04 Junho 2020
‘Vou lembrar aqui, querido Bep, modo como era chamado por sua mãe, dos episódios que me lembram você’. Leia o texto da antropóloga Lux Vidal em homenagem a Bepkaroti, que morreu vítima de Covid-19 no último domingo (31) na Terra Indígena Xikrin do Cateté.
O texto é de Lux Vidal, publicado por Instituto Socioambiental - ISA e reproduzido por Amazônia.org, 03-06-2020.
Sábado, 31 de maio, faleceu, vítima de Covid 19, Bepkaroti Xikrin, o meu irmão na época de minhas pesquisas nos anos 1970-1980. Vivíamos sob o mesmo teto, a casa de seus pais, o chefe Bemoti e sua esposa, exímia pintora e conhecedora das centenas de nomes disponíveis para serem distribuídos aos tabdjuo, netos(as) e sobrinhos(as) das diferentes casas na aldeia. Enfim, uma família tradicional e de prestígio.
Eu nunca o chamei de kamu, irmão, e ele nunca me chamou de kanikwe, irmã, porque a gente nunca se falava, ele tinha sua rede em um canto da casa, um pouco afastada dos pais e de suas irmãs menores, a Bekwe e a Kokoiakati, e a minha rede ficava em um canto oposto, ainda mais longe da família. Quando eu acordava de manhã, ele já havia saído, e de noite, quando me recolhia para dormir, ele ainda não havia voltado. Sua mãe, quando ele demorava, sempre o chamava para poder fechar a porta de palha de babaçu e dar umas cuspidelas para afastar os mekaron, espíritos.
Bepkaroti Xikrin. (Foto: Isabelle Vidal/ISA)
Ele havia adotado e amansado uma anta que vivia na aldeia, perto da casa. Ela ia para o mato, mas sempre voltava, o que ela gostava mesmo era de passear na pista de aviação e, quando chovia, correr alegremente de um lado para o outro, uma demonstração de alegria. Ela chamava-se Ngrei, um nome cerimonial, bonito e, segundo o mito, nome em voga entre as antas em suas respectivas moradas. Ele me disse que ela era minha sobrinha, kamu kra, filha do irmão. Ele nunca mais mencionou essa relação de parentesco, a não ser uma vez, pelo telefone, quando me disse que Bemoti, meu pai, estava morrendo em Belém.
Sua mãe, Nhiokpú, sempre pintava e ornamentava seus filhos com grande cuidado, eles ficavam muito belos, tenho fotografias. A anta Ngrei era meio sapeca, às vezes ela passava, enquanto eu dormia, debaixo de minha rede, quase me expulsando dela, um susto e tanto! Uma outra vez ela roeu o cabo do rádio que o ligava ao gerador, que ficava do lado de fora do barracão da missão, impedindo-me de me comunicar com Marabá na ocasião de uma forte hemorragia de Nhiokaê, esposa de Botiê. Tive que pedir a Bep-Djare, amigo de sempre, para pegar uma canoa, descer o Itacaiúnas até o lugar chamado Calderão, lugar de pesquisa da Meridional, subir até Carajás e pedir urgentemente um helicóptero para levar Nhiokaê ao hospital da Vale.
Vou lembrar aqui, querido Bep, modo como era chamado por sua mãe, dos episódios que me lembram você: um quando ainda era criança, quando realizamos uma expedição de perambulação pelo território na mata, o meú, e o outro quando já era mẽbengôdju, mais crescido, quando você participou e mesmo comandou um episódio que custei a entender, a matança, de noite, de todas as galinhas da Maria, esposa do senhor Joaquim, casal muito querido, que ajudava nas tarefas do Barracão da missão.
Quando saímos para o meú com sua família, você e outras crianças já tinham ido atrás dos mẽnôrônu-ngokonbori, responsáveis por limpar o caminho na floresta até o primeiro acampamento, carregando seus maracás nos ombros, para que as famílias, com a carga e as crianças, pudessem passar. Vocês não iam muito longe, em um certo momento vocês voltavam, esperando suas famílias, que ainda arrumavam a casa e colocavam nas grandes cestas o que levariam para o mato. Vocês, já fortinhos, ajudavam a carregar e muitas vezes faziam-se de mensageiros, levando víveres de um lado para outro, ou levando caça para os velhos e doentes que tinham ficado na aldeia, e voltando aos acampamentos com sacos pesados de farinha para alimentar a expedição.
Para as crianças, como dizia o Padre Caron, o meú são férias, é grande liberdade, é quando, reunidos em bandos, os meninos imitam os adultos, constroem uma casinha onde se reúnem de noite, constroem seu conselho, o ngobe. Discutem, planejam suas atividades e saem juntos no mato para caçar aves, pescar e coletar frutos. Aprendem a conhecer seu território e o nome de todos os lugares, as antigas aldeias e sua história. Recolhiam matéria prima e fabricavam suas armas ou aprendiam observando os adultos. Você, Bepkaroti, já era o pequeno chefe que comandava a turma.
As meninas também se sentiam mais livres, acompanhavam suas parentes para a coleta no mato, mas o que elas gostavam mesmo era se reunir para pintar, passavam horas pintando cuias, frutão e também se pintando, pela primeira vez, umas às outras, o que não faziam na aldeia. No mato, se elas erravam, não tinham importância, as regras eram mais flexíveis, todos se sentiam mais livres. De noite, na intimidade do acampamento, todos juntos ao lado de seus fogos, falavam de um canto para o outro e mesmo as mulheres falavam formalmente, livremente, de sua pequena cozinha de palha, que elas mesmas haviam construído. Uma noite sua mãe ficou doente, assim lhe cedi a minha rede, onde ela dormiu com Kokoiakati. Eu fiquei dormindo no chão com a Bekwe e você ao meu lado, na esteira. Bemoti dormiu meio atravessado.
Bepkaroti Xikrin. (Foto: Isabelle Vidal/ISA)
O segundo episódio me lembro muito bem, até porque, para mim que não sou Xikrin, parecia muito estranho.
Uma bela manhã correu a notícia de que um grupo de jovens mẽbengôdju, sob o comando de Bepkaroti, havia matado todas as galinhas de Maria, ela que era sempre tão atenciosa e solidária com os Xikrin que lhe pediam ajuda e conselhos. Diante do desastre, Maria ficou revoltada e Joaquim, quieto, sentado em um canto da cozinha. Eu achei tudo isso um absurdo e uma grande injustiça, um atrevimento indevido. Subi até a aldeia, falando alto comigo mesma ao longo do caminho, decidida a ter uma conversa com o meu pai, Bemoti. Um silêncio constrangedor cobria a aldeia, algo havia acontecido.
Chegando em casa, desembrulhei em bom tom tudo o que tinha a dizer, levantando a cabeça, porque Bemoti era muito alto. No fim, ponderei que ele deveria ter pyaam, vergonha do que aconteceu. Ele me olhou e foi bem severo, quem deveria estar com pyaam, vergonha, segundo ele, era eu, porque não é assim que se fala com um chefe, chefe, benadjure, não tem pyaam. Colocou-me em meu lugar. Fui deitar na minha rede.
Bep, só muito mais tarde entendi que aquilo era uma “transgressão” necessária para os jovens que devem se afastar da casa materna e de sua família, encenando de maneira dramática essa ruptura, para se aproximar, aos poucos, do conselho dos homens, o ngobe, onde serão introduzidos na hora certa por um mẽnõrõnu tum, um ngôkonbori. Conselho no qual ficarão por muito tempo sentados, apenas escutando as palavras fortes dos mẽkrare, homens maduros e os conselhos dos mẽbengei, anciões, que gostam de contar as histórias dos antigos, os Mẽtumiaren.
Entendi ainda melhor o que havia acontecido quando recolhi as narrativas, mitos, sobre os mẽbengôdju kamri, as aventuras de Bekatenti e Motkruoti e as travessuras de Poti. Estava tudo ali, registrado, como nos contos edificantes que nós, kuben, também sabemos contar, só que são diferentes.
Mais tarde, nos anos seguintes, fiquei muito ocupada com a demarcação das terras de vocês e outras tarefas burocráticas, mas me lembro que você gostava de jogar futebol, que no início vocês jogavam segundo as regras do jogo de peteca, tradicional, isto é, apenas passes dirigidos aos compadres, os krôbdjua, gritando krô, krô!
Depois não me lembro, tudo começou a se complicar. Mas agora nesses dias, relendo antigos cadernos de campo, registrei no caderno amarelo de 1992 como você era contra a invasão das madeireiras, discutindo com os outros Mẽbengokré que eram a favor. Foi uma grande perda da madeira nobre dentro da Terra Indígena e no entorno, totalmente devastado. Não sei se você sabia que os Xikrin do Cateté viviam, no passado, à sombra da maior reserva de mogno do planeta.
No fim do ano passado, em Marabá, ao concluir o nosso reencontro, planejado por você e a Bel, ao lado de sua mulher, Ngrei kati, sempre atenta, você lembrou dos antigos, de seu pai Bemoti e de seu avô, Bepkaroti velho. Todos se emocionaram e se recolheram por alguns instantes, chorando.
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Homenagem a Bepkaroti Xikrin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU