26 Mai 2020
O pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET) e integrante de Economistas de Esquerda, Claudio Katz, destaca que “a Covid-19 foi apenas o detonante de um sistema em crise”. Além disso, trata da falsa dicotomia entre saúde e economia, a dívida como problema regional, o imposto às fortunas e possíveis cenários globais pós-pandemia.
A reportagem-entrevista é publicada por Canal Abierto, 22-05-2020. A tradução é do Cepat.
Em que medida a atual crise corresponde somente à pandemia ou aos efeitos da quarentena? Existem causas estruturais prévias e independentes da irrupção da Covid-19? Quão certa ou adequada é a ideia de uma nova ordem global pós-pandemia? Quem ou que país poderia liderá-la? Quais são as alternativas ao problema da dívida na Argentina, na região e no mundo?
O professor da Universidade de Buenos Aires, pesquisador do CONICET e integrante do coletivo Economistas de Esquerda, Claudio Katz, aceitou o desafio de se aventurar nestas e em outras perguntas sobre o mundo que temos e o que poderá vir. Nesta entrevista, algumas respostas concretas e – o que é ainda mais interessante – novas interrogações.
“A pandemia estremeceu o capitalismo, mas o vírus foi apenas um detonante ou desencadeante que precipitou um conjunto de desequilíbrios e tensões prévias. A crise atual não corresponde somente à pandemia”.
“É impossível falar de capitalismo prévio próspero, com uma economia em auge e uma sociedade em certa normalidade”.
“A Covid-19 fez estourar as contradições e tensões prévias e inerentes ao capitalismo. As tensões no plano econômico eram principalmente duas: a primeira, uma nova bolha financeira e especulativa, assim como na década passada e a grande crise de 2008 e 2009. Ultimamente, estava sendo gestada uma bolha semelhante, não mais nos créditos hipotecários, mas no endividamento de Estados e grandes empresas”.
“A pandemia velou uma crise precedente, produto de finanças desequilibradas e fantasmagóricas, e fez acreditar que a causa era um choque exógeno à economia”.
“Um dos sintomas – que é periódico no capitalismo – era a superprodução, ou seja, que sejam gerados mais bens do que aqueles que a economia pode consumir, o que por sua vez redunda em quedas de preços e guerras comerciais. Nos meses prévios à pandemia tínhamos um conflito muito agudo entre os Estados Unidos e a China para colocar seu excedente de mercadorias em cada um dos mercados e, ao mesmo tempo, uma queda inédita no preço do petróleo que levou o barril a menos de 35 dólares”.
“Não se deve esquecer que, assim como na maioria dos mercados de matérias-primas, as fortes turbulências foram prévias à pandemia. O horizonte já era de crise econômica e retração”.
“Em economias como as latino-americanas, o detonante é ainda mais complexo: com 7 anos de baixo ou nulo crescimento (a CEPAL previa um 2020 igual), grande endividamento, desequilíbrio comercial, menores compras de insumos por parte da China, inconvenientes agudos na cadeia de valor das economias centro-americanas. A crise que a pandemia fez explodir na América Latina se deu sobre um terreno que já era crítico. Esta crise não é alheia à economia, produto de um fato natural”.
“Estamos vendo um cenário pouco comum, onde os Estados Unidos se fecham sobre si mesmo e desfaz essa imagem de guardião da sociedade global. Trump exibe um egoísmo descarado e proclama que apenas lhe interessa a proteção dos cidadãos de seu país e vai ao mercado mundial disputar como um bandoleiro a aquisição de insumos sanitários. Já não há disfarce de ajuda humanitária, e isso golpeia fortemente as elites latino-americanas que construíram sua ideologia e formas de dominação seguindo os padrões norte-americanos”.
“O capitalismo globalizou os negócios, mas não a saúde. Os indivíduos, turistas e viajantes percorrem o mundo, mas não há uma Organização Mundial da Saúde em conformidade com essa globalização. Os Estados Nacionais continuam sendo os que se ocupam deste tema”.
“Se comparamos com as epidemias de séculos passados, a ciência agora permite conter os efeitos de uma pandemia com estas características”.
“Depois da última grande guerra, duas tendências importantes operaram com forca: uma foi a democratização e conquista de direitos sociais, como resultado da primeira e segunda guerras mundiais, e a valorização da vida humana. Por outra parte, o capitalismo precisa lidar com isto e não pode recorrer de forma explícita, como fez no passado, ao darwinismo social, condenando a morte todos os que tenham que morrer. Aqueles que em inicialmente sugeriram esta postura, Johnson e Trump, depois tiveram que retroceder. O único que deu continuidade a estes discursos e práticas é Jair Bolsonaro. Isto obedece ao componente fascista do Presidente do Brasil, o único marco ideológico em que pode prosperar o darwinismo social”.
“O capitalismo precisa preservar seu corpo dirigente, ciente de que uma pandemia, ainda que esteja afetando em maior medida aqueles que vivem em piores condições, biologicamente não discerne entre classes sociais”.
“Diante de uma pandemia, não pode haver contradição entre saúde e economia: os sanitaristas definem o que é necessário fazer e os economistas precisam se subordinar e pensar que opções existem diante do cenário em questão”.
“Nas ciências sociais, não existem tais consensos porque se debatem repartir custos ou benefícios em função dos interesses sociais em disputa”.
“Muito se discutiu a esse respeito, mas é impossível saber se vem outro mundo e qual poderia ser. Acredito que não estamos nas vésperas de um novo mundo, mas, sim, diante de uma grande crise. Para saber como será o que virá, primeiro é preciso haver um desenlace dessa crise.
“No momento, só temos tendências, pistas, mas tudo dependerá do resultado de uma luta política: que da crise surjam governos mais direitistas ou projetos progressistas com variantes radicais. De acordo com a opção que se forje nesta crise, esse será o mundo que vem”.
“O cenário mais interessante é o da América Latina, com governos que adotam políticas de proteção da população frente aos negócios do mercado, o caso argentino, e modelos de solidariedade: o exemplo mais claro é dos médicos cubanos”.
“A crise atual conferiu aos governos direitistas o grande pretexto para militarizar as ruas, introduzir o estado de exceção e dissolver o clamor das grandes revoltas do ano passado. No entanto, acredito que é um oxigênio transitório, de um cenário necessariamente precário. Quando a pandemia acabar, o cenário econômico e social será terrível, diante do qual a direita tem pouco a oferecer. O neoliberalismo é um modelo de gestão que tem pouca capacidade de atuar com forma de intervenção estatal, não muito conforme ao manejo de políticas públicas. E no próximo período, com sociedades desgarradas e economias pulverizadas, irá haver – sim ou sim – uma necessidade de políticas publicas. Só será possível encaminhar algo com uma forte intervenção do Estado”.
“O neoliberalismo já não é uma ideologia baseada na projeção da felicidade e o consumo. O neoliberalismo hoje é uma ideologia de morte, do individualismo mais egoísta, da reivindicação reacionária pela abertura da economia em detrimento das outras vidas. Estamos diante da face mais anti-humanista do neoliberalismo”.
“O campo popular e os movimentos sociais estão em um parêntese, preparando-se para um cenário que irá reivindicar intervenções políticas muito decididas e sem tibiezas”.
“Hoje, há múltiplas vozes que defendem um perdão por parte dos organismos multilateral e retirada por parte de credores privados. No caso argentino, não vejo nenhuma razão para que se considere ilegítima a dívida com os especuladores e legítima a dos organismos multilaterais (FMI ou Clube de Paris)”.
“Cabe suspender o pagamento de juros, fazer uma auditoria total da dívida, diferenciar o legítimo do ilegítimo e pagar o que corresponde. Dívidas se pagam, fraudes não”.
“Não há margem para colocar em pé a economia, sem suspender o pagamento daquelas dívidas que são fraudes”.
“A crise está produzindo uma contração descomunal, liquidando a arrecadação de impostos e obrigando a um gasto fiscal maiúsculo. Se o circuito da dívida vai entrar em curto-circuito, é indispensável buscar vias diretas para garantir o financiamento dos Estados. Uma forma, e algo que já está sendo discutido em todo o mundo, é o imposto às fortunas. A Argentina poderia se tornar o caso testemunhal e primeiro exemplo de uma “taxa COVID” para que os mais abastados cubram os gastos de emergência”.
“Outra discussão é em torno da renda básica, os gastos sociais. Todas as medidas que estão sendo adotadas, como prolongar os pagamentos dos cartões de crédito, adiar os pagamentos de aluguéis e suspender aumentos de tarifas. Em definitivo, a questão é se os planos de resgate que os Estados operam irão deter o gasto social como prioridade ou se serão um subsídio ao capital. Ou seja, se não irá servir, como ocorreu no passado, para acobertar uma socialização das perdas, após uma privatização dos lucros”.
“Vínhamos de uma disputa entre dois modelos: um com um forte grau de globalização, o de Trump, com uma economia mundial entrelaçada por negociações bilaterais. E o modelo chinês, que resgatava o padrão anterior, o de Davos, livre comércio e fronteiras abertas”.
“Neste cenário, tão novo, não sabemos que tipo de globalização e lideranças vão emergir após a pandemia”.
“De imediato, desde que se iniciou a pandemia, vemos como a China tem uma atitude contraposta à estadunidense: envia respiradores, compartilha pesquisas para uma vacina mundial, uma atitude mais amigável. Será necessário ver quais as implicações dessa atitude em relação à América Latina”.
“Acredito que teremos um grande teste do que pode vir, caso se produza uma escalada de defaults dos países que devem dinheiro para a China”.
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“O neoliberalismo já não é uma ideologia de consumo, mas de morte”, avalia Claudio Katz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU