A luta por território, principal bandeira dos povos indígenas na COP30, é a estratégia mais eficaz para a mitigação da crise ambiental, afirma o entrevistado
A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – COP30, que segue em Belém até 21 de novembro, desenrola-se sob o peso da urgência climática e a tensão entre o discurso e a prática das nações. Diferentemente das últimas edições das Conferências do Clima, a COP30 já se destaca por um protagonismo dos povos indígenas, ainda que do lado de fora, ao mesmo tempo que é marcada por impasses nas metas climáticas, sobretudo quanto à transição energética e ao financiamento.
Os povos originários viajam à conferência para exigir poder de decisão e a implementação de suas reivindicações, especialmente a demarcação de terras indígenas. A mobilização em torno da COP30 começou muito antes da abertura oficial. A “Flotilha Indígena” navegou milhares de quilômetros, levando a voz da juventude e das lideranças amazônicas com um grito unificado: “A resposta somos nós”.
A Pré-COP Indígena, a Aldeia COP e a Cúpula dos Povos reafirmaram a centralidade dos territórios indígenas como política de combate à crise climática. Documentos como a Carta da Amazônia defendem a demarcação de terras indígenas e a regularização de territórios tradicionais como pilares fundamentais para a proteção florestal.
No entanto, apesar da presença recorde, a representatividade efetiva nos espaços de decisão – a chamada Zona Azul – permanece baixa, com muitos ativistas e líderes indígenas clamando por mais espaço e denunciando a presença do lobby do petróleo. A presença de lobistas fósseis — que, em número, superam as delegações das dez nações mais vulneráveis somadas — lança uma sombra de ceticismo sobre a capacidade real de se chegar a um acordo ambicioso.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Milton Felipe Pinheiro avalia que com a presença indígena na COP esses povos “estão afirmando que, para efetivamente lutar contra a crise climática, é preciso de terra e território demarcado, garantido”. Para o entrevistado, a mudança climática é anterior à Revolução Industrial e se dá com a chegada dos colonizadores aos continentes. “A crise ambiental começa com a colonização dos continentes, quando os colonizadores chegam nos territórios e redefinem a relação do homem e da natureza nesses locais”, evidencia.
Ao apontar que há duas visões de mundo em disputa, Pinheiro resume o embate central que perpassa não só a conferência do clima, mas também a inação na defesa aos povos originários e na demarcação de terras: “Um lado da moeda vê dentro da terra e do território a sua existência, e que entende que depende dela para existir. Do outro lado, há um grupo que vê na terra e no território recurso, como se fosse um almoxarifado onde se pegam as coisas”.
Milton Felipe Pinheiro, que é membro do povo Laklãnõ Xokleng e vive na retomada do Território Goj Konã, em Blumenau, faz uma ponte entre a urgência global da COP30 e a realidade local, ao denunciar que a formação do Estado de Santa Catarina foi pautada no genocídio, na expropriação e na apropriação dos saberes dos povos indígenas. Ele evidencia a invisibilidade histórica dos originários, afirmando que “se hoje há Santa Catarina, é porque esses imigrantes, invasores e colonizadores chegaram a uma terra já habitada e conhecida pelos povos indígenas. E [os colonizadores] só conseguiram sobreviver se apropriando desses conhecimentos”.
Segundo o entrevistado, há ainda a necessidade de identificar e responsabilizar os verdadeiros agentes do colapso ambiental. Conforme explica, a crise não é de responsabilidade primária do indivíduo, mas sim do sistema capitalista. “Quem gera a crise climática é o capitalismo, são as grandes empresas, são os mais ricos. Eles sozinhos causam um impacto que nós todos juntos não causamos”, aponta.
Por fim, o entrevistado reforça o porquê de o reconhecimento dos direitos indígenas ser o passo inicial para a justiça climática e a “retomada das nossas relações afetuosas com a natureza”. “Fazer a reparação histórica dessas violências é um primeiro passo para a justiça climática, no sentido de devolver aos povos originários a sua relação com o território”, assinala. “E, a partir dessas relações, desses saberes conseguirmos pensar um novo desenvolvimento, uma nova forma de relação”, complementa.

Milton Felipe Pinheiro (Foto: Arquivo pessoal)
Milton Felipe Pinheiro é membro do povo Laklãnõ Xokleng e vive na retomada do Território Goj Konã, em Blumenau/SC. É graduado em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e mestrando no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau – FURB.
IHU – Qual o papel dos indígenas na formação de Santa Catarina?
Milton Felipe Pinheiro – Os indígenas têm um papel fundamental na formação do Estado. Fiz o meu Trabalho de Conclusão de Curso na graduação, em 2024, me formando como Assistente Social na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, pesquisei a invasão do Sul brasileiro, como ela começa lá no Nordeste, chega até o Sul e vai invadindo os territórios indígenas e expropriando esses povos, especialmente o povo Laklãnõ Xokleng. Depois, estudei um pouco sobre esse processo de retomada de território, especialmente a retomada do Território Goj Konã, onde eu vivo [área localizada no Parque Nacional da Serra do Itajaí, em Blumenau]. Constatei que a formação do estado é principalmente pautada no genocídio, na perseguição e na expropriação desses povos.
Todas as estradas que temos em Santa Catarina, especialmente as rodovias, foram construídas em cima de picadas dos povos indígenas. Então, quando o Estado vem construir a estrada das tropas para começar a invadir mais efetivamente o Sul, todas essas estradas, que posteriormente vão se tornando rodovias, são construídas a partir das picadas dos povos indígenas. E muitas outras coisas [mostram como se deu esse processo de invasão dos territórios indígenas], como, por exemplo, um povo que vem da Europa e que não conhece nada da Mata Atlântica e que aprende a se relacionar com ela observando os povos indígenas.
Há também episódios muito tristes na história da formação, como a escravização de indígenas. Temos em Blumenau o caso da Kodiklã, que é o mais conhecido, mas muitos outros que caíram no esquecimento, de crianças indígenas que foram sequestradas do seu convívio familiar e iam para a casa desses imigrantes fazer trabalho doméstico. E eram, de certa forma, escravizados em uma economia de subsistência. Fala-se muito da escravização do povo negro, mas a escravização indígena em todo o Brasil também aconteceu. E ainda encontramos feridas nesse processo.
Portanto, a formação de Santa Catarina está pautada em se apropriar dos saberes dos povos indígenas, da sua força de trabalho. Se hoje há Santa Catarina, é porque esses imigrantes, invasores e colonizadores chegaram a uma terra já habitada e conhecida pelos povos indígenas. E os colonizadores só conseguiram sobreviver se apropriando desses conhecimentos. Muito do que se construiu também foi pautada na exploração da força de trabalho dos povos indígenas.
IHU – Qual a importância da ocupação do território ancestral para os povos indígenas, especialmente para os Xokleng?
Milton Felipe Pinheiro – A importância da ocupação dos territórios é por uma questão de sobrevivência, de retomar culturas que foram tão perseguidas. Quando um povo retorna a um território que era seu, ele está retornando um modo de ser e de viver. Veja que o povo Laklãnõ Xokleng, por exemplo, circulava toda a região sul do Brasil.
Quando a invasão chega, ela confina os povos indígenas em aldeamentos. Então, a aldeia, a terra indígena que conhecemos, na verdade é uma invenção do estado. Colocam os indígenas em uma terra cercada para controlar eles e ficam livres para explorar o restante do território e realizar suposto desenvolvimento.
Se o povo Laklãnõ Xokleng circulava por todo o sul do Brasil e, de repente, está confinado em um espaço, quando ele retoma outras terras volta a circular pelo território que tradicionalmente era dele. Mesmo que de uma forma nova, porque há cidades no meio de tudo isso, mas é uma forma de recuperar um processo cultural e uma memória importante. Inclusive é um processo que gera autonomia no povo, pois possibilita habitar o território tradicional.
Portanto, retomar territórios é uma questão de justiça social. Além disso, é uma questão de justiça ambiental, porque o povo convivia com o bioma da Mata Atlântica em toda a região. E é uma questão cultural, porque sempre em todos os registros históricos, quando o seu território era invadido, o povo retornava, brigava por ele. Hoje, o que temos não é novo, mas se trata de um processo de resistência histórico que vem sobrevivendo todo esse tempo.
IHU – Como as elites econômicas e as mídias continuam atuando de forma a manter as velhas práticas coloniais em relação às retomadas?
Milton Felipe Pinheiro – As elites dominantes principalmente atuam no silenciamento. Vemos que as grandes mídias não falam sobre as retomadas territoriais, principalmente as violências que acontecem lá dentro. Temos visto, aqui no sul do Brasil, vários processos violentos, inclusive de assassinato de lideranças indígenas, como tem acontecido com os Guarani-Kaiowá no Paraná. E não vemos a grande mídia falando disso. A grande mídia cria narrativas completamente descoladas da realidade. Portanto, essa já é uma primeira forma das elites controlarem a opinião pública. A imagem que o Brasil está mostrando para o mundo sobre os povos indígenas.
Ainda tem a questão latifundiária no Brasil. O poder do latifúndio dentro do Congresso e do poder público determina a forma como o Estado encara as retomadas indígenas. Pela Constituição e pela história, sabemos que as retomadas são um processo natural que vai acontecer desses povos sobreviventes. Mas no viés político do latifúndio, as retomadas são marcadas de uma forma marginalizada, criminalizada e sem considerar o fundamento histórico.
Quanto às velhas práticas, ainda conseguimos ver o Estado sendo negligente nesses territórios, não reconhecendo a legitimidade dessas retomadas e das comunidades. Ele usa o seu aparato armado, policial, em favor dos latifúndios para entrar dentro das retomadas e dos territórios.
Tudo isso identificamos ao longo do tempo, porque a burguesia e as elites se apropriam do Estado para legitimar o seu acúmulo de capital. É através do Estado que elas conseguem terra, principalmente. E quando o povo que não está dentro dessa classe dominante tenta fazer esse mesmo movimento, eles são criminalizados. Nós somos criminalizados.
IHU – Houve ou há um processo de etnocídio dos Xokleng? De que forma?
Milton Felipe Pinheiro – Eu diria que houve tentativas. Se hoje existe o povo Laklãnõ Xokleng, com seu idioma, suas práticas culturais, suas formas de se relacionar com a natureza, então a etnia ainda existe. Assim, não podemos afirmar diretamente que há um etnocídio. Mas houve e há tentativas muito fortes.
A primeira questão é privar o povo do próprio território, de confinar em um território muito menor e fazer esse contato forçado. O próprio Estado gerou consequências que afetaram a memória do povo. A língua correu risco de ser esquecida por muito tempo, e o próprio povo reagiu a isso em defesa da sua língua.
A implantação da Barragem Norte na década de 1970 foi mais um processo de tentar minar o território e as formas que os povos se relacionam, gerando o impacto que conseguimos ver até hoje. Há tentativas o tempo todo.
Recentemente houve um decreto na cidade de José Boiteux [localizada no Vale do Itajaí/SC] em que foi proibido o uso da língua indígena dentro de órgãos públicos, mas o Ministério Público derrubou rapidamente esse decreto. Vemos que mesmo na política há resquícios dessas tentativas [de etnocídio], inclusive de forma institucionalizada.
É possível identificar essas tentativas observando se o povo tem acesso aos territórios que historicamente eram deles, se tem uma relação com a natureza da forma que ele tinha e se consegue se alimentar como fazia há séculos. Também precisamos questionar qual é o acesso desse povo à soberania alimentar adequada a sua cultura, quais são os incentivos do Estado para reparar o que aconteceu no passado, para incentivar o uso da língua, para incentivar a recuperação da memória.
Vemos vários museus sobre a imigração, praças, monumentos que homenageiam e criam uma memória visual do povo imigrante, como é o caso de Blumenau. Ao entrar na cidade, identifica-se a memória visual desses imigrantes. Mas onde estão preservadas a memória visual do povo Laklãnõ Xokleng, a memória simbólica e a língua?
A partir disso, vemos que o Estado negligencia e, consequentemente, contribui nessa tentativa de etnocídio constante.
IHU – Como se deu o processo de evangelização ocorrido após a imigração europeia para a região? Como ele impactou na vida da comunidade?
Milton Felipe Pinheiro – As igrejas entram nesses territórios principalmente ocupando lacunas do próprio Estado. Quando o Estado não garante alimentação, acesso à assistência social, a igreja vem e, de uma forma assistencialista, oferece aquele alimento que não chega na comunidade.
Sabemos, por exemplo, que o álcool foi uma das ferramentas introduzidas pelo colonialismo para a dominação. E há tempos as populações indígenas sofrem com isso. A igreja chega nesse lugar de tirar os jovens, as pessoas do alcoolismo.
Então, a igreja entra no território preenchendo essas lacunas da negligência do próprio Estado, porque o Estado não se importou em fazer isso. De certa maneira, o Estado achou isso conveniente porque fazia e faz parte do projeto de etnocídio, ao mesmo tempo assimilando esses povos à identidade nacional.
As pessoas vão se adaptando às igrejas para que elas permaneçam no território e as gerações vão aprendendo isso e, com o tempo, vemos a diminuição de algumas práticas culturais. De modo geral, as igrejas estão dentro do território porque o Estado não está. Elas vêm preenchendo estas lacunas e é por isso que as populações enxergam nelas uma solução.
IHU – Como a direita e a extrema-direita têm agido em relação às retomadas indígenas em Santa Catarina?
Milton Felipe Pinheiro – Tem agido da pior forma possível, mas também da forma esperada. Conhecemos o projeto que a direita e a extrema-direita têm sobre terra, território, o que eles pensam sobre terra e território, porque, para eles, a terra é um recurso para gerar capital. É um meio de produção.
Quando houve a demarcação de dois territórios aqui em Santa Catarina, o próprio senador do estado, Esperidião Amin, fez um Projeto de Decreto Legislativo - PDL contra a demarcação dessas terras.
Quando estamos em uma retomada, é como se estivéssemos em um limbo social, porque alguns órgãos não atendem às retomadas por ainda não serem reconhecidas como terra indígena. O debate nacional sobre o que é ou não Território Indígena acabou dominado também por esse discurso e por essa ideologia da direita sobre o que é terra. Então, há um confronto também de saberes, de compreensão do que é um território, o que é a terra para povos originários e tradicionais e o que é para a sociedade não indígena, principalmente a latifundiária e capitalista.
Logo, a direita atua na linha de frente para barrar [as demarcações de terras].
O marco temporal segue uma linha. Todas as vezes que movimentos acontecem, a resposta deles também é institucional. Por exemplo, a Lei das Sesmarias, a Lei de Terras, já vem nessa linha da classe dominante dentro do Estado impondo como as terras do Brasil serão divididas, quem terá acesso a elas. E o marco temporal também é uma continuidade, como um dispositivo jurídico que vai dizer o que é terra indígena, o que não é, qual terra os povos indígenas têm direito ou não de reivindicar. A direita e a extrema-direita têm força política, estão dentro dos órgãos decisórios. Eles inserem dispositivos jurídicos, controlam o senso comum, aliados à grande mídia, formando um grande discurso do que é território, do que é terra, quem tem direito, quem pode reivindicar a posse da terra e quem não pode.
IHU – Qual o papel das retomadas indígenas na luta pela justiça climática?
Milton Felipe Pinheiro – A importância das retomadas indígenas nessa agenda é de demarcar o lugar de que há uma disputa sobre o que é terra e o que é território. Os povos indígenas e tradicionais entendem terra e território a partir de um outro lugar, e as retomadas demarcam isso nesse embate. Para estes povos, existe uma concepção de terra e território que resiste.
Diferentemente da concepção do próprio Estado, das classes dominantes, do que é terra e território como um recurso, que entende como uma fonte inesgotável de recursos para enriquecer. Fica claro nos debates que um lado da moeda vê dentro da terra e do território a sua existência, e que entende que depende dela para existir. Por outro lado, há um grupo que vê na terra e no território um recurso, como se fosse um almoxarifado onde se pegam as coisas. É um lugar de onde só se extrai para enriquecer.
Há ódio e a perseguição no Brasil às pessoas que defendem a natureza, a terra e o território. Elas são extremamente atacadas e marginalizadas. Porque há uma investida no imaginário social das pessoas que não se entendem como um cidadão que tem direito à terra, que tem direito a se relacionar com a terra, com o território, e que ocultam os saberes tradicionais desses vínculos.
As retomadas desempenham um papel de demarcar essa concepção de terra e território, além de cumprirem um papel de mostrar ao mundo que a guerra por território no Brasil não acabou. Os povos indígenas ainda estão retomando seus territórios que foram expropriados. Isso precisa entrar na agenda da questão da justiça ambiental de forma urgente.
IHU – Por que reconhecer os direitos dos povos indígenas, incluindo a reparação por violências históricas, pode ser considerado o primeiro passo para a justiça climática?
Milton Felipe Pinheiro – No mestrado eu estudo a partir de um pesquisador chamado Malcom Ferdinand, da Martinica, que escreve sobre a ecologia decolonial. Algo que ele diz é que quando a colonização chega no continente, ela gera duas fraturas entre a humanidade e a natureza e entre a própria humanidade. Ou seja, separa o homem da natureza, a relação que era ecumênica e afetuosa com a natureza se torna predatória. Entre os seres humanos, a estrutura racista que é implementada, que separa o homem branco ocidental de todos os outros.
Com base nessa ideia, eu trago para pensarmos que, primeiramente, essa reparação das violências históricas vai contribuir para que o humano entenda que ele é uma continuidade da natureza e que ele precisa reconectar essa forma de relação. A partir disso, podemos começar a conversar sobre como combater a crise climática. Enquanto mantivermos uma relação predatória com a natureza, só estaremos fazendo demagogia separando lixo, escovando dente com a torneira fechada etc.
Precisamos entender esse aspecto desde a raiz, e fazer a reparação histórica dessas violências é um primeiro passo para a justiça climática no sentido de devolver aos povos originários a sua relação com o território. A partir desses saberes, conseguiremos pensar um novo desenvolvimento, uma nova forma de relação, para então começar a pensar uma agenda de enfrentamento.
IHU – Qual a expectativa da comunidade em relação à COP dos Povos ou da COP30?
Milton Felipe Pinheiro – As expectativas são esperançosas, porém realistas. A conjuntura mostra que os povos indígenas ainda estão marginalizados nesse debate. Apesar dos esforços, esses grandes eventos acabam sendo também muito demagógicos. São acordos que dificilmente são cumpridos e não há ações concretas.
Para que haja uma agenda efetiva de enfrentamento à crise climática, precisamos mudar a forma de produção, a forma como a economia está funcionando e a forma como enxergamos a relação com a natureza. Se isso não estiver no centro do debate, estaremos “secando gelo”.
A nossa expectativa é a de que consigamos avançar em algumas pautas que tragam visibilidade para os povos indígenas do Brasil, mas também sendo realistas de que a participação de muitos países na COP não tem, necessariamente, uma ação efetiva na prática de enfrentamento à crise climática.
IHU – Quais as estratégias baseadas nos territórios que podem ajudar a mitigar a crise climática?
Milton Felipe Pinheiro – A primeira forma é cada um pensar o seu lugar no mundo, pensar o seu lugar na natureza. É estar dentro da natureza e enxergar o seu papel nela, se você é uma continuidade dela ou se a sua é mais uma espécie que veio da natureza. A partir disso, podemos repensar a nossa relação.
Quando estamos na cidade, ficamos imersos nesse clima, alienados e, de certa forma, anestesiados dentro de um cotidiano: acordamos, vamos ao trabalho, dormimos, descansamos nos fins de semana… Com isso, não temos tempo de pensar o nosso lugar dentro dessa relação.
E as práticas do cotidiano também são importantes, reduzindo cada vez mais o impacto que causamos no nosso próprio território. É preciso entender que, para existirmos, precisamos desse território. Então, temos que reduzir os impactos o tempo todo. Além de entender que esse território leva um tempo para se recuperar.
Se uma terra é usada para plantar por um tempo, depois tem que deixá-la descansar, se recuperar e se regenerar. Depois voltamos a trabalhar com ela. E sempre em alinhamento de ser continuidade dessa natureza.
Em territórios indígenas, usamos muito a prática da agrofloresta, que é plantar integrado à floresta, dando continuidade a essa floresta, e não desmatando e plantando uma coisa só, como faz a monocultura.
IHU – Durante a Pré-COP Indígena e na COP30, a demarcação de terras foi reafirmada como política climática prioritária. Qual a importância dessa afirmativa?
Milton Felipe Pinheiro – A importância dessa afirmativa é porque ela demarca o posicionamento dos povos indígenas dentro da agenda do enfrentamento à crise climática. Os povos indígenas estão afirmando que, para efetivamente lutar contra a crise climática, é preciso de terra e território demarcado.
O enfrentamento à crise climática perpassa as relações com o território e com a concepção de terra e território que a sociedade tem. Sabemos que no Brasil os povos indígenas desempenham um papel central na defesa dos biomas. Mas isso acontece quando há terra demarcada, quando há terra garantida.
E, principalmente, há formas de subsistência, de existência dentro desse território para os povos indígenas. Eleger a demarcação como algo prioritário é mostrar ao mundo que os povos indígenas já entenderam o seu papel central dentro dessa agenda e que falta o poder, o Estado, entender o seu papel, que é demarcar e garantir a terra e o território para os povos indígenas.
IHU – Por que a inclusão da demarcação de terras como NDC (meta climática do Brasil) pode ser considerada uma resposta à crise ambiental?
Milton Felipe Pinheiro – Eu acredito que [a demarcação de terras] deve ser considerada uma resposta à crise ambiental, porque essa crise começa com a colonização, ela não começa na Revolução Industrial. A crise ambiental começa com a colonização dos continentes, quando os colonizadores chegam nos territórios e redefinem a relação do homem e da natureza nesses locais. Ali a colonização começa a instalar a crise climática.
Quando a colonização pega uma relação que era afetuosa e transforma numa relação de exploração para aprofundar o capitalismo, ela começa a crise climática. Portanto, priorizar a demarcação de terra indígena, demarcar como uma meta climática no Brasil, é entender que é preciso fazer um caminho de retorno, que é preciso demarcar territórios indígenas, preservar essas relações, para efetivamente chegar à raiz do problema.
IHU – Qual é a bandeira de luta dos povos indígenas na COP30?
Milton Felipe Pinheiro – A principal bandeira é por território, é por terra. Nós precisamos dos povos indígenas incluídos nos debates, nas políticas públicas, mas precisamos, antes de tudo, que os povos indígenas tenham território e terra demarcada por uma questão de sobrevivência. A partir dessa relação com a terra e com o território, os povos indígenas terão condições de dar respostas ainda mais qualificadas à crise climática.
Considerando também toda a conjuntura da direita e extrema-direita, de tentar mudar na própria Constituição os direitos dos povos sobre as suas terras e territórios, essa é a bandeira prioritária.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Milton Felipe Pinheiro – Eu gostaria de acrescentar uma reflexão sobre a questão da crise climática. Vemos muitas vertentes sobre a questão ambiental, algumas mais demagógicas, que responsabilizam o indivíduo, que você precisa escovar os dentes com a torneira fechada, lavar a calçada com o balde, porque é o seu consumo individual que está gerando a crise climática. Mas isso não é verdade.
Quem gera a crise climática é o capitalismo, são as grandes empresas, são os mais ricos. Eles sozinhos causam um impacto que nós todos juntos não causamos. O que a Vale fez em Brumadinho e em Mariana, o que a Braskem está fazendo em Maceió, não é sobre alguém ter escovado o dente com a torneira aberta, é sobre uma empresa que decide explorar aquele território e causa um impacto ambiental gigantesco.
Precisamos parar de olhar a crise climática nesse viés liberal da culpa individual e olhar para o sistema, para o modo de produção capitalista, para os mais ricos, para as empresas. Precisamos olhar o impacto ambiental que elas têm causado nos territórios para gerar lucro, para enriquecer um número muito pequeno de pessoas.
O enfrentamento à crise climática passa por retomar nossas relações com a natureza. Os povos indígenas sofreram genocídio, etnocídio, perseguições, memoricídio, e mesmo assim esses povos chegam até hoje com suas línguas, com suas memórias, com suas práticas, com suas formas de se relacionar com a natureza.
O mundo precisa olhar para esses territórios, o Estado precisa criar políticas que reparem essas memórias para que elas sejam disseminadas na sociedade e consigamos retomar as nossas relações afetuosas com a natureza.