29 Mai 2020
O psicanalista Jorge Alemán analisa a “radical catástrofe” gerada pela covid-19 em Pandemónium: notas sobre el desastre, publicado em ebook por Ned. “O capitalismo já mostrou, e pode voltar a repetir, que é capaz de se rearmar e seguir seu movimento sem fim, a não ser que os países emergentes reinventem um possível caminho de emancipação, levando a uma radicalização da democracia frente às derivas neofascistas tão ativas, neste momento, em todo o mundo”, explica Alemán em um dos capítulos de seu novo livro, cuja capa é a reprodução do quadro do pintor inglês John Martin (1789-1854), inspirado em Paraíso Perdido, poema narrativo de John Milton (1608-1674).
“Não acredito que haverá um colapso quando a pandemia sanitária for controlada, de fato, a maioria dos governos dos países ocidentais quer sair da crise sanitária, não como dizem para salvar vidas, mas para salvar o próprio capitalismo (FMI, Fundo Europeu, grandes financeiras, bancos etc.) e que a máquina continue funcionando, mais uma vez, mesmo que esteja gerando maior pobreza e injustiça social”, acrescenta o psicanalista argentino.
Na entrevista ao jornal Página/12, o autor de livros fundamentais como Lacán en la razón posmoderna, Derivas del discurso capitalista e Capitalismo: crimen perfecto o emancipación, entre outros, explica, de Madri, a cidade que escolheu para se exilar em 1976, que “essa pandemia está derrubando todas as ficções que, nos últimos anos, sustentaram o neoliberalismo”.
A entrevista é de Silvina Friera, publicada por Página/12, 28-05-2020. A tradução é do Cepat.
Se é difícil pensar que após a pandemia ocorrerá um colapso do capitalismo, para onde está indo o capitalismo? Como se adaptará em um mundo pós-covid-19?
O capitalismo tem como uma qualidade essencial sua tendência à reprodução ilimitada, pode se valer de suas próprias contradições internas, as tensões que o atravessam, seu colapso geral, e sempre estará em condições de se refazer. Não estou muito certo de que possa atravessar a pandemia, mas digamos que estruturalmente tem todas as possibilidades para isso.
O capitalismo poderia viver na paisagem de Mad Max porque pode se reproduzir ilimitadamente. Conta com muitos dispositivos para isso e também possui algo constitutivo do ser humano, que é certa impossibilidade de enfrentar o igualitário.
Como irá se adaptar no mundo da pós-pandemia...? É mais provável que seja a pandemia que irá se adaptar ao capitalismo. E daí talvez vejamos surgir certas manifestações da sociedade de controle e do biopoder, que embora a princípio tenham sido muito necessárias, do ponto de vista terapêutico e político, cedo ou tarde, justamente por causa dessa característica de reprodução do capital, vão acabar se impondo.
A pandemia chegou para demostrar algo que já se sabia: as profundas desigualdades nos países europeus e na América Latina. Esta é uma oportunidade para debater acerca da igualdade? O século XXI será o século da igualdade?
Sim, o grande debate será entre igualdade e desigualdade. É verdade que a morte é para todos porque somos todos mortais, mas também é absolutamente verdade que a igualdade deve ser concebida a partir da vida, não da morte. Se concebemos igualdade a partir da vida, obviamente essa pandemia está derrubando todas as ficções que nos últimos anos sustentaram o neoliberalismo.
Por exemplo, o mantra de que o empresariado é o que cria a riqueza está caindo por terra. Se os trabalhadores, que vendem sua força de trabalho, não retornam aos locais de produção, este mundo não pode se sustentar. Se não retornam aqueles que acendem a luz, se não retornam os que limpam, tudo isso cai. O interessante aqui é que seria um momento marxista da humanidade, mas por hora não há notícias de que emerja um sujeito histórico igualitário.
Como imagina um novo projeto de soberania popular de esquerda? Qual papel teria o Estado e os movimentos sociais nesse projeto?
A possibilidade de movimentos soberanos deve conduzir a uma Federação Internacional de Países Soberanos. É claro, o Estado deve ter um papel central, mas levando em consideração que o neoliberalismo se apropriou previamente do Estado. O Estado nunca é nosso, sempre que estamos no Estado, estamos em uma partida em que o inimigo também está presente. Portanto, a aliança com movimentos sociais é decisiva e imprescindível. E diria mais: não apenas com movimentos sociais.
Um projeto emancipatório, hoje em dia, tem que pensar, imaginar e inventar uma nova maneira de conceber a relação entre Estado, sociedade, comunidade e Forças Armadas. Quando falo das Forças Armadas, trata-se das Forças Armadas que passaram no rigoroso exame dos direitos humanos na Argentina, e o grande filtro histórico que o país supõe fazer com a memória, a verdade e a justiça.
Em 25 de maio, foi realizada uma manifestação na Praça de Maio por manifestantes contra a quarentena. Alguns gritavam “liberdade!”, outros, “queremos trabalhar”. Uma marcha semelhante ocorreu, há alguns dias, em Madri, com o líder do Vox à frente, para pedir “liberdade” e a renúncia de todo o Executivo. Por que os setores de direita estão tentando tirar proveito do cansaço gerado pela situação de quarentena?
Há uma tendência da direita mundial em perceber que a única maneira que os setores progressistas, na Europa, e os movimentos populares e nacionais da América Latina (os poucos que existem), possuem é a de introduzir uma planificação na saúde, como é a quarentena, e certas determinações em relação ao modo de distribuição de renda. Portanto, extraíram o termo liberdade - que já ocupava um lugar central no liberalismo e que o neoliberalismo empregou de modo perverso - para buscar mostrar que todos esses projetos em que o Estado assume a comunidade são projetos “totalitários”.
Não é nada novo. De certa forma, todo o desmantelamento do Estado de bem-estar, após a Segunda Guerra Mundial, também foi realizado em nome da liberdade. O que acontece é que agora começou a aumentar, porque a direita introduziu uma novidade, que é a sua ruptura com a verdade e a ética. Se as direitas conservadoras e liberais ainda mantinham certo fio (fino, mas mantinham) em relação à verdade e a ética, as direitas atuais praticam a violência que quase pertence ao estado de exceção. Não guardam relação alguma, respeito algum, com a verdade e a ética.
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“As direitas atuais não guardam relação alguma com a verdade e a ética”. Entrevista com Jorge Alemán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU