20 Junho 2019
Licenciamento automático, obstáculos às multas ambientais, esvaziamento do Conama. Das reivindicações do agro, 50% foram atendidas; 50% estão em andamento
A reportagem é de Cida de Oliveira, publicada por Rede Brasil Atual - RBA, 19-06-2019.
Afrouxamento das regras para o licenciamento ambiental, com facilidades que tornam o processo quase que automático. Mudanças na legislação das unidades de conservação, que permitam subtração da área original. Desmonte do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), com menor participação social e retirada de competências do colegiado. Criação de núcleos de conciliação, para dificultar e postergar a autuação em casos de crime ambiental. E no caso da efetivação da multa, possibilidade de descontos e parcelamento, conforme conveniência daqueles que infringiram a lei.
Estes são alguns dos 12 pontos reivindicados ao Ministério do Meio Ambiente pelo presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Em 16 de janeiro, o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), enviou ao ministro da pasta, Ricardo Salles, uma lista com estas e outras reivindicações, em forma de pauta de reunião que acabou vazando para a imprensa. Cinco meses depois, metade já foi atendida por completo. Três foram parcialmente atendidas e três estão em andamento. Havia um décimo-terceiro item da lista da FPA. No entanto, já havia sido atendido dias antes, no apagar das luzes do governo de Michel Temer (MDB-SP).
“Esses 12 pontos demandavam ao ministro a revogação de uma série de portarias do MMA (Ministério do Meio Ambiente), como a lista de espécies protegidas da fauna. Ponto a ponto, essas questões estão sendo atendidas pelo ministro Ricardo Salles, ou pelo presidente (Jair) Bolsonaro”, afirma Elizabeth Eriko Uema, secretária-executiva da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema).
Representante da categoria com atuação no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do próprio MMA, a entidade ingressou no começo do mês com representação junto ao Ministério Público Federal. A Ascema Nacional pede providências contra “os atos e práticas atentatórios aos princípios éticos e morais que norteiam as atividades da administração pública e a provável prática de atos ímprobos e/ou criminosos” no âmbito da gestão federal do meio ambiente.
A “total sinergia” entre o agronegócio e o Meio Ambiente é um projeto antigo dos ruralistas. Logo que Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito e anunciou o nome de Salles, o então futuro ministro já circulava pela Granja do Torto, ao lado de ruralistas como Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual secretário especial de Política Fundiária, e o deputado federal Frederico D’Ávila (PSL-SP).
Em uma das ocasiões, Salles prometeu “total sinergia da agricultura com o meio ambiente. Total respeito ao produtor rural e nosso apoio”. Ao afagar ruralistas, Salles já deixava claro que seu compromisso é com o agronegócio. “Ele fará uma grande administração. Porque (Salles) à frente do Meio Ambiente significa o fim do estado policialesco e o fim do estado confiscatório (sic) em cima de quem trabalha e produz nesse país”, retribuiu Nabhan. Por essas e outras é que o ex-secretário de Meio Ambiente na gestão de Geraldo Alckmin, condenado em primeira instância por improbidade administrativa, foi escolhido a dedo por Bolsonaro para chefiar a pasta que tornou-se órgão auxiliar do Ministério da Agricultura chefiado pela ruralista Tereza Cristina (DEM-MS).
Pela Portaria 32, assinada em 23 de janeiro, Ricardo Salles proibiu o corte de pequizeiro (Caryocar spp) em áreas fora do bioma Amazônia, exceto nos casos de exemplares plantados. Mas abriu a brecha: No entanto, em casos em que o órgão licenciador não encontrar alternativa técnica e locacional para a implantação do empreendimento, o corte dessas árvores poderá ser autorizado mediante adoção de medidas mitigadoras e compensatórias que assegurem a conservação da espécie, a serem definidas pelo próprio órgão licenciador. O Pequizeiro é uma árvore eleita símbolo do cerrado, cujo corte é proibido por lei.
Em 15 anos de tramitação, o PL foi totalmente desfigurado do projeto original quando passou pelas mãos da bancada ruralista. Passou a permitir, entre outros pontos, a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias, a criação do licenciamento autodeclaratório e a flexibilização das exigências ambientais em todo país. Os estados passam a poder fazer suas próprias regras de licenciamento, abrindo caminho para guerra fiscal ambiental.
Mais de 50 organizações e entidades, inclusive aquelas que representam promotores e procuradores que atuam na defesa do meio ambiente, já se manifestaram contrárias.
Recentemente, membros do Ministério Público Federal se reuniram com o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), relator do PL que promete celeridade para colocá-lo em votação no plenário. No encontro, o subprocurador-geral da República Nicolao Dino citou alguns pontos preocupantes do PL. Entre eles, a possibilidade de licenciamento autodeclaratório, que em certa medida dispensa as exigências que garantiriam o menor impacto ambiental possível.
Kataguiri, que integra a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), afirmou que “o atual processo inviabiliza grandes obras, principalmente as de infraestrutura, como por exemplo o saneamento básico.
Aprovado há um ano em comissão especial da Câmara, o PL 6.299/2003, mais conhecido como Pacote do Veneno, está pronto para ser votado em plenário. No entanto, sua aprovação enfrentou muita resistência da sociedade, inclusive artistas e intelectuais e de autoridades e entidades de saúde e meio ambiente do país e do Exterior. Até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) se manifestou, pedindo ao governo e ao Legislativo o arquivamento da proposta.
Diante da possibilidade de derrota no Plenário, a bancada ruralista, que hoje manda no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e dá as cartas no Ministério do Meio Ambiente, adotou a estratégia de liberar registros de agrotóxicos. Em cinco meses, foram aprovados 197 “novos” agrotóxicos, muitos deles altamente tóxicos e proibidos em diversos países.
Demanda atendida com a assinatura do decreto 9.760, publicado em 11 de abril, que incentiva a conciliação. A medida muda um decreto de 2008, o 6.514, que dispõe sobre infrações cometidas contra o meio ambiente, a aplicação de sanções administrativas e o processo administrativo para apuração dessas infrações no âmbito federal. Pelo novo decreto, ao ser multado por desrespeitar regras relativas à preservação ambiental, o autuado poderá, se quiser, participar de audiência de conciliação que poderá, inclusive, ser realizada por meio eletrônico.
Nessa audiência serão discutidas alternativas para encerrar o processo. O infrator passa a ter como opções o desconto para pagamento, o parcelamento e a conversão da multa em serviços de preservação, de melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente. O decreto cria ainda o Núcleo de Conciliação Ambiental (NCA), responsável por confirmar ou anular a autuação e decidir sobre a manutenção de aplicação de sanções administrativas. Um detalhe: servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) não poderão presidir o Núcleo de conciliação.
Em 28 de maio, o Diário Oficial da União publicou o decreto 9.806, que reduziu drasticamente o número de conselheiros do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). O número de conselheiros encolheu de 96 para 23 e o plenário passou a ser presidido apenas pelo presidente do Ibama, cargo antes compartilhado com o o presidente do Instituto Chico Mendes (ICMBio). Havia uma cadeira para cada um dos 26 estados e o Distrito Federal, e agora são cinco, com um estado de cada região.
Os mais de 5 mil municípios brasileiros terão apenas dois representantes. A sociedade civil, na qual estavam incluídos ambientalistas, representantes dos trabalhadores rurais, dos povos indígenas, dos povos tradicionais, dos policiais militares e corpos de bombeiros e da academia –, ocupava 23 assentos. Agora são apenas quatro.
O novo decreto excluiu também representações regionais. E os novos membros serão escolhidos por sorteio, com mandato de apenas um ano. O decreto veta que um conselheiro da sociedade civil seja reconduzido. O encolhimento do órgão está sendo questionado pela Frente Parlamentar Ambientalista, que já apresentou Projeto de Decreto Legislativo para sustar o decreto que “representa um “ataque às instituições e mecanismos de elaboração, fiscalização e monitoramento do meio ambiente”.
No final de maio, o Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) protocolou representação à procuradora-geral da República, Raquel Dodge. A entidade considera inconstitucional o Decreto 9.806. “Além de tirar espaço da sociedade civil, o decreto ‘exclui a participação de importantes setores como populações indígenas, representantes de trabalhadores, sanitaristas, comunidade científica e catadores de materiais recicláveis. Um enorme retrocesso”, avaliou o presidente da Proam, Carlos Bocuhy.
De concreto, nada ainda foi feito. Em meados de abril, porém, o Ministério da Agricultura pediu ao MMA a suspensão do cadastro de espécies aquáticas consideradas em risco de extinção. Isso porque o cadastro teria gerado repercussão negativa no setor pesqueiro e prejuízos econômicos. Oficialmente, a pasta dirigida por Tereza Cristina (DEM-MS) afirmou ter feito o pedido de análise das espécies consideradas em risco de extinção por discordar da metodologia utilizada na elaboração da lista.
Uma metodologia, diga-se de passagem, desenvolvida pela International Union for Conservation of Nature (IUCN), que reúne mais de 1.250 organizações, governos, agências governamentais e ONGs. O pedido de suspensão partiu de Jorge Seif Júnior, secretário de Aquicultura e Pesca.
Em abril, a Folha de S.Paulo noticiou que a família Seif tem multas milionárias relacionadas à pesca, a maior delas envolvendo transporte de 12 mil toneladas do peixe cherne-poveiro, classificada como criticamente em risco de extinção. Nas redes sociais, o secretário desdenhou da lista, o que foi repudiado por especialistas em meio ambiente.
“A fala do sr. Secretário não apenas demonstra desconhecimento sobre o processo de avaliação do risco de extinção de espécies, mas também presta desserviço à sociedade brasileira, uma vez que apresenta publicamente informações que não possuem base técnica ou científica”, afirma documento assinado por entidades representativas de especialistas em Meio Ambiente que trabalham no Ministério do Meio Ambiente, no Ibama e no ICMBio.
Seif quer a suspensão da Portaria 445/2014, o Livro Vermelho dos animais aquáticos em risco de extinção. O documento é duramente criticado pelo setor pesqueiro, inclusive o transporte de pescados. “O secretário é de uma família de armadores de Santa Catarina, que atua também como transportadores. Eles já foram multados inclusive por transportar dezenas de toneladas de cherne-poveiro, um peixe que está na lista de espécies criticamente ameaçadas de extinção já teve sua população reduzida em 90%. Então reivindicações dos ruralistas, do setor de pesca, das indústrias estão sendo atendidas de forma muito leviana, sem considerar estudos o posicionamento de órgãos técnicos”, aponta Elizabeth Eriko Uema, -executiva da Ascema.
A reivindicação foi contemplada pelo Decreto 9.760, no qual Bolsonaro permitiu que infratores ambientais autuados se beneficiem do pagamento com desconto conjuntamente com o parcelamento do débito – que era vetado anteriormente. É o melhor dos mundos para aqueles que avançam de maneira predatória sobre o meio ambiente em busca de lucros imediatos: a possibilidade de parcelar o débito com desconto.
No entanto, segundo o texto, multas derivadas de infrações ambientais como as da Vale em Brumadinho e Mariana, que mataram centenas de pessoas, não poderão ser objeto de conversão. Era só o que faltava.
Em 10 de maio, logo após oito ex-ministros do Meio Ambiente se manifestarem contra o desmonte ambiental promovido por Ricardo Salles, o próprio declarou ao jornal o Estado de S. Paulo que pretende rever as últimas oito décadas: deve revisar todas as 334 unidades de conservação federais, como o Parque Nacional de Itatiaia, criado em 1934, e até o Refúgio da Vida Silvestre da Ararinha Azul, criada pelo governo de Michel Temer em 2018.
Salles disse ao jornal que a criação das reservas foi feita “sem critério técnico” e que está montando um grupo de estudo para fazer a revisão, categorizar algumas, mudar traçados de outras e até extinguir algumas. Mudar traçados é tarefa que ele entende. Por modificar mapas e edital de decreto de plano de manejo de área de proteção ambiental enquanto secretário estadual do Meio Ambiente em São Paulo, foi condenado pela Justiça paulista por improbidade administrativa no final de 2018, pouco antes de assumir a pasta no governo Bolsonaro.
Ideia semelhante é a do presidente. Nas últimas semanas, ele anunciou o desejo de transformar a região de Angra dos Reis, no sul do estado do Rio de Janeiro, em uma “cancún brasileira”. Para implementar ali um polo turístico, com alto impacto ambiental, ele gostaria de extinguir a Estação Ecológica de Tamoios.
Para levar seus planos adiante, Salles e Bolsonaro terão muita dor de cabeça: unidades de conservação só podem ser extintas por meio de projeto de lei. Depende do Congresso Nacional.
Contemplada parcialmente pelo Decreto 9.760, de 11 de abril , que trata também das infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações.
Em 15 de abril, a ministra da Agricultura Tereza Cristina anunciou a instalação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Agronegócio. O objetivo é estruturar a agenda da pasta para a sustentabilidade. Ao canal Rural, a ministra afirmou que o “Brasil precisa achar um caminho para a sustentabilidade junto com a produção”. Por isso, os grupos de trabalho vão estudar temas socioambientais, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Programa de Regularização Ambiental (PRA), os planos de manejo florestal e a Cota de Reserva Ambiental (CRA), entre outros.
Pelo decreto 9.640, publicado no final de dezembro, por Michel Temer, o proprietário ou possuidor de imóvel com reserva legal conservada, inscrita no Cadastro Ambiental Rural (CAR), com área maior que o mínimo exigido pelo Código Florestal, poderá utilizar a área excedente como CRA. Cada CRA corresponde a um hectare de vegetação nativa ou de reflorestamento nativo.
Os ruralistas querem ser indenizados em até cinco anos no caso de áreas que vierem a ser transformadas em unidades de conservação. Há até projetos de lei, como o 3.751/2015, que prevê a extinção automática dessa unidade em caso de demora no pagamento da indenização. Ricardo Salles está atento a essa demanda. Tanto que quando anunciou a revisão geral das 334 áreas de proteção, disse que de 2006 para cá, quase 190 unidades de conservação teriam sido criadas pelos governos petistas “sem nenhum tipo de critério técnico”. “A consequência é que hoje elas acumulam passivos de indenização e conflitos fundiários. Vamos acabar com isso.”
A reivindicação era contemplada em parte pela Medida Provisória (MP) 867/18, que trazia benefícios aos agropecuaristas. Entre eles, o prazo até 31 de dezembro de 2020 para se cadastrar no Programa de Regularização Ambiental (PRA). Isso permite acesso a créditos públicos rurais, e a anistia para aqueles que descumpriram o Código Florestal, desmatando área de aproximadamente cinco milhões de hectares, equivalente ao estado de Sergipe. Aprovada na Câmara, a MP não foi colocada em votação a tempo no Senado e perdeu sua validade no último dia 3. A ministra Tereza Cristina afirmou, porém, que o governo Bolsonaro deverá reeditá-la.
O uso alternativo do solo é aquele em que se substitui a vegetação nativa e formações sucessoras por outras coberturas do solo, como atividades agropecuárias, industriais, de geração e transmissão de energia, de mineração e de transporte, assentamentos urbanos ou outras formas de ocupação humana. A reivindicação foi contemplada em parte pelo decreto que criou a conciliação.
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Em cinco meses, governo Bolsonaro atende conjunto da pauta ruralista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU