O novo coronavírus e as ecologias de plantation. Artigo de Daniel Bustamente Teixeira

Foto: Vatican News

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

18 Março 2020

"É muito grave e muito triste o que está se passando na China, no Irã, na Europa, e ao que tudo indica o que deve ser inevitável em tantos outros lugares. Longe de mim diminuir os impactos da tragédia que nos acomete, e evidentemente eu temo pelos meus pais, minha avó, meu filho e por nós todos. Mas penso também nessa crise global como uma chance – talvez uma das últimas que teremos – de repensar radicalmente nossas práticas e modos de estar no mundo, quando mais do que nunca o indivíduo como categoria não dá conta dos seres sociais que somos", escreve Daniel Bustamante Teixeira, doutorando em antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pesquisa sobre a Amazônia e mestre em antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ) com dissertação publicada no livro Comunidades em movimento (São Paulo: Fonte Editorial, 2017).

Eis o artigo.

Das leituras que venho fazendo nessa quarentena eterna que é a escrita de uma tese de doutorado, Anna Tsing tem sido uma das autoras que mais me chama a atenção, pela escrita clara e provocativa e pela capacidade de fazer ver o mundo por novas e improváveis perspectivas. Apesar de antropóloga, as questões levantadas pela autora vão muito além do humano. Sendo especialista em fungos e tendo se dedicado ao estudo das paisagens multiespécies, Tsing questiona a excepcionalidade do Homem, chamando atenção para o entrelaçamento entre humanos e outros modos de vida na (re)criação de habitabilidade em um planeta em ruínas.

Um conceito chave nos textos recentes de Tsing é o de antropoceno, a ideia de que vivemos em uma era da perturbação humana, que produziu e segue produzindo impactos de proporções geológicas na transformação da dinâmica ambiental do planeta. Efeitos como o aquecimento global, a extinção em massa de espécies e a mudança na composição dos gases da atmosfera são alguns dos exemplos mais citados quando se fala em antropoceno, mas em tempos de pandemia e de proliferação viral, creio que seja importante pensar no antropoceno, como faz Tsing, através da figura da plantation.

Plantations são simplificações ecológicas nas quais os seres vivos são transformados em recursos – ativos futuros –, removendo-os de seus mundos de vida. São máquinas de replicação, ecologias evocadas para a produção do mesmo. Essa maneira de produzir exige desemaranhar as coisas transformando-as em recursos, isto é, coisas desembaraçadas, exigindo um tipo de trabalho que a autora chama de “alienação”, quer envolva humanos ou não humanos. A alienação produz os dilemas ambientais que chamamos de antropoceno.

A potência da plantation, que permitiu que ela se espalhasse pelo mundo, é justamente a capacidade de replicação em diversas escalas e lugares com o mínimo de transformação. A essa capacidade Tsing chama de “proliferação”, uma palavra que nos chega do câncer. Por definição, o câncer não pode estar em todo lugar, dado que se desenvolve em organismos de células não cancerígenas. E ainda assim, prolifera. O mesmo vale para a plantation, que se espalha através da destruição de paisagens multiespécies mas que nunca chega a cumprir suas promessas, tornando aparente o paradoxo que a autora chama de Antropoceno fragmentado. Fragmentado porque também as plantations não podem estar em todo lugar, ainda que se tornem cada vez mais continentes em meio a ilhas de paisagens multiespécies como matas e florestas.

E o que tudo isso tem a ver com o novo coronavírus e a pandemia que nos vem atravessando a todos? É que a plantation, como toda tentativa de domesticação, é capaz de despertar uma “força oculta” que desafia cálculos e planejamentos humanos. Assim foi em Fordlândia e no Projeto Jari – para falar de temas que venho pesquisando –, grandes projetos no coração da Amazônia que foram derrotados por ataques incontroláveis de fungos. Isto porque a plantation em sua própria forma, na proximidade de corpos ativos, purificados e idênticos, oferece uma fonte inesgotável de refeições para patógenos, que tornam-se cada vez mais virulentos. A plantation, na visão de Tsing, não apenas é uma espécie de patógeno ela mesma, replicável e virulenta, como contém em si a capacidade de criar patógenos que a limitam e colocam em risco sua proliferação, abrindo a possibilidade para a ressurgência de paisagens transformadas sobre ruínas.

Para chegar no assunto do momento, creio que fenômenos como a globalização e a urbanização nas formas de circulação de mercadorias, de alimentos, de plantas e animais, por um lado, e na formação de grandes metrópoles como conglomerados humanos alienados e desengajados, dependentes das cadeias globais de produção, por outro, são talvez os maiores exemplos do que Tsing chamou de ecologias de plantation. Os próprios humanos, em última instância, transformados em recursos e ativos futuros.

Quanto mais nos aproximamos dos ideais de progresso e desenvolvimento que tanto almejamos, transformamo-nos, como em um livro de Kafka, em uma espécie de praga, ao mesmo tempo em que cultivamos e criamos patógenos como o novo coronavírus. A maior ameaça à ressurgência, diz Tsing, é a simplificação do mundo dos vivos como um conjunto de ativos para futuros investimentos. À medida que o mundo se torna uma plantation, os patógenos virulentos proliferam.

Mas nem tudo está perdido quando percebemos a ambivalência das categorias trabalhadas pela autora. Proliferação e ressurgência aparecem em um primeiro momento como opostos inconciliáveis, para depois sucederem-se como processos temporais indistintos. Como depois dos incêndios apocalípticos na Austrália assistimos encantados a rebrota da floresta. Ou como o próprio coronavírus foi capaz de fazer parar a economia chinesa, amenizando, ainda que temporariamente, outros efeitos catastróficos do antropoceno.

É muito grave e muito triste o que está se passando na China, no Irã, na Europa, e ao que tudo indica o que deve ser inevitável em tantos outros lugares. Longe de mim diminuir os impactos da tragédia que nos acomete, e evidentemente eu temo pelos meus pais, minha avó, meu filho e por nós todos. Mas penso também nessa crise global como uma chance – talvez uma das últimas que teremos – de repensar radicalmente nossas práticas e modos de estar no mundo, quando mais do que nunca o indivíduo como categoria não dá conta dos seres sociais que somos.

Percebermo-nos afinal como inevitavelmente entrelaçados a outros modos de vida em paisagens multiespécies sob a pena de nossa própria extinção. Levar mais a sério, como sugeriu Alana Moraes, os debates sobre desmetropolização.

Repensar para ontem a ideia atrasada de progresso como crescimento econômico inesgotável.

Reenvolvimento no lugar de desenvolvimento.

Como nem todos sabemos a catástrofe, de um modo ou de outro, já é inevitável. Interessa-me o tipo de vida que irá emergir das ruínas.

Leia mais