30 Mai 2019
Criada no governo Temer, MP tratava de prazo para regularização de propriedades às normas da lei de 2012. Ambientalistas dizem que ela vai impedir a recuperação de áreas já desmatadas e anistiar proprietários; relator Sergio Souza (MDB-PR) defende o texto.
A reportagem é de Filipe Domingues, publicada por G1, 29-05-2019.
A tramitação da Medida Provisória (MP) 867 divide setores ligados ao meio ambiente e ao agronegócio. Seu objetivo inicial era adiar o prazo para regularização de propriedades rurais fora das normas do Código Florestal Brasileiro de 2012. Mas a MP ganhou 35 adendos e os impactos dessa aprovação poderiam afetar até o cumprimentos de metas do Acordo de Paris. A medida entrou em vigor em 26 de dezembro de 2018, mas precisa passar pela Câmara dos Deputados e pelo Senado até o dia 3 de junho para não “caducar” e perder a validade.
Ambientalistas e até uma parte dos representantes do agronegócio acreditam que a MP pode impedir a recuperação de áreas já desmatadas e anistiar proprietários que não se adaptaram às exigências do Código. Já o relator da medida, deputado Sergio Souza (MDB-PR), garante que “a MP não altera uma vírgula da essência do Código Florestal”.
Entenda, a seguir, os pontos de debate dessa possível mudança na lei.
1. A MP foi assinada por Michel Temer, em 26 de dezembro de 2018, adiando o prazo para que proprietários rurais se adaptassem ao Código Florestal. Mas recebeu 35 emendas na Câmara e algumas fogem ao tema central – chamadas “jabutis” no jargão parlamentar;
2. Para ambientalistas, essas emendas suavizam a exigência de restaurar áreas nativas determinada pelo Código Florestal e, portanto, dificultam que o Brasil alcance as metas do Acordo de Paris;
3. O Observatório do Código Florestal estima que entre 4 e 5 milhões de hectares de área que deveria ser recuperada serão perdidos com a aprovação da MP – o equivalente a dois estados de Sergipe.
4. Como o Código tem apenas sete anos, alterações significativas no conteúdo podem produzir insegurança jurídica. O relator argumenta que, na verdade, a MP não faz grandes mudanças no Código, evita a necessidade de novas prorrogações nos prazos de regularização e, portanto, traz mais segurança jurídica;
5. A inserção de “jabutis” pode ser questionada como inconstitucional. O relator diz que, na verdade, muitas emendas eram parecidas e insiste que a essência do Código não foi prejudicada;
6. Representantes do agronegócio temem transmitir a imagem, especialmente no exterior, de que não querem seguir o Código. Apenas 4% dos proprietários de imóveis rurais ainda não se adaptaram à legislação. O relator diz que a MP facilita a vida pequenos produtores que ainda não conseguiram se regularizar;
7. Segundo ambientalistas, a MP representaria uma anistia de grandes produtores rurais que ainda não obedecem a lei, impactando os biomas mais degradados do país, como o Cerrado. O relator afirma que são os estados que dificultam a regularização daqueles que ainda não se adequaram ao Código.
O Código Florestal (Lei 12.651/2012) regularizou terras desmatadas até 22 de julho de 2008. Ele deu benefícios aos proprietários dessas áreas, como a redução nas Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a possibilidade de compensar áreas de Reserva Legal (RL) em outro imóvel. Já quem desmatou depois dessa data precisaria seguir à risca o novo Código.
A princípio, a MP assinada pelo então presidente Michel Temer no fim de 2018 tinha a finalidade de dar mais prazo para que esses proprietários de imóveis rurais aderissem ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) – na prática, mais prazo para regularizar a propriedade conforme as normas do Código.
Com a MP, o prazo para aderir ao programa passaria de 31 de dezembro de 2018 para 31 de dezembro de 2019, com a possibilidade de prorrogação por mais um ano. Esse já seria o quinto adiamento seguido.
Para André Guimarães, diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e líder da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, “isso em si já era ruim”.
“Mas entendemos que o adiamento pode ser feito e é aceitável”, diz Guimarães. O problema, acrescenta, está nas 35 emendas acrescentadas à MP, que está tramitando na Câmara e ainda deve passar pelo Senado.
Segundo o diretor executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Luiz Cornacchioni, qualquer alteração significativa no Código deve ser fruto de um debate público, e não pode ser feito por meio de Medida Provisória.
“O problema da MP 867 são esses penduricalhos. Originalmente ela tinha um objetivo, de prorrogação de prazos. Isso precisava mesmo”, acrescenta.
Para regularizar suas terras, o proprietário rural também precisa fazer a inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ter esse cadastro é obrigatório para que o produtor tenha acesso a crédito rural, por exemplo. O prazo para o CAR terminou em 31 de dezembro de 2018, mas a MP dá aos proprietários até 2020 para se regularizarem sem perder acesso aos benefícios financeiros.
“Isso não era parte da MP original”, lembra o relator. A ideia, segundo ele, é pressionar os estados para aplicarem o sistema de cadastro sem prejudicar o produtor que precisa de crédito. “Fizemos isso porque era obrigação dos estados dar suporte aos produtores rurais menos favorecidos, mas alguns estados não têm o sistema, principalmente no Nordeste.”
Já foram feitos mais de 5,6 milhões de Cadastros Ambientais Rurais em todo o país.
Para Roberta del Giudice, secretária executiva do Observatório do Código Florestal, a falta de adaptação de alguns estados é, de fato, um problema.
Embora todos os estados já tenham um sistema, segundo ela, somente 17 regulamentaram os termos de compromisso para a adequação das terras.
Ela entende que a extensão do prazo do CAR cria uma espécie de anistia. “O CAR é o melhor instrumento do Código para incentivar a regularização”, avalia.
O prazo final para votação da MP é 3 de junho. Se até lá a MP 867 não passar no Congresso, ela caduca, ou seja, deixa de valer.
Se a MP vier a caducar, os parlamentares terão de votar um projeto de decreto legislativo para disciplinar o período em que ela esteve vigente. Neste caso, o decreto servirá para validar a situação de quem regularizou sua propriedade rural enquanto a medida estava em vigor.
Tanto ambientalistas quanto alguns representantes do agronegócio dizem que a MP 867 descaracteriza o Código Florestal, uma legislação que foi resultado de mais de uma década de debate e é frequentemente descrita como um “ponto de equilíbrio” para os vários interesses nos territórios rurais.
De acordo com estudo do comitê técnico do Observatório do Código Florestal, “as emendas não somente mudam o prazo de adesão, mas alteram o processo e os requisitos que regulam a adequação ambiental de APPs (Áreas de Preservação Permanente) e Rls (Reservas Legais) de imóveis rurais irregulares ou em descumprimento com o Código”.
Do total das áreas em propriedades rurais, 9 milhões de hectares ainda não se enquadraram no Código Florestal, de acordo com pesquisadores do Observatório. Essa área equivale ao tamanho dos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo somados.
O estudo envolve 3,55 milhões de imóveis rurais. Juntos, eles somam 364,16 milhões de hectares. Para chegar a esse resultado, pesquisadores usaram a malha fundiária do Atlas da Agropecuária Brasileira, dados do Mapbiomas e a modelagem do Código Florestal.
Desse total de imóveis, 96% estão cumprindo lei atual. Portanto, só 4% dos imóveis ainda descumprem o Código Florestal.
Por outro lado, esses 4% de propriedades abrangem 9 milhões de hectares, isto é, 20% da área total de imóveis analisados. Essa é a área que, idealmente, poderia ser restaurada se mantida a legislação atual.
Se forem flexibilizadas as normas do Código Florestal, como prevê a MP 867, a estimativa do Observatório do Código Florestal é de que serão perdidos de 4 a 5 milhões de hectares de área que deveria ser recuperada. Essas áreas se consolidarão como desmatadas.
Por isso, o Brasil ficaria ainda mais longe da meta que assumiu como parte do Acordo de Paris, de recuperar 12 milhões de hectares de áreas nativas até 2030.
Segundo ela, boa parte da meta poderia ser alcançada com o plantio nesses 9 milhões de hectares.
Em 2015, 195 países chegaram ao Acordo de Paris contra mudanças climáticas, a primeira vez que se reconheceu, em consenso global, a necessidade de se reduzirem as emissões de gases do efeito estufa.
O Ministério do Meio Ambiente resume os compromisso do Brasil em cinco pontos:
Para o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), um dos principais críticos da MP no Congresso e membro da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, “o Brasil é o país que tem uma das maiores coberturas florestais do mundo, a maior biodiversidade do mundo, mas com a cultura de que algumas leis não pegam”.
Ele acredita que mudanças no Código Florestal não devam ser feitas por meio de Medida Provisória. “Não faz sentido fazer isso hoje. Para minha surpresa, muita gente do agronegócio também está contra [a MP 867], dizendo que isso vai criar um problema desnecessário.”
Agostinho ainda tem esperanças de que a MP possa ser rejeitada no Congresso ou perder efeito por não ser aprovada até 3 de junho.
As ONGs ambientalistas têm chamado atenção especial à proposta do relator da MP 867/2018 de mudar o artigo 68 do Código Florestal. Na prática, ele altera a data de referência para a proteção de alguns biomas. Para os ativistas, isso permite que uma porção de área já desmatada não precise ser restaurada.
De acordo com Gerd Sparovek, professor e pesquisador da Esalq/USP, a mudança no artigo 68 faz uma interpretação errada do Código: para o Cerrado, por exemplo, passa a valer a proteção definida em 1989, e não a do Código Florestal de 1965.
Ao mapear e analisar o impacto dessa mudança no estado de São Paulo, que tem mais dados históricos disponíveis, ele observou que metade da exigência de Reserva Legal do Cerrado seria perdida.
“Não tem nenhum trabalho acadêmico, cientifico, técnico, que tenha avaliado os efeitos dessas datas e o efeito dessa mudança de referencial para a proteção em o Brasil”, alerta Sparovek.
A essa crítica, o deputado Sergio Souza responde dizendo que o objetivo da emenda da MP no artigo 68 é deixar claro quais são a lei e a data de referência específicas para cada bioma.
“A lei da Mata Atlântica é de 1965, já a do Cerrado é de 1989”, argumenta o deputado.
Para os grupos ambientalistas, mais preocupante ainda do que a MP 867 é o projeto de lei 2362/2019, apresentado por Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e Marcio Bittar (MDB-AC), atualmente em tramitação no Senado.
O projeto pretende eliminar a obrigatoriedade de manter a reserva legal em propriedades rurais prevista no Código Florestal – o que inclui não mais exigir a preservação de 80% das áreas de imóveis rurais na Amazônia; de 35% no Cerrado e 20% em outras regiões.
Segundo Sparovek, “se a MP 867 já é bem tóxica, do ponto de vista do impacto ambiental, o PL [de Flávio Bolsonaro] é muito mais grave”.
Para André Guimarães, do Ipam, “o Código Florestal é uma conquista sociedade brasileira, pois define onde podemos fazer agricultura e onde temos que preservar”. Mesmo para o setor agrícola, diz ele, as mudanças propostas seriam nocivas, pois alterariam o regime de chuvas e fragilizariam o ambiente de negócios.
“Para aumentar a produtividade, temos que investir em tecnologia, produtividade, treinamento, equipamento”, diz Guimarães.
Também Luiz Cornacchioni, da Abag, avalia que as mudanças propostas tanto pela MP 867 quanto pelo PL 2362 para o Código Florestal não representam a vontade da maioria dos produtores rurais.
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Entenda o debate sobre a MP 867, que altera o Código Florestal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU