01 Agosto 2018
O antropólogo Cesar Gordon avalia que mineradora não trata de maneira adequada as questões relacionadas aos Xikrin.
A entrevista é de Naira Hofmeister, publicada por Agência Pública, 30-07-2018.
Antropólogo, doutor e mestre pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Cesar Gordon pesquisa os índios Xikrin desde 1998. Um de seus livros mais famosos, premiado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebengokre) aborda as relações entre esse povo e a sociedade não indígena e suas consequências – uma delas, o pagamento de compensações financeiras aos indígenas pela Vale, que explora 14 empreendimentos minerários no entorno da TI Xikrin do Cateté. “A Vale despende muitos recursos com os Xikrin, porém esses recursos são mal aplicados, poderiam ser investidos de maneira muito mais inteligente e responsável, realmente pensando na qualidade de vida e no melhor futuro dos índios”, critica, salientando atitude predatória e imediatista da mineradora nessa relação.
Mesmo sem ter ido recentemente às aldeias, Gordon mantém contato com os indígenas e acompanha suas manifestações sobre o projeto Salobo, que motivou recentemente abertura de Ação Civil Pública na Justiça Federal. “Os Xikrin estão muito cientes desses problemas e têm se organizado, se mobilizado e lutado bastante para garantir melhores condições de vida, diante de forças políticas e econômicas muito maiores que eles”, salienta.
Como avalia os impactos desses projetos da Vale sobre os Xikrin?
No caso da exploração de níquel pela operação Onça Puma, o resultado foi a contaminação do rio Cateté, já fartamente documentada e comprovada, causando notórios prejuízos à saúde indígena, tal como denunciado pelo médico João Paulo Vieira Filho. Isso ensejou, a propósito, ação do Ministério Público Federal do Pará, que chegou a determinar a paralisação das atividades de mineração. Não sei como a Vale pretende equacionar o problema urgente da recuperação do rio Cateté e sua despoluição. Não gostaria de ser leviano, mas muito provavelmente a companhia tomará medidas apenas paliativas. Tudo isso, evidentemente, aflige demais os índios. O rio Cateté tem uma importância fundamental para eles, tanto do ponto de vista da subsistência quando do ponto de vista cultural. A poluição e eventual destruição do rio são um crime gravíssimo contra essa população indígena e contra o meio ambiente.
E os impactos de Salobo sobre o convívio social entre populações das duas terras indígenas, são graves?
O projeto Salobo, de mineração de cobre, situa-se ao norte/nordeste da Terra Indígena Xikrin do Cateté. As minas estão do lado de fora da terra indígena, porém muito próximas do rio Itacaiunas, do qual o Cateté é um tributário, além de cercadas por unidades de conservação, as florestas nacionais do Itacaiunas e do Tapirapé-Aquiri, e a reserva biológica do Tapirapé. De fato, essas minas encontram-se a meio do caminho entre os Xikrin do Cateté e os Xikrin do Bacajá, mais ao norte. É difícil avaliar, sem uma pesquisa de campo mais detalhada, que tipo de impacto pode haver na relação e na comunicação entre esses dois ramos do povo Xikrin em virtude das operações do Salobo. De todo modo, há outros impactos importantes no meio ambiente e, sobretudo, na fauna cinegética, que afetam diretamente a vida dos Xikrin.
Como o corte das castanheiras, por exemplo?
Certamente há destruição ambiental. Não apenas castanhais, mas outros recursos vegetais e animais, que são importantes para os índios. Eles acabam se adaptando às mudanças, obviamente, mas isso traz prejuízos ao modo e à qualidade de vida.
E o cemitério indígena que os Xikrin dizem estar sob o local onde foi erguido Salobo?
Certamente o projeto Salobo está em área de perambulação histórica dos Xikrin. Não vamos esquecer que eles ocupam a região do Itacaiunas desde pelo menos meados do século XIX, então ali há assentamentos antigos, sítios arqueológicos, cemitérios. Os Xikrin não fazem culto aos ancestrais, mas, independentemente dessa ausência de elemento religioso, toda a região norte e nordeste da terra indígena é de ocupação e perambulação tradicional, então guarda um sentido histórico e identitário para os índios. Mesmo considerando que a região tem uma importância econômica para o país, era de se esperar da Vale e do órgão indigenista mais respeito à história dos Xikrin. Por que a Vale não ajuda a criar um projeto sério de estudo histórico e arqueológico daquela área, com produção de documentos e registros?
Esses impactos estão sendo negligenciados?
É lamentável que uma empresa do porte da Vale até hoje não trate de maneira adequada e responsável essas questões, depois de tantos anos de relacionamento com os Xikrin. Na propaganda, a empresa vende uma imagem ao mundo de preocupação com o meio ambiente e com as comunidades locais, mas na prática, deixa muito a desejar. E não é por falta de recursos. A Vale despende muitos recursos com os Xikrin, porém esses recursos são mal aplicados, poderiam ser investidos de maneira muito mais inteligente e responsável, realmente pensando na qualidade de vida e no melhor futuro dos índios. Mas isso não ocorre. Não há um real compromisso da empresa. Até hoje, a Vale continua a ver os índios como um entrave e um incômodo. É uma atitude predatória e imediatista.
Os Xikrin se ressentem de estar sendo sitiados pela mineração, especialmente pela Vale, que tem 14 empreendimentos no entorno da TI Cateté.
Esse cerco de operações minerárias representa um risco muito grande tanto à saúde quanto ao modo de vida, à cultura e a própria sobrevivência dos Xikrin. Eles estão ficando espremidos no meio de projetos de alto impacto ambiental por todos os lados. As mudanças são muitas, não dá para falar de tudo isso aqui. Felizmente alguns antropólogos que trabalharam com os Xikrin puderam documentar essas mudanças e deixar registradas em artigos acadêmicos, relatórios de pesquisa, teses e livros: Lux Vidal, Isabelle Giannini e eu mesmo. O trabalho do médico João Paulo Botelho Vieira Filho, de mais de 40 anos junto com os índios, também é de valor inestimável. Os Xikrin estão muito cientes desses problemas e têm se organizado, se mobilizado e lutado bastante para garantir melhores condições de vida, diante de forças políticas e econômicas muito maiores que eles.
Nesse sentido, as compensações financeiras exigidas pelos indígenas às mineradoras são uma alternativa justa?
As compensações financeiras são devidas, são importantes, mas não deveriam ser a única resposta de empresas do porte da Vale. Deveria haver um maior compromisso com o futuro das populações indígenas que vivem no entorno desses grandes projetos, um entendimento mais amplo do valor cultural, histórico, ambiental. E, para culminar, é uma pena que o país vive hoje uma situação de colapso e desmando institucional, mergulhado em corrupção, ilegalidades e uma espécie de “vale tudo”. A empresa não faz. E os órgãos governamentais não fazem. Então os índios ficam em situação difícil, resta a atuação, em geral, muito correta, do Ministério Público, que tenta frear abusos. Mas diante de todo esse cenário brasileiro não é por acaso que tivemos desastres gravíssimos como o de Mariana. Não é por acaso que o projeto Belo Monte é marcado por escândalos. Nesse contexto, seria quase um milagre esperar dos executivos e diretores da Vale alguma sensibilidade para a questão indígena.
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“A Vale continua a ver os índios como um entrave e um incômodo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU