03 Outubro 2019
“A assessoria técnica de campanha de Bolsonaro foi constituída por nove generais e um brigadeiro. Com a ascensão de militares ao Executivo, ao Congresso e até à assessoria da presidência do STF, é inegável a força do Partido Militar. E, como aconteceu com o Partido Togado, também é inevitável a politização da tropa e os reflexos disso em sua imagem. A própria figura do presidente colocou em dúvida a excelência do ensino da Academia Militar”, escreve Lincoln Secco, professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo e autor do livro História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011), em artigo publicado por Le Monde Diplomatique, 02-09-2019.
Segundo o professor, “em 1964, os militares tinham um projeto antipopular, mas não antinacional, segundo suas crenças e valores. Altas taxas de crescimento econômico, hoje ausentes, sustentavam seu discurso pelo desenvolvimento. Em 2018, eles se apresentaram apenas com as propostas antipopulares (reforma da Previdência, diminuição de gastos sociais e defesa de interesses próprios). Atuaram como “partido” e politizaram a tropa, mas sem lograr ultrapassar seus interesses corporativos e oferecer uma direção moral e intelectual ao restante da sociedade”.
A partir da campanha pelo impeachment, os militares recuperaram força política, com aumento de gastos e o comando do Ministério da Defesa. Tais acontecimentos revelavam que o Partido Togado estava deixando a cena depois de ter subtraído o papel dos políticos profissionais. E o vácuo começava a ser preenchido pelo Partido Militar.
A Constituição de 1988 registrava seu trigésimo aniversário quando um capitão indisciplinado, considerado mau militar[1], chegou à Presidência da República. E não o fez por um golpe de Estado.
Durante a Guerra Fria, a CIA tentou derrubar mais de cinquenta governos nacionais[2]. A estatística é conservadora, pois houve cerca de 45 tentativas apenas na África. Na América Latina foram 21 entre 1961 (Peru) e 1976 (Argentina), e ao longo do século XX foram mais de noventa.
No entanto, a ascensão de Jimmy Carter (1977-1981) ao governo dos Estados Unidos obrigou os militares latino-americanos a mudar de postura. Era preciso racionalizar a repressão descontrolada e os arroubos de grande potência. O general Golbery do Couto e Silva abandonou o governo Figueiredo para assessorar um banco privado e a burguesia voltou-se contra as empresas estatais.
Também os banhos de sangue no Chile e Argentina atrapalhavam o discurso norte-americano contra a falta de direitos humanos na União Soviética. Por fim, sob Ronald Reagan (1981-1989), os Estados Unidos estavam voltados no continente para as insurgências em El Salvador e Guatemala e ao combate à Revolução Sandinista.
No Brasil, delatores e torturadores sem patente perdiam privilégios[3]. Outros partiam para atos de desespero. Entre março de 1978 e maio de 1981 houve quarenta atentados tramados por arapongas da ditadura[4]. O mais importante foi o do Riocentro, em 30 de abril de 1980. O presidente João Figueiredo dizia que eram atos de “bolsões radicais, porém sinceros”.
O meio militar permaneceu hostil à esquerda. O PT até angariou simpatias em núcleos da Polícia Militar paulista nos anos 1980 e teve um oficial candidato, mas sua incidência entre militares em geral foi pequena. Na esquerda comunista, sua organização nas Forças Armadas (Antimil), que ainda sobrevivia na forma de células autônomas clandestinas, dissolveu-se em 1992[5].
Desse modo, a maioria da oficialidade superior acabou por aceitar uma estratégia indireta. Na frente ideológica, a preocupação passou a ser o “gramscismo”, o marxismo cultural e a questão de gênero, que visariam abalar três estruturas fundamentais: o Estado, a Nação e a família.
Diante de uma profunda mácula em sua imagem, a Marinha admitiu mulheres em 1980, mas só no serviço em terra[6], comme il faut, ou como deveria ser. Afinal, as Forças Armadas combateram guerrilheiras e enfrentavam agora (início dos anos 1980) a retomada das lutas feministas.
A “guerra cultural” serviu ainda para que se justificasse a permanência dos serviços de informação, afinal eles mesmos participaram da abertura política e contiveram seus “bolsões radicais” por meio do prêmio da impunidade. Basta lembrar que o último governo militar foi comandado por egressos dos aparelhos de espionagem (Golbery era o mais eminente deles, além do próprio presidente da República, João Figueiredo).
A espionagem oficial, embora idealizada e instituída antes, só foi efetivada por Juscelino Kubitschek como Serviço Federal de Informação e Contrainformação (Sfici). A ditadura de 1964 o transformou no Serviço Nacional de Informações (SNI). Seu criador foi Golbery.
As três armas ainda tinham seus serviços de informações. Além disso, o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) contava com um serviço reservado. O SNI adquiriu acesso direto ao presidente da República e seu chefe tinha o status de ministro. Foi extinto por Fernando Collor, que reduziu a estrutura, mandou funcionários deslocados de volta às suas repartições de origem e demitiu contratados recentes.
No final dos anos 1980, os oficiais já tinham mudado o nome de seus órgãos de espionagem, evitando duas palavras eivadas de ligações indesejáveis com tortura, sequestros e assassinatos: “serviço” e “informações”. Preferiu-se o termo “inteligência”, copiado dos norte-americanos. Assim, a Divisão de Informações (depois Subsecretaria de Informações), que substituiu o SNI, cedeu lugar em 1999 à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), ligada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), vinculado diretamente ao presidente. Já sob Itamar Franco, o setor passou a ter concursos públicos[7].
Fernando Henrique Cardoso usou uma tática ambígua. Por um lado institucionalizou o serviço de informações, deixando ao sucessor e ao Congresso a tarefa de colocar em prática algum controle democrático exterior; por outro lado criou o Ministério da Defesa e deixou à míngua as Forças Armadas. Filho de general, ele costumava dizer que brasileiro serve para sambar, e não para marchar, e deixou uma declaração pouco respeitosa sobre os desfiles de 7 de Setembro aos quais assistiu[8].
Em seu governo houve redução drástica dos gastos com o funcionalismo. Em 2002, o Exército dispensou recrutas por falta de recursos. O custeio real da Defesa foi depreciado de 1995 a 2003.
Para uma estratégia militar neoliberal, a força armada de um país neocolonial precisa de um contingente suficiente para garantir a extração de riquezas do território, criando bolsões seguros para o capital transnacional e combatendo movimentos sociais. Mas essa não é uma operação militar, e sim policial.
Se o caso fosse de enfrentamento com o verdadeiro inimigo estratégico potencial (os Estados Unidos), nenhuma força armada seria suficiente, salvo um exército de todo o povo, conforme foi teorizado por Vo Nguyen Giap no Vietnã. FHC percebeu que não valia a pena fortalecer uma instituição vocacionada ao golpe interno, e não à defesa externa. O mesmo não ocorreu durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Logo depois da posse, ele já excluía os militares da reforma da Previdência (O Estado de S. Paulo, 13 jan. 2003). Em seu segundo mandato, ele aprovou a Estratégia Nacional de Defesa, que visava modernizar as Forças Armadas.
Em 1999, a imprensa noticiou que a Polícia Federal brasileira recebia dinheiro do Departamento de Combate a Entorpecentes (DEA) e da Agência de Inteligência (CIA) norte-americanos. Em abril de 2004, a própria Federação Nacional dos Policiais Federais denunciou o problema.
Até julho de 2004, Lula manteve na PF uma diretora-geral egressa do SNI. Já em 2003, os agentes concursados chegaram a enviar um abaixo-assinado pedindo a troca de toda a diretoria da Abin. Eles se dirigiram à Casa Civil, e não ao GSI (antiga Casa Militar).
Nos governos petistas, a Abin ampliou seus poderes. Mesmo depois que a agência fabricou o primeiro escândalo do seu governo (caso Waldomiro Diniz), Lula continuou apoiando-a, legalizou os grampos e até manteve em sua segurança pessoal uma cabo da PM que havia trabalhado como espiã no VIII Encontro Nacional do PT![9]
Durante o governo Dilma Rousseff, os próprios servidores da Abin criticaram o foco prioritário em movimentos sociais (O Estado de S. Paulo, 20 nov. 2012), mas em junho de 2013 o governo Dilma solicitou que a agência acompanhasse os protestos e “infiltrações de grupos políticos”. Em setembro de 2013, a imprensa noticiou que dois agentes da CIA iam semanalmente à Polícia Federal em Brasília.
É claro que não se duvida que o PT tenha feito o melhor governo para os pobres desde Getúlio Vargas. Mas não é esse o tema aqui. Diante do retrospecto da política militar petista, não é espantoso que em 2009 a imprensa tenha noticiado que o Exército enviou oficiais para a Abin e servidores falaram em volta do SNI (Veja, 21 fev. 2009). Por fim, o governo Bolsonaro pediu formalmente à CIA apoio para a criação da Academia Nacional de Inteligência no Brasil (Folha de S.Paulo, 21 jun. 2019).
Os oficiais militares continuaram oposicionistas radicais ao PT. Quando foi lançado o livro Direito à memória e à verdade, em 2006, os protestos dos apoiadores da ditadura aumentaram. Comandantes das três forças criticaram a obra. Embora se tratasse de um documento oficial do governo brasileiro, nenhum militar foi punido.
O governo Lula enfrentou também um motim de controladores de voo (O Estado de S. Paulo, 31 mar. 2007). E em 16 de abril de 2008, por ocasião de um seminário no Clube Militar, o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia[10], atacou frontalmente a política indigenista do governo e teve apoio até do deputado comunista Aldo Rebelo.
Durante o primeiro mandato de Dilma, o Clube Militar patrocinou um manifesto contra ela. O ministro da Defesa ordenou depois que o documento fosse retirado. Após um breve recuo, os signatários voltaram à carga e disseram não reconhecer a autoridade do ministro sobre eles. A maioria dos “sublevados” era do Exército. Como no período 1950-1964, nada aconteceu com os rebelados. Seu desafio mostrava apenas que a disciplina e a hierarquia eram uma ideologia a ser invocada ao sabor das circunstâncias.
Depois do suposto atentado a Jair Bolsonaro em 6 de setembro de 2018, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, declarou em entrevista que a legitimidade do novo governo eleito poderia ser questionada (O Estado de S. Paulo, 9 set. 2018).
Essa não foi a primeira declaração polêmica do general. Em 3 de abril de 2018, véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de um habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula, o comandante do Exército escreveu numa rede social seu “repúdio à impunidade”, que poderia configurar ameaça “à paz social e à democracia”.
Registre-se, contudo, que, no dia seguinte, o Comando da Aeronáutica divulgou uma nota, assinada pelo tenente-brigadeiro do ar Nivaldo Luiz Rossato, em defesa dos poderes instituídos e sugerindo ao meio militar não se empolgar “a ponto de colocar convicções pessoais acima daquelas das instituições” (O Globo, 4 abr. 2018). Um caso a ser pesquisado.
O general Villas Bôas já havia falado a uma Loja Maçônica no ano anterior aventando a possibilidade de uma intervenção militar. Antes dele, o general Antônio Hamilton Mourão falou em “impor uma solução” para a crise política no país (Gazeta do Povo, 20 set. 2017). O mesmo general Mourão seria no ano seguinte escolhido candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.
Depois das eleições, interlocutores de Lula (Celso Amorim e o senador Jorge Vianna) procuraram o general Villas Bôas e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, para saber da reação a uma possível libertação de Lula. Ouviram que as Forças Armadas não interferem na justiça (O Estado de S. Paulo, 20 dez. 2018)…
A partir da campanha pelo impeachment, os militares recuperaram força política. O Brasil registrou um aumento nos gastos militares acima da média mundial[11] e pela primeira vez um militar (nomeado por Michel Temer) assumiu a pasta da Defesa.
Tais acontecimentos revelavam que o Partido Togado[12] estava deixando a cena depois de ter subtraído o papel dos políticos profissionais. O vácuo começava a ser preenchido pelo Partido Militar.
Oliveiros Ferreira definiu a diferença entre um partido fardado que periodicamente se arvorava em intérprete da Constituição e pressionava a cúpula para destituir o governo e o “estabelecimento militar”, que engloba a organização permanente das Forças Armadas, sua hierarquia, disciplina e valores fundamentais[13] e conta com uma tutela[14] constitucional sobre os demais poderes.
O século XXI, porém, viu surgir um partido militar que não se resumia mais a uma fração das Forças Armadas ou ao “exército político” da Primeira República. Desde o império havia uma concorrência com a Guarda Nacional, extinta em 1916, e na República Velha, uma disputa com as forças públicas estaduais.
No século XXI, as polícias não dispõem do mesmo equipamento das Forças Armadas, mas seu efetivo vive em plena guerra civil latente num país que contabilizou 62,5 mil homicídios em 2017, a maioria absoluta de negros e pardos. Parte dos policiais se tornou base militante de Bolsonaro e o discurso dele se dirigiu mais à segurança pública do que ao nacionalismo militar.
Seus líderes ocuparam as assembleias legislativas, Câmara dos Deputados e Senado. Suas ações se espraiaram pelo submundo das milícias e mimetizaram as forças paramilitares de regimes fascistas ou das ditaduras latino-americanas. Foi Antonio Gramsci quem notou que “uma organização de Estado enfraquecida é como um exército enfraquecido; entram em campo […] organizações privadas armadas, que têm duas tarefas: usar a ilegalidade, enquanto o Estado parece manter-se dentro da lei, como um meio de reorganizar o próprio Estado”.
As Forças Armadas têm uma escola única que garante unidade ao corpo de oficiais. Uma parte expressiva dos aspirantes é de filhos de militares. Na cúpula, a experiência do Haiti, fornecida pelo PT, permitiu à alta oficialidade uma vivência comum única. Acrescente-se a carta branca informal para a PM efetuar execuções e se imbricar com as milícias. Estavam assentados os fundamentos materiais e socioprofissionais do Partido Militar.
Ele se apresentou como “liberal” em economia. Não é à toa que em 4 de maio de 2018 o general Villas Bôas exortou São Paulo, “a quem o Brasil deve o processo de modernização pós-1932”, a assumir a liderança de um “projeto de resgate para o Brasil”. Ao vencer, Bolsonaro agradeceu ao general Villas Bôas e disse que devia sua vitória a ele…
A assessoria técnica de campanha de Bolsonaro foi constituída por nove generais e um brigadeiro.[15] Com a ascensão de militares ao Executivo, ao Congresso e até à assessoria da presidência do STF, é inegável a força do Partido Militar. E, como aconteceu com o Partido Togado, também é inevitável a politização da tropa e os reflexos disso em sua imagem. A própria figura do presidente colocou em dúvida a excelência do ensino da Academia Militar.
Em 1964, os militares tinham um projeto antipopular, mas não antinacional, segundo suas crenças e valores. Altas taxas de crescimento econômico, hoje ausentes, sustentavam seu discurso pelo desenvolvimento.
Em 2018, eles se apresentaram apenas com as propostas antipopulares (reforma da Previdência, diminuição de gastos sociais e defesa de interesses próprios). Atuaram como “partido” e politizaram a tropa, mas sem lograr ultrapassar seus interesses corporativos e oferecer uma direção moral e intelectual ao restante da sociedade.
A disjunção entre povo e nação se ampliou e a força armada foi deslegitimada pelo Partido Militar.
Notas:
[1] Maria Celina D’Araújo e Celso Castro (orgs.), Ernesto Geisel, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 1997, p.113.
[2] Andrew Korybko, Guerras híbridas, Expressão Popular, São Paulo, 2018, p.72.
[3] Um ex-delegado deixou um relato a respeito. Cláudio Guerra, Memórias de uma guerra suja. Em depoimento a Rogério Medeiros e Marcelo Netto, Topbooks, São Paulo, 2012.
[4] Hélio Silva, O poder militar, L&PM, Porto Alegre, 1984, p.543.
[5] Paulo R. Cunha, Militares e militância, Unesp, São Paulo, 2014, p.193. Tema muito pouco estudado, sendo esse um trabalho pioneiro.
[6] A Força Aérea integrou-as ao corpo de oficiais em 2003 e o Exército só as aceitou como oficiais combatentes em 2016.
[7] Lucas Figueiredo, Ministério do silêncio, Record, São Paulo, 2005.
[8] João Moreira Salles, “O andarilho”, Piauí, ago. 2007.
[9] Figueiredo, op. cit.
[10] João Roberto Martins Filho, “Tensões militares no governo Lula (2003-2009): a pré-história do acordo com a França”, Revista Brasileira de Ciência Política, n.4, jul.-dez. 2010, Brasília, p.283-306.
[11] “Brasil registra maior aumento de gastos militares desde 2010”, DW, 2 maio 2018.
[12] Lincoln Secco, “Golpe de toga”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2017.
[13] Oliveiros Ferreira, Vida e morte do Partido Fardado, Senac, São Paulo, 2000, p.43.
[14] O artigo 142 diz que “as Forças Armadas […] são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
[15] Luis Kawaguti, “Bolsonaro e os generais”, UOL, 23 set. 2018.
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O partido militar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU