frase brutal: “O que as pessoas chamam de futuro é o presente, o que acontece é que o ignoram”. Temos o futuro aqui.
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“O capitalismo entrará em colapso por esgotamento”. Entrevista com Santiago Niño-Becerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU