“Os eleitores de Bolsonaro, Salvini e Trump são motivados por paixões tristes”. Entrevista com François Dubet

Donald Trump e Jair Bolsonaro (Fonte: Wikimedia Commons)

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05 Setembro 2020

De onde vem o ódio social? Por que cresce, quando explode e como pode ser detido? Não são perguntas novas, mas certamente aparecem como um sinal de época. Multiplicam-se em centenas de cenas que vão se repetindo ao redor do globo: da violência racial nos Estados Unidos às mobilizações na Hungria, deflagradas pelo próprio primeiro-ministro Viktor Orbán contra a “invasão muçulmana”.

Para o sociólogo François Dubet, ex-diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, o fenômeno não pode deixar de ser lido sem levar em conta a crise das instituições, mas também deve ser entendido relacionado ao crescimento da desigualdade. Estamos diante de “O tempo das paixões tristes”. É assim que chama os tempos atuais e este é o título de seu último livro, onde esmiúça um tema que conhece bem, em uma conjuntura que – embora ainda não estivesse atravessado pela pandemia – parece antecipá-la, com um diagnóstico bastante preocupante sobre os possíveis desdobramentos sociais que enfrentaremos.

A entrevista é de Carolina Keve, publicada por Clarín-Revista Ñ, 03-09-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Por que considerou que “as paixões tristes” era o conceito que melhor descrevia a realidade atual?

Nas sociedades industriais, as desigualdades sociais foram durante muito tempo desigualdades de classe, ou seja, desigualdades vividas como experiências coletivas, como um “nós” ou grupos sociais opostos e estruturados por associações, sindicatos e partidos que representam essas classes sociais: a esquerda contra a direita. As mudanças a partir da cultura de massas e a promoção do indivíduo nas sociedades europeias e na América do Norte, fragilizaram esse sistema.

Hoje, as desigualdades são experimentadas principalmente como experiências e provas individuais e, em grande medida, como formas de desprezo por parte das pessoas que passam a se sentir responsáveis pelo seu próprio destino. Inclusive são mais intoleráveis que as velhas desigualdades sociais porque os indivíduos as sentem “como”: como mulher, como pessoa não qualificada, como muito jovem, ou muito velho, ou muito diferente. Esta experiência não conduz a um conflito social, mas a ressentimentos e formas de ódio: ódio às elites, ódio aos mais pobres, ódio aos estrangeiros. Os eleitores de Bolsonaro, Salvini, Trump, os partidários do Brexit são motivados por essas tristes paixões...

Justamente, é interessante como se detém nas percepções ou sentidos que são construídos a partir do ódio, muitas vezes distantes daquelas demandas que suporiam uma reivindicação social.

Note, os indivíduos falam primeiro de sua experiência pessoal e singular, muito mais do que de uma condição coletiva. É por isso que a ira social, como a dos coletes amarelos na França, nunca conduz a demandas coletivas e programas políticos. Todos falam por si mesmos, mas todos estão unidos em sua ira contra o mundo, contra outros, contra aqueles que não são “o povo”.

Os partidos políticos e os sindicatos são mecanismos para esfriar e racionalizar essa ira social, transformando-a em um conflito social. Mas quando estes partidos e sindicatos se tornam muito frágeis ou, por sua vez, tornam-se membros da elite, os indivíduos já não estão sujeitos a um dever de racionalidade. E é justamente quando podemos ver como se vota no Brexit ou em Trump por razões completamente opostas. Defende-se o diesel e a ecologia, exige-se mais estado de bem-estar, mas menos impostos, somos contra a delinquência, mas também contra a polícia...

As redes sociais e as novas formas de comunicação potencializam estes discursos?

Obviamente, o reinado da Internet acelerou enormemente estes processos de individualização e paixões tristes. Todos têm acesso direto ao espaço público sem passar pelo controle dos meios de comunicação. Este é um progresso democrático inegável e muitos movimentos sociais, ambientalistas e feministas em particular, nasceram na web. Mas cada um testemunha por si mesmo e se torna um movimento social por si mesmo. Os ódios, os rumores e as fake news estão se espalhando como evidência, e os regimes autoritários, como os movimentos populistas, utilizam todas estas redes para somar apoio.

Tudo isto pode ser muito perigoso porque, por mais que não seja satisfatória, a democracia deve esfriar essas paixões, gerar acordos sobre algumas verdades, aceitar as minorias. Hoje, todas estas experiências de desigualdades e estas tristes paixões desaparecem na direção oposta. Como disse o comediante italiano Beppe Grillo, “não votamos com a cabeça, votamos com o estômago”.

A fragilidade das instituições certamente é um fator, mas basta para explicar esse sentimento social que descreve nossa época?

Acredito que na Europa e na América do Norte estamos experimentando uma mudança política. Até os anos 1980, o eleitorado de esquerda era formado por trabalhadores com pouca formação e pelas classes médias progressistas. Hoje, em todas as partes, os trabalhadores com pouca formação já não votam. Não votam na extrema direita, nem nos partidos populistas. Por sua parte, o voto progressista, liberal, ambientalista e de esquerda é o das classes médias urbanas altamente qualificadas em educação. Esta é uma mudança radical porque as classes trabalhadoras se sentem desprestigiadas pelos graduados, qualificados e cosmopolitas defendendo as minorias.

Então, a pergunta seria o que fazer diante disso...

Em minha opinião, aqui, o problema central é de natureza política. As desigualdades e a ira social não são nada novo e a característica dos movimentos sociais e a vida política é lhes dar uma forma organizada, institucionalizar os conflitos sociais. Quando as sociedades se transformam tão violentamente pelas mudanças no capitalismo e o planeta, a formação de novos marcos políticos nacionais e internacionais se torna uma urgência vital, caso não queiramos que as democracias desapareçam.

A respeito da situação atual, em uma entrevista recente, você enfatizou que “a lição que se deve aprender desta crise se refere às pequenas desigualdades sociais”. O que quer dizer?

As grandes desigualdades, as que são estabelecidas por esse 1% ou 0,1% de mais ricos contra o resto da população, devem ser condenadas energicamente. Mas para os indivíduos são as “pequenas” desigualdades que importam, as que causam sofrimento: a segurança, a saúde, a educação. E vimos isto de forma muito clara com a pandemia de Covid-19. O tamanho da moradia, a capacidade de ajudar as crianças com suas tarefas escolares, a possibilidade de teletrabalho e a obrigação de viajar se tornaram fatores decisivos, fundamentais, e não nos atentamos para como – por exemplo – as taxas de mortalidade variam muito segundo a cidade, a idade, a posição social.

As classes médias, por mais progressistas que sejam, rejeitam a diversidade social, preferem as desigualdades educacionais, e as classes populares catalisam seus sentimentos aos estrangeiros e imigrantes. Sem ir muito longe, para pensar exemplos concretos, a Catalunha e o norte da Itália já não querem pagar pelas regiões mais pobres. Em países centrais, as políticas liberais contra os pobres e a assistência social foram apoiadas pelos eleitorados populares: Trump e Bolsonaro foram eleitos por aqueles que tradicionalmente votaram na esquerda.

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