Para onde vai a Igreja Católica? Entrevista especial com Carlos Eduardo Sell

O futuro depende do modo como a Igreja se organiza e se adapta, diz o sociólogo

Foto: Thiago Leon | Reprodução da Arquidiocese de Vitória da Conquista

14 Junho 2025

Quando intelectuais de diversas áreas tratam de analisar a Igreja Católica, as ênfases são mais que evidentes e não é incomum a tentativa de contrapor a Igreja institucional às correntes que a circundam ou gravitam em torno dela. Mas o que é a Igreja Católica enquanto instituição e como ela opera institucionalmente em relação às forças que surgem no seu interior? Essa é uma das questões abordadas por Carlos Eduardo Sell no livro recém-lançado pela editora Vozes, Para onde vai a Igreja Católica? Uma análise sociológica. Segundo a tese do autor, “a direção futura da Igreja depende menos das pressões externas e mais do modo como ela própria se organiza e se adapta institucionalmente”.

Se, de um lado, as abordagens de membros da Teologia da Libertação, da Renovação Carismática Católica e de grupos conservadores sugerem que a Igreja é um “mosaico de bolhas que disputam uma instância neutra chamada ‘hierarquia’”, o que acontece na prática institucional é bastante diferente, pontua o entrevistado. “É a própria instituição que define os contornos, os limites e a legitimidade de cada uma dessas expressões internas. (…) A partir de sua lógica interna, o aparato eclesiástico tende a absorver, regular e instrumentalizar inclusive suas forças internas mais disruptivas, integrando-as funcionalmente ao corpo institucional”. 

Para Sell, isso aconteceu com as três correntes que se destacam no catolicismo brasileiro atual. “Ao contrário do que sustentaram muitos críticos, a Teologia da Libertação não foi suprimida, mas sim reabsorvida pela instituição. (…) O mesmo mecanismo esteve em operação quando a CNBB publicou, em 1994, o documento que regulamenta a Renovação Carismática Católica (…) Por essa mesma lógica integradora, grupos tradicionalistas como os Arautos do Evangelho ou a Associação Sacerdotal São João Maria Vianney foram reincorporados à estrutura institucional católica, desde que aceitassem a legitimidade da Igreja oficial”, exemplifica.

Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador aborda as recentes transformações observadas na Igreja: a recepção do Concílio Vaticano II por João Paulo II, Bento XVI e Francisco, os eixos centrais do pontificado do Papa argentino, o “laboratório teológico e pastoral das correntes mais progressistas da Igreja no Brasil” na Amazônia, a crise da Teologia da Libertação, a força ascendente do catolicismo carismático, a polarização afetiva dentro da Igreja, a “guerra cultural em torno dos valores morais” e o perfil do clero a partir de uma pesquisa realizada em Santa Catarina.

Sell também analisa o primeiro mês do pontificado de Leão XIV e assegura que quem não compreende o que é a Igreja nas suas dimensões peregrina e celeste “vai se decepcionar com Leão XIV”.

Carlos Eduardo Sell (Foto: Reprodução UFSC)

Carlos Eduardo Sell é graduado em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque, mestre e doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde leciona no Departamento de Sociologia e Ciência Política. É autor de Max Weber e a racionalização da vida (Vozes, 2013), premiado pela Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) como melhor obra científica de 2013, e Sociologia clássica: Marx, Durkheim e Weber (Vozes, 2015). Organizou, com Carlos Benedito Martins, Teoria  sociológica contemporânea: Autores e perspectivas (Vozes, 2022).

Confira a entrevista.

IHU – No livro, o senhor recorre a autores como Max Weber, Pierre Bourdieu, Niklas Luhmann, Norbert Elias, Antonio Gramsci e Carl Schmitt para fundamentar a análise sobre a Igreja Católica enquanto instituição e as forças que gravitam em torno dela. Qual é a atualidade desses autores e como suas teorias ajudam a compreender as transformações sociais da Igreja?

Carlos Eduardo Sell – Meu livro não pretende abordar o catolicismo de modo genérico, mas analisar a Igreja Católica como uma instituição, dotada de uma lógica social e política própria. Embora o catolicismo ultrapasse a estrutura eclesiástica, é impossível compreendê-lo sem considerar sua dimensão institucional.

A pergunta “para onde vai a Igreja?” exige, antes, compreender o que ela é enquanto organização. Frequentemente, as ciências sociais fragmentam o catolicismo em expressões isoladas (popular, carismática, da libertação, tradicional), enquanto a teologia tende a colocar todos os “modelos de Igreja” no mesmo nível. Este livro defende que a estrutura institucional não é apenas mais uma forma entre outras, mas o núcleo que organiza e articula todas elas.

Capa do livro Para onde vai a Igreja Católica, de Carlos Eduardo Sell (Foto: Reprodução Livraria Vozes)

Para entender essa lógica, recorro a autores como Carl Schmitt, que identifica no catolicismo uma forma jurídico-política, e Max Weber, que diferencia a Igreja da seita com base em seu caráter inclusivo e sacramental. A mediação institucional do sagrado, em vez de suprimir o carisma, estabiliza-o, criando uma relação de reforço mútuo entre carisma e hierarquia – o que explica a resiliência da Igreja sacramental e hierocrática, inclusive após o Vaticano II.

Niklas Luhmann contribui ao mostrar a Igreja como sistema autorreferente, que mantêm sua identidade por meio da regulação interna. Pierre Bourdieu ilumina a dimensão simbólica e política dessa lógica, e Antonio Gramsci mostra como ela se traduz em disputas hegemônicas internas. Norbert Elias, por fim, oferece uma perspectiva processual para compreender como essas estruturas se mantém ao longo do tempo.

A tese central é que a direção futura da Igreja depende menos das pressões externas e mais do modo como ela própria se organiza e se adapta institucionalmente.

IHU – A sua posição se contrapõe à interpretação de que os pontificados de João Paulo II e Bento XVI foram uma “reversão conservadora do concílio”, enquanto o pontificado de Francisco representou “a retomada do caminho interrompido”. Segundo sua análise, os pontificados acentuaram aspectos diferentes: João Paulo II e Bento XVI, a estabilidade; Francisco, a renovação. Pode explicar essa posição?

Carlos Eduardo Sell – A leitura segundo a qual os pontificados de João Paulo II e Bento XVI teriam sido “anticonciliares” – uma espécie de traição ao Concílio Vaticano II –, enquanto somente com Francisco retomar-se-ia sua verdadeira inspiração, é expressão de disputas ideológicas que atravessam o interior da Igreja. Tal interpretação, no entanto, é equivocada, tanto do ponto de vista teológico quanto sociológico.

Negar a legitimidade conciliar do ciclo eclesial de Wojtyla e Ratzinger implicaria classificá-los, na prática, como hereges – o que paradoxalmente espelha a retórica tradicionalista que, por sua vez, contesta a legitimidade do pontificado de Francisco. Causa surpresa que tal posição seja sustentada por teólogos católicos.  

Do ponto de vista sociológico, a questão é ainda mais complexa. O aggiornamento conciliar, consubstanciado em 16 documentos, é amplo e heterogêneo, o que permite múltiplas leituras. Não existe uma interpretação única ou definitiva do Concílio. Nos termos de Niklas Luhmann, a recepção das ideias conciliares é um processo de construção de memória – sempre parcial e seletiva. Lembrar implica, necessariamente, esquecer: acessar a memória é escolher o que reter.  

João Paulo II assumiu a Igreja em um momento de profunda desinstitucionalização, marcada pela erosão do edifício tridentino: abandono do sacerdócio e da vida religiosa consagrada, queda na frequência às missas e perda de identidade institucional: “a fumaça de Satanás entrou na Igreja”, chegou a dizer Paulo VI, frase que ilustra como essa situação era dramaticamente percebida. A resposta de Wojtyla foi uma hermenêutica conciliar voltada à normalização e um projeto de reinstitucionalização da Igreja (Código de Direito Canônico, Catecismo etc.). Dado o cenário, era difícil imaginar outra via de ação. 

Francisco assume o papado diante de uma crise de natureza distinta: não mais a desinstitucionalização, mas o enrijecimento das estruturas eclesiais e a crise de legitimidade do aparato romano, marcado por abusos sexuais e escândalos financeiros. Sua resposta consiste em uma releitura do Concílio a partir da teologia do povo, desenvolvida na Argentina, e na promoção de um ciclo eclesial voltado à renovação pastoral e simbólica. 

Meu trabalho propõe uma abordagem analítica que busca neutralizar as cargas ideológicas das interpretações teológicas em disputa. Tanto João Paulo II e Bento XVI quanto Francisco responderam, a partir de hermenêuticas conciliares próprias, a crises históricas específicas. O primeiro ciclo visou reduzir o horizonte de incerteza gerado como subproduto do pós-Concílio; o segundo, ampliar esse horizonte para possibilitar um rearranjo institucional mais flexível. Em ambos os casos os objetivos convergiam: preservar os interesses fundamentais da instituição e garantir sua continuidade.

IHU – Quais foram os eixos centrais do pontificado de Francisco e o que esse pontificado significou para a Igreja?

Carlos Eduardo Sell – Procurei compreender o pontificado de Francisco condensando suas iniciativas em quatro eixos centrais: 1) reforma da Cúria Romana, 2) reforma sinodal, 3) reforma moral e 4) magistério social. Essa escolha é uma síntese teórica, mas não é arbitrária. Esses eixos tocam os pilares estruturais do catolicismo: o governo central da Igreja, a mediação clerical, a vida moral dos fiéis e a relação da Igreja com o mundo. Todo o sistema eclesial está, em maior ou menor grau, implicado nessas reformas. Tais eixos revelam a radicalidade do programa de governo de Francisco: trata-se de um projeto de transformação estrutural das bases do catolicismo contemporâneo.

1) Reforma da Cúria 

Sou cético quanto à capacidade da reforma curial, consubstanciada na Praedicate Evangelium, de romper efetivamente com a lógica burocrática de poder que rege secularmente a cúria romana. Como qualquer aparato administrativo, ela tende a preservar seus próprios interesses institucionais. 

2) Reforma sinodal

A reforma sinodal, por outro lado, é de natureza profundamente disruptiva. Ao incidir sobre o pilar hierárquico da Igreja, introduz elementos participativos na governança eclesial, ampliando o protagonismo dos leigos. Francisco aposta, aqui, em formas de consulta e discernimento coletivo que visam superar a lógica vertical e apontam para uma eclesiologia mais horizontalizada.

3) Reforma moral 

No plano moral, o papa promove uma virada pastoral cujo efeito é o tensionamento das normas estabelecidas. Medidas como a admissão à comunhão dos recasados (Amoris Laetitia) e a bênção de casais do mesmo sexo (Fiducia Supplicans) são emblemáticas. Tais gestos visam superar o paradigma moral assentado no direito natural – como explicitado em Humanae Vitae e Veritatis Splendor – e abrir caminho para uma ética fundada na consciência subjetiva. Há, nesse movimento, uma tentativa de transição paradigmática: de Tomás de Aquino a Kant. 

4) Magistério social

O quarto eixo é o magistério social, sintetizado na imagem da “Igreja em saída”. Em continuidade com a doutrina social da Igreja, Francisco acentua a crítica ao neoliberalismo – “uma economia que mata” –, mas amplia o escopo da crítica para abranger a crise ecológica e os riscos da civilização tecnológica (Laudato Si’). À medida que o neoliberalismo entra em colapso sob a pressão do populismo e dos nacionalismos identitários, ele reposiciona o discurso papal em direção à fraternidade universal (Fratelli Tutti). O ecumenismo, especialmente com o mundo islâmico, pode ser inserido nesse conjunto. 

Nenhum desses processos pode ser dissociado da Teologia do Povo, corrente argentina da Teologia da Libertação marcada pela contraposição entre povo e elite. Daí a ênfase de Francisco em uma Igreja sinodal gerida a partir das bases (povo santo fiel), em contraposição às elites eclesiásticas; a rejeição do elitismo moral em nome da consciência pessoal (“a Eucaristia não é um prêmio para os fortes, mas remédio para os fracos”); e a aliança com os movimentos populares (“terra, teto e trabalho”) e com a “economia de Clara e Francisco” como resposta às crises do tempo presente. 

IHU – Já é possível dizer qual é o legado do pontificado de Francisco? 

Carlos Eduardo Sell – A implementação dessas reformas exigiu de Francisco um modelo de liderança transformacional ainda pouco estudado. Em termos de método de governo, ele foi fiel ao princípio de que “o tempo é superior ao espaço”: mais do que ocupar estruturas, trata-se de iniciar processos. 

Esses processos semearam uma nova semântica no imaginário católico – “Igreja em saída”, “hospital de campanha”, “casa comum”, “todos, todos, todos”, e assim por diante – que penetrou profundamente no tecido eclesial. No entanto, processos baseados no carisma, se não forem traduzidos em estruturas estáveis, tendem à dissolução. Além disso, o tensionamento necessário para reformar estruturas trouxe à tona fissuras latentes no catolicismo. Francisco não dividiu a Igreja – mas potencializou clivagens que há muito estavam presentes, e que agora se condensaram em campos de disputa que o papa teve de mediar. Isso explica o jogo de avanços e recuos de seu pontificado. 

É prematuro falar em legado. O tempo é quem o determinará. Francisco deixa a Igreja em um estado paradoxal: seu carisma pessoal e mesmo o carisma papal enquanto instituição foram fortalecidos, mas a instituição encontra-se fragilizada, sobretudo devido à crítica ao clericalismo: papa, cúria e bispos ficaram em lados opostos. Além disso, emerge um conflito geracional nítido: padres jovens e católicos praticantes tendem a ser mais tradicionais, enquanto bispos mais velhos e católicos nominais são mais liberais. Nesse ponto, Frei Betto tem razão ao dizer que a Igreja Católica tem uma “cabeça progressista e um corpo conservador”. 

Francisco foi, sem dúvida, o experimento mais ousado de implementação da agenda liberal-progressista pela cúpula eclesiástica do catolicismo contemporâneo. Mas seu destino permanece em aberto. 

IHU – Que disputas e modelos eclesiológicos emergiram ou foram evidenciados no Sínodo para a Amazônia, tanto no Instrumentum Laboris quanto no documento Querida Amazônia, em âmbito nacional e global? O que esse sínodo significou para a Igreja e como as disputas manifestas continuam reverberando?

Carlos Eduardo Sell – Mais do que um sínodo regional, o Sínodo da Amazônia (de 2019) tornou-se um campo simbólico de confrontação entre as múltiplas forças conservadoras e progressistas – ambas internamente heterogêneas – que compõem a Igreja universal. Esses polos se constituíram como grupos de pressão organizados em torno de agendas divergentes, disputando, explícita ou veladamente, os rumos do catolicismo global.

Mais interessante, porém, é observar como a Amazônia se converteu, nas últimas décadas, em um verdadeiro laboratório teológico e pastoral das correntes mais progressistas da Igreja no Brasil (“Amazonizar a Igreja”). A tradicional “Igreja popular”, antes fortemente enraizada no eixo urbano Rio-São Paulo, foi estrategicamente deslocada para a periferia amazônica, sob a liderança de figuras como o cardeal-arcebispo Dom Leonardo Ulrich Steiner, herdeiro espiritual da tradição de Dom Pedro Casaldáliga. Esse deslocamento não foi apenas geográfico, mas também simbólico e eclesiológico: a periferia tornou-se o novo centro.

Esse “sonho amazônico” ganha forma concreta na proposta de um “rito amazônico”, que não se limita à criação de um novo conjunto litúrgico. Ele é concebido como uma nova forma de ser Igreja, marcada pela valorização dos leigos – especialmente das mulheres – como protagonistas e pela superação de modelos clericais, patriarcais e eurocêntricos. O rito, nesse sentido, funciona como metáfora de um projeto eclesial alternativo.

Quem desejar compreender o futuro das forças progressistas da Igreja latino-americana deve prestar atenção a esse projeto em gestação: trata-se de uma virada pós-colonial, democrática e ecológica da Teologia da Libertação, com epicentro na Amazônia – exatamente a região de maior crescimento das igrejas evangélico-pentecostais no Brasil. 

IHU – Ao analisar a Igreja Católica no Brasil, o senhor destaca que no centro está a Igreja, enquanto instituição que segue uma lógica própria e garante a unidade, e que em torno dela gravitam a Teologia da Libertação, a Renovação Carismática Católica e os grupos conservadores (tradicionalistas). Como ocorre a relação entre o centro e esses pontos gravitacionais? Qual é a lógica de funcionamento da Igreja enquanto instituição em relação a essas forças? 

Carlos Eduardo Sell – A partir de sua lógica interna, o aparato eclesiástico tende a absorver, regular e instrumentalizar inclusive suas forças internas mais disruptivas, integrando-as funcionalmente ao corpo institucional. O mecanismo institucional consiste, fundamentalmente, em neutralizar os elementos dos movimentos intraeclesiais que ameacem seu monopólio hierárquico-sacramental, ao mesmo tempo que transforma suas reivindicações universalistas em carismas particulares. 

Esse padrão de resposta torna-se evidente no episódio da intervenção vaticana sobre a Teologia da Libertação, precipitada pela publicação do livro Igreja: carisma e poder, de Leonardo Boff, em 1984. Ao contrário do que sustentaram muitos críticos, a Teologia da Libertação não foi suprimida, mas sim reabsorvida pela instituição. Para tanto, foi necessário desmobilizar sua ênfase na luta de classes e, sobretudo, sua tese de que a Igreja emerge das bases comunitárias (como nas CEBs), pois essas proposições entravam em conflito com a natureza sacramental e hierárquica da Igreja.

 

O mesmo mecanismo esteve em operação quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou, em 1994, o documento que regulamenta a Renovação Carismática Católica (RCC). Nesse caso, o “batismo no Espírito” era percebido como uma mediação espiritual que se dava à margem dos canais oficiais da graça, o que colocava em risco o controle sacramental da instituição. A regulamentação da RCC teve, assim, a função de reinscrever essa experiência dentro dos limites do ordenamento hierárquico. 

Por essa mesma lógica integradora, grupos tradicionalistas como os Arautos do Evangelho ou a Associação Sacerdotal São João Maria Vianney foram reincorporados à estrutura institucional católica, desde que aceitassem a legitimidade da Igreja oficial. 

Dessa forma, a Igreja Católica no Brasil não pode ser compreendida como um mosaico de bolhas (carismáticos, conservadores, adeptos da Teologia da Libertação) que disputam uma instância neutra chamada “hierarquia”. Ao contrário: é a própria instituição que define os contornos, os limites e a legitimidade de cada uma dessas expressões internas. Em última instância, é a forma sacramental-jurídica da Igreja que determina o destino de suas correntes internas.  

IHU – A Teologia da Libertação, a Renovação Carismática Católica e os grupos conservadores (tradicionalistas) são as forças que, segundo sua pesquisa, lutam para desenhar o futuro do catolicismo. Como a disputa pelo futuro se manifesta hoje? Que modelo eclesiológico cada grupo propõe e em que aspectos se aproximam e se distanciam?

Carlos Eduardo Sell – Essas correntes representam distintas formas de compreensão e vivência do catolicismo, cada uma delas refletindo, a seu modo, os processos contemporâneos de subjetivação da fé, catalisados pela secularização moderna. Como argumenta Peter Berger, a secularização (categoria que, infelizmente, ele abandona) implica, em última instância, um pluralismo acentuado – não apenas entre religião e não religião ou entre diferentes tradições religiosas, mas no interior mesmo de cada grupo religioso. No caso do catolicismo, esse pluralismo se manifesta em configurações internas profundamente heterogêneas.

Nos termos de uma tipologia inspirada em Max Weber, o catolicismo da libertação configura-se como uma “religiosidade escatológico-messiânica”; o catolicismo carismático, por sua vez, expressa uma forma de “religiosidade congregacional pneumático-emotiva”, caracterizada pela centralidade da experiência espiritual imediata. Já os tradicionalistas se aproximam de uma “religiosidade devocional-ritualista”, marcada por uma “fuga do mundo”, enquanto os grupos conservadores (como o Opus Dei, os Legionários de Cristo, os Focolares, entre outros) tendem a praticar um tipo de “ascetismo intramundano”, também identificado por Weber como forma típica da racionalização religiosa moderna.

Todas essas tendências são, em grande medida, posteriores ao Concílio Vaticano II. Ainda que a TFP (Tradição, Família e Propriedade) e a Diocese de Campos, matrizes do tradicionalismo brasileiro, possuam raízes anteriores, ambas surgem, em sua forma organizada, nos anos 1960 como reação explícita ao Concílio. Já a RCC, fundada em 1967, e a Teologia da Libertação, que toma forma a partir de 1971, são frutos distintos do aggiornamento conciliar promovido por Vaticano II.

Curiosamente, os novos grupos tradicionalistas, apesar de sua retórica anticonciliar, são profundamente modernos em sua forma de atuação. Ao reivindicarem o direito de submeter as decisões do magistério ao juízo crítico do sujeito, eles reproduzem a lógica moderna da autonomia subjetiva – o que os aproxima, paradoxalmente, da própria matriz secular que dizem combater.

IHU – Por que as novas gerações não se identificam tanto com a Teologia da Libertação? 

Carlos Eduardo Sell – A crise da Teologia da Libertação foi, até recentemente, explicada quase exclusivamente como resultado da intervenção do Vaticano nos anos 80, especialmente sob os pontificados de João Paulo II e Josef Ratzinger. Trata-se, no entanto, de uma interpretação que isola e amplifica em excesso um único elemento, por isso ela necessita ser ampliada e complexificada à luz de outros fatores estruturais e contextuais.

O catolicismo da libertação floresceu num contexto em que a Igreja Católica assumiu, em grande medida, o papel de mediação pública da sociedade civil durante o regime militar. E isso no momento pós-conciliar, quando a identidade da Igreja Católica estava em redefinição. 

Com a redemocratização e a reorganização autônoma da própria sociedade civil, a atuação político-social direta da Igreja perdeu parte de sua razão de ser. Ao mesmo tempo, o crescimento exponencial do campo evangélico-pentecostal impôs à Igreja a necessidade de priorizar demandas estritamente religiosas no contexto de um mercado religioso competitivo, ameaçando a própria reprodução institucional do catolicismo. Esse cenário favoreceu o protagonismo de correntes carismáticas e conservadoras, mais sintonizadas com a lógica desse novo ambiente.

A esse deslocamento externo somam-se fatores internos à própria Teologia da Libertação. A crise do marxismo, que fornecia parte de seu arcabouço teórico, impactou diretamente sua vitalidade como proposta teológica. A ruptura pública de Clodovis Boff – ao afirmar que o pobre não pode ocupar o centro da teologia – sinalizou uma inflexão metodológica significativa. Soma-se a isso o envelhecimento da geração fundadora (como Leonardo Boff e Frei Betto, hoje octogenários), sem que tenha havido uma renovação intelectual equivalente à altura.

Novo fôlego 

A eleição do Papa Francisco ofereceu um novo fôlego à Teologia da Libertação, mas ao custo de sua institucionalização (burocratização). A incorporação de sua linguagem ao magistério oficial, enquanto expressão da “tradição latino-americana”, implica, inevitavelmente, sua transformação em discurso do status quo. Assim, os grupos ligados ao catolicismo da libertação, antes marcados por uma lógica contestatória, passaram a adotar estratégias mais conservadoras voltadas à preservação de seu lugar nas disputas internas por poder e legitimidade.

Isso não implica negar a relevância atual da Teologia da Libertação, que ainda constitui uma das forças mais expressivas no catolicismo brasileiro. No entanto, é evidente que ela se configura hoje muito mais como uma subcultura específica dentro do campo católico do que como sua expressão hegemônica. 

Por fim, vale observar que a nova geração de vocações sacerdotais provém majoritariamente de setores carismáticos e conservadores, e não das ordens religiosas tradicionalmente associadas à Teologia da Libertação – estas, por sua vez, enfrentam um visível declínio numérico. Atribuir unicamente ao pontificado de João Paulo II a responsabilidade por esse processo ignora transformações mais profundas na religiosidade contemporânea. Famílias, paróquias, seminários e redes virtuais tornaram-se espaços de socialização religiosa nos quais as gramáticas espirituais carismáticas e conservadoras demonstraram maior capacidade de ressonância do que a racionalidade política do catolicismo libertador.

IHU – O que explica a adesão de tantos fiéis à RCC e o fato de mais de 1 milhão de pessoas rezarem o terço com frei Gilson às 4h da manhã? O que isso indica?

Carlos Eduardo Sell – O catolicismo carismático representa hoje uma força ascendente no campo católico de poder. Mais do que caracterizá-lo como um catolicismo de reafiliação ou reavivamento (categorias de tipo funcional), ou defini-lo apenas como uma versão católica do pentecostalismo (interpretação por analogia que o reduz a uma imitação), prefiro compreendê-lo, à luz de Weber, como uma forma de “religiosidade congregacional de caráter pneumático-emocional”. É esse conteúdo positivo e distintivo que lhe confere identidade.

Transição 

O catolicismo carismático passou por uma transição: de um modelo inicialmente mais descentralizado e comunitário – centrado nos grupos de oração –, ele migrou rapidamente para uma estrutura nacional consolidada a partir de 1999. Paralelamente, investiu fortemente em meios de comunicação de massa (como a Canção Nova, Rede Vida, padres cantores etc.) e na constituição de Comunidades de Vida. Por isso, sua lógica de expansão pode ser explicada por um duplo movimento: a formação de vanguardas religiosas e o ativismo cibermidiático de massas.

Fenômeno frei Gilson

Apesar da recente crise institucional vivida pela Canção Nova, que evidencia os limites de seu processo de burocratização, o fenômeno frei Gilson revela que o catolicismo carismático é capaz de iniciar novos ciclos de expansão. Sua principal característica atual é a conjugação entre mídias verticais tradicionais (TV e rádio) e uma dinâmica emergente, descentralizada e espontânea nas redes sociais digitais. A ascensão de novas ordens religiosas que articulam elementos tradicionais e midiáticos – como o Instituto Hesed, frei Gilson, e figuras como a madre Kelly Patrícia, Maria Raquel e a madre Jane Madeleine – evidencia também a crescente “clericalização” do movimento, antes mais fortemente impulsionado por leigos. No entanto, o protagonismo feminino não está ausente. 

A força do catolicismo carismático reside em sua plasticidade e na capacidade de se moldar às formas contemporâneas de religiosidade subjetiva e emocional, típicas de uma sociedade secularizada. Sua ênfase em experiências de cura e na teologia da batalha espiritual dialoga com o imaginário mágico-religioso profundamente enraizado na cultura brasileira. Isso explica a capilaridade do movimento, que, mesmo com apoio relativamente discreto da hierarquia eclesiástica, conseguiu disseminar sua racionalidade estético-afetiva entre os católicos mais atuantes nas comunidades paroquiais. Hoje, dificilmente se participa de uma missa sem manifestações como palmas, mãos erguidas e expressões de louvor.

Religiosidade fluída  

Contudo, a fluidez dessa religiosidade emocional não garante fidelização institucional duradoura (da qual o “terço”, um símbolo exclusivamente católico, é o símbolo). As experiências intensas mediadas pelo ambiente virtual tendem a se diluir. O Censo de 2022 confirma essa limitação: o número de católicos continua a declinar em ritmo um pouco inferior, mas semelhante ao das décadas anteriores. Além disso, o caráter institucional paralelista do movimento, somado ao frágil investimento na formação de elites teológicas e na elaboração doutrinal densa, compromete sua capacidade de alcançar hegemonia nos espaços decisórios da Igreja. 

IHU – O que é e o que explica a polarização afetiva que tem se observado no interior da Igreja brasileira, como o senhor a classificou recentemente? Esta polarização tem relação com a polarização política observada no país?

Carlos Eduardo Sell – No interior da Igreja Católica no Brasil, a polarização se intensificou com a reconfiguração de um campo tradicionalista já existente – TFP, de Dom Castro Mayer, entre outros –, mas que, até recentemente, exercia um impacto marginal. Parte desse setor foi, de certo modo, readmitida nas franjas da institucionalidade eclesial, como evidenciam os Arautos do Evangelho (originários da TFP) e a Associação São João Maria Vianney (composta por sacerdotes autorizados a celebrar a missa tridentina). Outros foram se configurando de forma independente, como o Centro Dom Bosco. Em paralelo, as restrições impostas pelo Papa Francisco estimularam o crescimento de grupos mais sectários, entre eles dissidências do lefebvrismo e adeptos de teses sedevacantistas ou conclavistas. 

Tradicionalistas versus conservadores 

O tradicionalismo católico, portanto, opera hoje em uma dinâmica ambivalente: ao mesmo tempo que conquista inserções liminares na oficialidade eclesial, também se fragmenta em grupos dissidentes de caráter mais radical. Além disso, é importante não nivelar as diferenças entre tradicionalistas stricto sensu e conservadores em geral (como pe. Paulo Ricardo, Bernardo Küster, Opus Dei, Legionários de Cristo...) que, a despeito de sensibilidades semelhantes, não são exatamente ramos idênticos. 

Do ponto de vista teológico e sociológico, o tradicionalismo representa uma forma modificada de donatismo eclesiológico (“igreja dos puros”) – combatida pela teoria do corpus permixtum de Optato de Milevo e Santo Agostinho. Na visão tradicionalista atual, haveria uma “verdadeira Igreja” composta pelos “verdadeiros católicos”, um núcleo fiel que teria preservado “a missa de sempre” e a autêntica tradição eclesial, abandonada pelo Concílio Vaticano II. Esse núcleo operaria tanto dentro (no caso dos grupos ainda integrados) quanto fora (no caso dos grupos cismáticos) da Igreja institucional, considerada corrompida, com o objetivo de restaurar a identidade genuína do catolicismo.

Ancorado no integrismo teológico antimodernista, na rejeição sistemática ao Concílio Vaticano II e em uma mentalidade social intransigente – conforme analisada por Émile Poulat (não confundir “integrismo” com “intransigência”, que são conceitos específicos) –, o tradicionalismo constitui uma forma reacionária de catolicismo, voltada à restauração de uma ordem idealizada do passado. 

Confronto entre tradicionalistas e católicos progressistas

A inflexão política recente no Brasil – marcada pela revalorização pública de ideologias conservadoras ou mesmo reacionárias (distintas entre si) –, somada à amplificação comunicacional promovida pelas redes sociais, potencializou significativamente a atuação desse setor do catolicismo.

Por ocuparem uma posição subordinada no campo do poder eclesial, os grupos tradicionalistas adotam estratégias de subversão simbólica e operam como forças de contrapoder. Seus principais alvos retóricos incluem o Vaticano II, a missa em seu formato atual, a CNBB, a Teologia da Libertação, a Campanha da Fraternidade e o próprio Papa. Em contraste, o catolicismo carismático tende a operar sob um registro oficialista – com forte adesão à figura do Papa, à devoção mariana e à centralidade eucarística. Com isso, o eixo das disputas no catolicismo brasileiro deslocou-se para o confronto direto entre os tradicionalistas e os católicos identificados com pautas progressistas. É neste antagonismo que se estrutura, hoje, o caráter agonístico do campo católico.

Afinidades entre carismáticos e tradicionalistas

Embora carismáticos e tradicionalistas compartilhem determinadas afinidades, sobretudo no campo moral e na rejeição ao liberalismo teológico, parece precipitado falar de uma fusão estável entre esses polos (o que alguns têm chamado de tradismáticos). Trata-se, afinal, de formas religiosas estruturalmente distintas: enquanto os tradicionalistas operam por crítica e resistência institucional, os carismáticos mantêm uma relação de lealdade com a autoridade eclesial.

Ainda assim, há um ponto de convergência significativo: ambos se alinham à moral tradicional da Igreja. Essa convergência os distingue da Teologia da Libertação, que, mais do que um catolicismo “social”, passou a representar adicionalmente uma forma de catolicismo “liberal” alinhada a pautas identitárias contemporâneas. Em outras palavras, a chamada guerra cultural em torno dos valores morais legítimos penetrou profundamente o interior da Igreja Católica, intensificando as tensões nos meios eclesiais. 

Quando grupos sociais passam a se autorreferir de forma sistematicamente positiva e a se referirem aos demais de modo negativo e deslegitimador, configuram-se as condições para o que os cientistas políticos denominam polarização afetiva. Tal cenário, no meu entender, reforça ainda mais a força da lógica institucional católica, pois, como argumento, é sempre na sua forma jurídico-política que o complexo de oposições do catolicismo encontra seu ponto de unidade. 

IHU – A partir da sua pesquisa sobre o clero de Santa Catarina, qual diria que é e o que explica o novo perfil dos padres? A partir desse perfil, que modelos de Igreja e teologia estão sendo desenhados para a próxima década? 

Carlos Eduardo Sell – As duas últimas partes do livro analisam, a partir do caso de Santa Catarina, os principais atores do aparelho eclesiástico católico: padres e bispos. Afinal, instituições não são forças autônomas; elas estão profundamente condicionadas pelas escolhas, formações e trajetórias de seus dirigentes. Por isso, esta seção do livro é particularmente fundamental.

No que diz respeito ao clero presbiteral, procurei argumentar que os estudos voltados à compreensão das mudanças no perfil dos padres devem prestar mais atenção às contribuições da sociologia das gerações e à teoria da socialização. É muito simplista achar que tudo se deve a uma ação orquestrada do Vaticano. 

Já a elite clerical – o episcopado – é selecionada por mecanismos em grande parte opacos, embora operem com padrões identificáveis: experiência pastoral, formação teológica sólida, internacionalização e vínculos com centros de decisão eclesial. Os estudos indicam que a Igreja Católica é uma das instituições mais permeáveis à ascensão social de membros oriundos das camadas populares para posições de autoridade. Ainda assim, o perfil dos bispos está fortemente condicionado pelos ciclos eclesiais e reflete, de modo relativamente direto, as orientações da Igreja universal. 

IHU – Quais são suas impressões do primeiro mês do pontificado de Leão XIV?

Carlos Eduardo Sell – Ansiosa e frenética por interpretação, a recepção do novo pontificado tem sido acompanhada por tentativas tendenciosas e seletivas de pautar seu significado. Cada grupo de poder instalado na Igreja lê o papa à sua maneira, enfatizando os matizes que lhe são mais convenientes. 

Em parte, é o próprio papa quem favorece essa diversidade interpretativa, pois seus sinais ambivalentes não parecem casuais. Ao contrário, há indícios de uma estratégia deliberada de alimentar simbolicamente diferentes setores da Igreja com aquilo que lhes é mais atrativo. A “unidade” desejada por este pontificado, portanto, não se constrói pela homogeneidade, mas por uma pluralidade cuidadosamente orquestrada que recompõe a sinfonia católica (o “complexo de oposições” de Carl Schmitt) em termos simbólicos.  

Nesse contexto, a pergunta sobre a continuidade entre Leão XIV e Francisco parece mais um debate ideológico do que uma questão analiticamente fecunda. Tal formulação tende a obscurecer o que realmente importa: identificar o que é próprio e específico deste novo pontificado: a questão é quem “é” Leão XIV, não quem ele segue ou deixa de seguir. 

Programa de Leão XIV 

A meu ver, o programa espiritual, eclesiológico e social do novo papa já se encontra relativamente bem delineado, ainda que esteja à espera de ser desdobrado em termos práticos. Leão XIV expressa com clareza seu compromisso com a herança do Concílio Vaticano II, na qual Francisco é inserido como interpretação e atualização. Mas há, entre ambos os elementos, uma gradação e uma continuidade perceptível – o que não é irrelevante para um canonista como Leão XIV.

O cristocentrismo, pilar dessa nova espiritualidade, redefine as bases da presença eclesial no mundo secularizado. Essa inflexão também se expressou na homilia inaugural na Capela Sistina, onde Leão XIV apresentou uma eclesiologia centrada na categoria do Corpo de Cristo, enfatizando a missão da Igreja como “farol e luz do mundo”.

Seu programa eclesiológico se articula em seis pontos: 1) regresso ao primado de Cristo; 2) conversão missionária de toda a comunidade cristã; 3) colegialidade e sinodalidade como formas de governo eclesial; 4) valorização do sensus fidei dos fiéis, especialmente na piedade popular; 5) cuidado com os marginalizados e excluídos; 6) diálogo confiante com o mundo contemporâneo. 

No plano social ele está articulado em três eixos: paz, justiça e verdade – fundamentos que estruturam a presença da Igreja no mundo e ressoam simbolicamente com a escolha do nome pontifício (Leão XIII). A paz e a justiça, nesse contexto, não são apenas compromissos éticos, mas pilares da ordem sociopolítica conforme formulados por Agostinho em A Cidade de Deus, especialmente no célebre livro XIX desse texto. 

Agostinismo político

Não tenho dúvida de que é nessa forja teológica que se moldará o pontificado de Leão XIV, reenquadrando em nova forma doutrinal o legado dos papas pós-Vaticano II, que aliás ele cita muito em seus discursos. O que permanece em aberto é como e qual Agostinho será mobilizado – pois a força e a polivalência de sua teologia permitem múltiplas leituras. Se o novo pontificado assumirá um viés mais “conservador” ou “progressista” – categorias que possuem sérios limites analíticos – é, a meu ver, uma questão secundária.

O fundamental, em um mundo secularizado e desencantado como o nosso, é que apenas uma Igreja centrada em Cristo pode conservar seu sentido. Pois, se o sagrado não possui em seu núcleo uma dimensão numinosa que transcenda este mundo (Rudolf Otto), ele perde completamente sua razão de ser. A Igreja caminha junto à terrena civitas e é solidária com ela (advindo daí seu compromisso social); mas sabe, em seu âmago, que seu destino último é a Civitas Dei, que a ultrapassa. É apenas neste sentido que a Igreja não é autorreferenciada, como desejava o Papa Francisco. Sua referência, mais do que um reino concebido em termos político-sociais (o que representa uma forma de “agostinismo político”, ou modernamente, de “intransigentismo”), é a cidade celeste. Nessa terra, a Igreja é sempre peregrina. 

Quem ainda não entendeu isso vai se decepcionar com Leão XIV. 

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