Capitalismo de extermínio universaliza expropriação e controle, tendo como fundamento o racismo de Estado. Financeirização e guerra civil contra pobres, migrantes e minorias delineiam o cenário do século XXI.
“Proponho a noção de ‘grau zero da raça’ para indicar aqueles pontos de descontinuidade nos discursos que Foucault estuda durante os séculos XVII e XVIII, em que ainda não há um discurso plenamente constituído sobre a raça, mas já se anunciam suas condições de emergência. Esse ‘grau zero’ marca um limiar, entendido como ruptura que suspende a continuidade dos discursos, abrindo um espaço inaugural”. A reflexão é do filósofo Carlos Eduardo Ribeiro na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Em suas investigações em curso, ele explica que esse “grau zero da raça” também pode ser nomeado como protorracismo europeu: “o momento em que o discurso da raça se esboça como formação discursiva singular, condição de existência do racismo colonialista e de suas codificações biopolíticas-coloniais. Talvez eu esteja aqui perseguindo a infeliz e efetiva coincidência entre um grau zero da razão – autodelimitada e universal europeia – e um grau zero da raça – o outro racializado e submetido ao acaso das peripécias da natureza”.
A partir do cenário contemporâneo de conflagração de inúmeras guerras e perseguição a imigrantes, Ribeiro pondera, com base em suas pesquisas, haver indícios para aquilo que pode ser classificado como uma guerra racial de classes. Se o racismo “nasce do poder colonizador, a hierarquização das vidas hoje se exerce pela financeirização e pela guerra civil mundial contra pobres, migrantes e minorias”. Expropriação e controle são universalizados em tempos de capitalismo de extermínio.
 
Carlos Eduardo Ribeiro | Foto: Arquivo Pessoal
Carlos Eduardo Ribeiro é licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde também cursou mestrado e doutorado em Filosofia, com a tese Foucault: uma arqueologia política dos saberes. De seus inúmeros artigos acadêmicos publicados, destacamos “Tão útil quanto dócil: o corpo produtivo e a eficácia imaterial em Foucault” (Revista Dissertatio de Filosofia, v. 60, p. 95-118, 2024). É professor de Filosofia Contemporânea na Universidade Federal do ABC (UFABC), onde é credenciado no Programa de Pós-graduação em Filosofia, além de membro do grupo Internacional Red Iberoamericana Foucault da Universidad Complutense de Madrid. Em 2021, fundou o grupo de estudos e pesquisa FILO_ARC – Filosofias do arquivo (UFABC/CNPq). Também é artista da dança, atividade ligada à extensão universitária, fundando o núcleo de Extensão e Cultura Dança-Arte-Filosofia em 2015 (DAAFI).
IHU – Quais são as temáticas centrais enfrentadas por Michel Foucault no curso “Em defesa da sociedade”?
Carlos Eduardo Ribeiro – Creio que uma resposta apressada será sempre dizer que o principal tema do curso dado no Collège de France em 1976 é a biopolítica, a descoberta do poder sobre a vida no nível da espécie e como o outro lado do corpo-máquina. E, de fato, é inevitável situar Foucault (1) entre Vigiar e Punir (1975) e História da Sexualidade I (1976), ou seja, entre o corpo-máquina estudado nos diferentes sistemas disciplinares e o corpo-população. É uma resposta que acabou formando certa ortodoxia no comentário foucaultiano.
Muitos de nós, pesquisadores do pensamento de Foucault, acabamos nos restringindo à descoberta da biopolítica e, com isso, parece que limitamos a leitura à última aula do curso. Mas veja: trata-se da última aula de um curso de suma importância. Isso acabou, creio eu, por obscurecer temáticas que, justamente por causa dessa resposta apressada – e de algum modo consagrada –, são fundamentais para compreender uma série de interesses que Foucault manteria depois de 1976. Entre eles, a razão de Estado: sem uma compreensão conceitual adequada da função da guerra no curso, ficamos um tanto sem saber como Foucault chegou até a razão de Estado e começou a se interessar por essa nova forma de racionalidade política que emerge entre o fim do século XVI e o século XVII, sobretudo, vejam só, após as guerras de religião e a crise das formas medievais de soberania. Ela corresponde à tentativa de fundar uma arte de governar específica ao Estado moderno.
Ora, foi o intenso trabalho genealógico sobre a guerra, desenvolvido no curso de 1976, que levou Foucault até aí. De todo modo, se tivermos de enumerar os eixos temáticos desse curso, é preciso enfatizar, antes de tudo, que se trata de um momento nítido de balanço da analítica do poder. Talvez mais que um balanço: Foucault realiza um teste de resistência sobre seu próprio trabalho. Algo absolutamente claro desde a primeira aula, quando liga sua prática genealógica ao que denomina de revolta dos saberes, certo reaparecimento de saberes locais que formam um contexto de luta: os saberes do psiquiatrizado, do doente, do médico, do enfermeiro, do delinquente, etc.
O teste feito foi o seguinte: “será que realmente essa analítica do poder, será que o trabalho sobre a hipótese Nietzsche – o modelo nietzschiano da batalha praticado por mim sobre esses campos disciplinares – possui uma condição de existência histórica mais ampla, que permitiria o aparecimento da cena disciplinar em fins do século XVIII?”
O curso introduz, então, a ideia de que a política é a continuação da guerra por outros meios, uma inversão da famosa máxima de Clausewitz. Qual a finalidade dessa inversão? Pouco se percebe, mas essa é precisamente a pergunta genealógica do curso: quando, e por quais motivos, sob quais relações de força, deu-se início a essa imaginação política que passou a ver na guerra o funcionamento social enquanto discurso histórico?
A partir desse horizonte mais amplo de reavaliação e com uma pergunta genealógica decisiva em mãos, eu diria que o curso pode ser reconduzido a quatro campos centrais de discussão:
1) A inversão metodológica: estabelece-se a partir da crítica à teoria jurídica e à soberania. No lugar de compreender o poder a partir do direito, parte-se da luta, da guerra e da dominação como princípios explicativos. O poder não é um contrato, mas uma relação estratégica e conflitiva. Foucault se detém nesse balanço como quem tateia a relação entre disciplina e razão de Estado – ainda sem nomeá-la. Aqui se inserem também outras temáticas, como a crítica à noção freudo-marxista de poder (que ele estudará mais tarde, em 1976, como hipótese repressiva para a genealogia do dispositivo de sexualidade) e a questão do correlato poder/resistência, entre outras. Tudo isso reaparece em História da Sexualidade I.
2) O tema da luta de raças: talvez o eixo decisivo da pesquisa em desenvolvimento nesse curso – até mais importante que sua transcrição posterior na categoria de racismo de Estado. A luta de raças é o discurso que responde à pergunta genealógica de Foucault: foi ela que implementou uma primeira percepção da guerra como funcionamento social, o primeiro “gabarito de inteligibilidade” desse fenômeno. Entre os séculos XVII e XIX, emerge na Europa um discurso histórico que interpreta a sociedade em termos de conflito entre “raças” – noção que, inicialmente, não se refere à biologia ou à vida a ser defendida, mas a grupos sociais, étnicos e políticos em luta (como normandos e saxões, conquistadores e conquistados). Foucault estrutura sua argumentação de modo a opor o discurso jurídico-filosófico ao discurso histórico-político da luta de raças: o primeiro funcionaria como uma grande evitação do segundo – Hobbes versus Boulainvilliers, por exemplo, um dos representantes desse discurso na França pré-revolucionária.
Adendo: trata-se de um conjunto de aulas que exigem leitura cuidadosa – e que não posso desenvolver aqui em detalhe. Cuidadosa, sobretudo, para não confundir a luta de raças com o racismo político-biológico moderno, e também para compreender que Foucault não faz um simples elogio dessa luta como contra-história, termo que ele usará adiante. Esse discurso da luta de raças serviu a propósitos muito diferentes: aparece tanto como reação nobiliária francesa no fim do reinado de Luís XIV quanto como defesa da nação francesa unificada nos primeiros historiadores liberais, como Augustin Thierry (espécie de último representante do discurso histórico-político da luta de raças).
3) A transição da luta de raças para o racismo de Estado: quando o discurso da guerra entre raças se transforma em biopolítica, com o Estado assumindo o papel de gestor da vida (a chamada “estatização do biológico”). Nasce, segundo o pensador, o racismo de Estado, isto é, a introdução do corte entre “vidas que devem viver” e “vidas que podem ser deixadas morrer”.
4) A introdução do conceito de biopoder: Foucault apresenta o biopoder como o novo regime de poder moderno, que já não se exerce sobre territórios ou súditos, mas sobre a vida, o corpo e a população. O homem-espécie. O foco do poder desloca-se (ou se completa, eis um ponto não decidido sem a noção de Razão de Estado) da morte e da soberania para a gestão da vida, da saúde, da reprodução.
IHU – Em “Vigiar e punir”, Foucault se ocupa da sociedade disciplinar. Já em “Em defesa da sociedade”, ele articula os conceitos de biopoder e biopolítica. O que esse deslocamento da análise de poder indica?
Carlos Eduardo Ribeiro – Numa resposta padrão (e que não está incorreta, veja só, não estou desqualificando nossos comentários) esse deslocamento indica que o poder moderno passa a operar simultaneamente em dois níveis: o anatômico, que se investe sobre o corpo individual, e o biológico, que regula os processos coletivos da vida (como natalidade, mortalidade, saúde, doença, reprodução). Equação conhecida, a disciplina individualiza; a biopolítica massifica. O primeiro produz corpos dóceis; o segundo, populações governáveis. É um poder que faz viver e deixa morrer. Trata-se, portanto, de uma inflexão decisiva na analítica do poder: a passagem da anátomo-política dos corpos à biopolítica da espécie humana. Insisto, claro, que essa é uma descoberta, um ponto de chegada depois de toda pesquisa genealógica feita nas aulas do curso.
Mas acredito que seria importante enfatizar dois elementos levantados na última aula do curso de 1976 e que, muitas vezes, nos passam batidos. O primeiro é o caráter estabilizador dos fenômenos populacionais, que permitiu o surgimento de uma nova racionalidade política sobre os corpos. Quando Foucault introduz a noção de biopolítica, ele mostra que o poder passa a lidar com a vida humana não mais apenas como soma de corpos individuais, mas como um conjunto de fenômenos biológicos (natalidade, mortalidade, saúde, doença, longevidade). Esses fenômenos, embora aleatórios e imprevisíveis em nível individual (portanto, inapreensíveis no corpo disciplinar), revelam regularidades e constantes quando observados em larga escala. A população, nesse sentido, torna-se o novo sujeito do poder: um campo de acontecimentos biológicos passíveis de cálculo, previsão e regulação. O nível político-biológico é o nível estabilizado pela população. Em 1976, ainda não temos a estatística nessa conta. Para fazer um trocadilho, enfim: política das massas e análise das docilidades ou, para falar com Foucault, a função-sujeito opera como função-população.
O segundo elemento é a instalação de mecanismos reguladores (estatísticos, sanitários, previdenciários), cujo fim é a gestão desses fenômenos aleatórios e marcar o nível de estabilização da vida da população: trata-se de intervir não sobre indivíduos específicos, como faz a disciplina, mas sobre o conjunto das condições que afetam a vida coletiva. Ora, o que se busca nisso é um estado global de equilíbrio, e tais regulações produzem socialmente esse equilíbrio. Se a ênfase está na capacidade de “fazer viver”, de otimizar e prolongar a vida, de reduzir a morbidade, de estimular a natalidade e de administrar o acaso biológico, o limite silencioso da biopolítica é essa realidade biológica apreendida nas frias técnicas de regulação da vida em massa. Temos tudo preparado, portanto, para começarmos a estudar a Razão de Estado logo em 1978.
IHU – O racismo de Estado é um dos pontos mais impactantes dessa obra. O que significa essa categoria e em que sentido tensiona aquela da biopolítica?
Carlos Eduardo Ribeiro – Eu não diria tensiona, mas que o racismo é o parâmetro efetivo, e historicamente efetivo do exercício do biopoder para Foucault. O racismo é o mecanismo que torna possível a função de morte dentro do biopoder. Foucault determina algumas funções do racismo, especialmente no ponto de chegada do curso de 1976: a cesura biológica no contínuo da espécie, o fortalecimento da vida de uns pela morte de outros – isto é, uma guerra biológica de purificação do social –, a multiplicação do risco desses grupos etc. Mas, se quisermos avançar nessa tese, Lazzarato (2), a meu ver, talvez em consonância com a tese necropolítica de Mbembe (3), tensiona a gênese foucaultiana do racismo de Estado.
Basta lembrar que ele opõe à explicação eurocêntrica do racismo de Estado em Foucault (situado no fim do século XIX e entendido como efeito interno do biopoder e das sociedades de normalização europeias) a conexão histórica incontornável entre o racismo e a expansão da economia-mundo capitalista, isto é, o sistema global de exploração inaugurado pela colonização e pela escravidão. Desde o início do colonialismo, as hierarquias raciais e os códigos coloniais são produzidos como garantidores desse racismo de Estado, o que confirma a tese de Lazzarato sobre a economia colonial. Por minha conta (não sei se isso está em Lazzarato) eu diria que, desde que surgiu na Europa algo como o discurso e a doutrina do direito de conquista, começou a triste saga do racismo de Estado e da invenção da “raça” no singular. Seria difícil, hoje em dia, sustentar que o racismo de Estado é um produto tardio da biopolítica europeia.
IHU – Você está pesquisando justamente a categoria do racismo de Estado em Foucault. O que quer dizer o “grau zero da raça”?
Carlos Eduardo Ribeiro – Curiosamente, foi a partir desse ponto de defasagem apontado por Lazzarato, o fato de o racismo ser, digamos assim, da ordem colonizadora e não fruto da ordem normalizadora, que comecei a me interessar pelo modo como o discurso antropológico na modernidade é também um discurso de autorracialização. Talvez seja o momento de nós, os colonizados, nos tornarmos os etnólogos da cultura da metrópole – para inverter a fórmula de Foucault em certa entrevista concedida a Badiou – e nos perguntarmos, não “o que é o homem?”, mas “quem é esse homem aí de vocês?” Manter a diferença como método.
Lembro que em Crítica da razão negra um dos temas centrais para Mbembe é a autoficção que o homem europeu produziu sobre si mesmo: uma narrativa formada como autorreferência absoluta do homem europeu, “antes” de se projetar sobre o outro colonizado. Nesse processo, a racialização emerge não apenas como categoria externa, mas como mecanismo pelo qual o próprio homem europeu se constitui como norma e padrão. Essa autoficção é pensada por Mbembe de modo absoluto: um sujeito absoluto que expulsa a possibilidade de copertencimento de qualquer ordem (racional, cultural, epistêmica).
Acontece que essa estabilização da autoimagem da Razão europeia, esse espelhamento tem, ela própria, uma história. E não teria sido justamente esse o gesto do arqueólogo da alienação em seu primeiro grande livro? Mostrar que a razão ocidental construiu a si mesma por meio de um processo de enclausuramento do Outro, de supressão da loucura como dimensão da experiência humana, a ponto de definir sua modernidade pelo estatuto do indivíduo normal?
Proponho a noção de “grau zero da raça” para indicar aqueles pontos de descontinuidade nos discursos que Foucault estuda durante os séculos XVII e XVIII, em que ainda não há um discurso plenamente constituído sobre a raça, mas já se anunciam suas condições de emergência. Esse “grau zero” marca um limiar, entendido como ruptura que suspende a continuidade dos discursos, abrindo um espaço inaugural.
A investigação das condições de formação desse discurso na ciência e na filosofia dos séculos XVII e XVIII na Europa não foi exatamente o que fez Foucault, apenas parcialmente quando estudou a luta de raças; portanto, a pesquisa se vale de outros materiais para avançar. Talvez seja preciso reencontrar, com mais detalhes discursivos, o dia em que o discurso da raça se formou para o homem europeu como sua autodenominação racional-racial. Parte substancial dessa pesquisa seria, portanto, dessa ordem: o interesse por um ponto de inflexão – compreender como o discurso racial emerge no interior da Europa, tributário da disposição antropológica moderna, antes de ser projetado sobre o colonialismo.
E esse “antes” não deve ser entendido em sentido meramente cronológico, como se houvesse uma sequência linear e uma causalidade simples entre Europa e colônias; trata-se de uma anterioridade estrutural (senão simultânea, ao menos paralela) – uma anterioridade que constitui um plano de condições de possibilidade que viabiliza a própria formulação do enunciado colonialista.
A isso chamo de grau zero da raça, ou protorracismo europeu: o momento em que o discurso da raça se esboça como formação discursiva singular, condição de existência do racismo colonialista e de suas codificações biopolíticas-coloniais. Talvez eu esteja aqui perseguindo a infeliz e efetiva coincidência entre um grau zero da razão (autodelimitada e universal europeia) e um grau zero da raça (o outro racializado e submetido ao acaso das peripécias da natureza).
IHU – Em defesa da sociedade é essencial para entender como o poder moderno opera de forma muito mais sutil e profunda do que a pura repressão, atuando diretamente sobre a vida biológica dos indivíduos e da população. Como essa governamentalidade se articula com o poder soberano no século XXI e as inúmeras guerras em curso e na perseguição aos migrantes, como nos EUA?
Carlos Eduardo Ribeiro – Admito que, para um pesquisador vindo de uma formação extremamente tradicional, “uspiana” e que passou a maior parte da vida acadêmica situando os textos de um autor, delimitando problemas internos a uma obra, isto é, sendo um cumpridor de tarefas de trabalhador filosófico, como diria Nietzsche (4) (ou Arendt? (5)), vejo-me, agora, um tanto constrangido para responder de imediato.
Possivelmente a pesquisa que comecei, e sobre a qual comentei, seja a primeira tentativa efetivamente distinta da escolástica filosófica à qual estive submetido todos esses anos. Por honestidade intelectual, era necessário pensar mais detidamente sobre essa questão. Tenho acompanhado, contudo, a noção de Alliez e Lazzarato de acumulação primitiva como processo contínuo de expropriação e destruição que estrutura toda a economia-mundo. Essa acumulação permanente é sustentada, entre outras guerras, pela guerra racial: uma guerra permanente contra populações em que o racismo opera como princípio da economia global e a violência, como forma de governo.
Eu diria, sem muitas certezas, mas com sérios indícios dessas minhas leituras, que as guerras contemporâneas (de Gaza à perseguição do governo estadunidense aos imigrantes) podem ser reconduzidas ao que eles analisam como guerra racial de classes. Como o racismo, para eles, nasce do poder colonizador, a hierarquização das vidas hoje se exerce pela financeirização e pela guerra civil mundial contra pobres, migrantes e minorias.
E não seria alarmismo supor que os neofascismos que conhecemos na carne de nossas sociedades apenas tornaram visível o que sempre esteve em operação: que a raça não é um acidente da modernidade, mas o seu modo de operar funcional. Expropriação e controle, é isso o que se universaliza na era de um capitalismo de extermínio.
Chamaria a atenção, nesse sentido, um exemplo que pude desenvolver parcialmente no artigo “Onde há morte massiva, há racismo: alguns elementos para a compreensão do racismo neoliberal” (2024).
Uma forma politicamente incisiva do racismo neoliberal, pelo menos no caso do Brasil, manifesta-se sobre uma população racializada específica, sobre a qual se exerce um tipo particular de governamentalidade: o governo pelo endividamento, outra noção vinda de Lazzarato. São as mulheres negras, as chefes de família, responsáveis pela gestão da vida orçamentária cotidiana e alvos privilegiados do superendividamento.
Deve chamar a atenção, portanto, o fato de que a política da dívida no Brasil se exerça prioritariamente nesse território e sobre essa população, a mesma que foi historicamente expropriada no interior de uma exploração econômica, social, política e cultural de matriz escravista, inscrita no próprio colonialismo. Não se trata, evidentemente, de mera coincidência histórica que encontremos hoje as mulheres negras submetidas a um processo de endividamento não voltado à aquisição de bens de consumo, mas à própria sobrevivência.
(1) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Sobre seu pensamento confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia), disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/466; Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/335; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/203 e Edição 119, de 18-10-2004, Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/119.
(2) Maurizio Lazzarato: sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. Participa de ações e reflexões sobre os “intermitentes do espetáculo” no âmbito da CIP-idf (Coordination des Intermittents et Précaires d’Île-de-France), onde coordena uma “pesquisa-ação” sobre o estatuto dos trabalhadores e profissionais do espetáculo e do mundo das artes, além de outros trabalhadores precários. Junto com Antonio Negri é um dos fundadores da revista Multitudes. De suas obras publicadas destacamos Trabalho imaterial (Rio de Janeiro: DP&A, 2001), escrita com Toni Negri, e La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale (Paris: Editions Amsterdam, 2011). Lazzarato esteve na Unisinos como conferencista do V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica, III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação e XVII Simpósio Internacional IHU Saberes e práticas na constituição dos sujeitos na contemporaneidade. Confira a entrevista exclusiva que concedeu à Revista IHU On-Line 468, de 29-06-2015, intitulada O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6018-maurizio-lazzarato
(3) Achille Mbembe (1957): filósofo, cientista político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês. Seus principais temas de investigação são história da África, pós-colonialismo, ciências sociais e política. Embora seja chamado de teórico pós-colonial, em boa parte devido ao nome em inglês do seu primeiro livro, ele recentemente rejeitou o termo, porque vê seu projeto como um trabalho tanto de aceitação quanto de transcendência da diferença, em vez de um retorno para uma terra natal original, marginal e não-metropolitana. Segundo Mbembe, o conceito de biopoder, de Michel Foucault, como um agrupamento de poder disciplinar e biopolítica, não é mais suficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação. Aos insights de Foucault sobre as noções de poder soberano e biopoder, Mbembe acrescenta o conceito de necropolítica, que vai além de simplesmente "inscrever corpos dentro de aparatos disciplinares". Discutindo os exemplos da Palestina, África e Kosovo, Mbembe mostra como o poder da soberania agora é encenado através da criação de zonas de morte, onde a morte se torna o último exercício de dominação e a principal forma de resistência.
(4) Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, a filosofia e a ciência, exibindo certa predileção por metáfora, ironia e aforismo. É famoso por sua crítica à religião, em especial o cristianismo. Sobre seu pensamento, confira a Edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-24, intitulada Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/127 e a Edição 529, de 01-10-2018, intitulada Nietzsche. Da moral de rebanho à reconstrução genealógica do pensar, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/529
(5) Hannah Arendt (1906-1975): filósofa política alemã de origem judaíca, uma das mais influentes do século XX. A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, forçaram Arendt a emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como "filósofa" e também se distanciava do termo "filosofia política"; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da "teoria política". Sobre essa pensadora, confira a Edição 206, de 27-11-2006 da Revista IHU On-Line, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/206.