Robert Prevost insiste em seus discursos e aparições públicas na defesa intransigente da paz, em certo modo como continuidade à postura de Francisco, mas também como sintoma da brutalidade e violência de nossos tempos
Se em seus dois primeiros pronunciamentos públicos, o papa Leão XIV fez um chamado à paz e à missão da igreja para ser um "farol que ilumina o mundo nas noites sombrias", seus clamores não foram diferentes na primeira vez em que celebrou a oração Regina Caeli, que substitui o Angelus durante o período de Páscoa. No domingo, 11 de maio, o novo pontífice conclamou o mundo à “guerra nunca mais” e fez um apelo à paz duradoura na Ucrânia e em Gaza.
Repetindo por dez vezes a palavra paz, assim como fez em seu primeiro discurso, o bispo de Roma lembrou o final da Segunda Guerra e declarou: “Irmãos e irmãs, a grande tragédia da Segunda Guerra Mundial terminava no dia 8 de maio, depois de causar 2 milhões de vítimas. E, depois desse cenário dramático de uma terceira guerra mundial em pedaços, como tantas vezes afirmou o papa Francisco, eu me dirijo também aos grandes do mundo, repetindo o apelo sempre atual: nunca mais a guerra”.
Em seguida, falou da dramática situação na Ucrânia e, ao lembrar do povo palestino, Leão XIV falou que, cinco horas antes, um ataque israelense havia matado dez pessoas, incluindo quatro menores na cidade de Khan Yunis. "Estou profundamente triste com o que acontece na Faixa de Gaza", afirmou. "Que haja cessar-fogo imediato, que seja oferecida ajuda humanitária à sofrida população civil e que sejam libertados todos os reféns", disse, em referência às pessoas sequestradas pelo Hamas em 07 de outubro de 2023.
Dando continuidade às entrevistas que realizamos no calor do anúncio do novo papa, na quinta e sexta-feira passada, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU publica nessa entrevista as opiniões da professora Brenda Carranza e dos professores Massimo Faggioli e Luís Corrêa Lima, sobre o perfil e as primeiras impressões de Robert Prevost. Leia as primeiras análises aqui.
Para Brenda Carranza, professora de antropologia da religião, um dos desafios postos ao pontificado de Leão XIV é a conciliação da igreja. Para a teóloga, “a ligação [do Papa] com uma ordem religiosa agostiniana, que tem como sinal a questão da intelectualidade”, pode ser um fator positivo para a realização desse trabalho. O professor de história da Villanova University, na Filadélfia, Massimo Faggioli observou que “a ênfase agostiniana em uma interpretação pessimista do mundo foi uma característica marcante da primeira homilia. Isso está ligado a uma compreensão tipicamente norte-americana da natureza violenta dos sistemas de poder: isso pode soar como ‘teologia conservadora’ para ouvidos europeus e/ou progressistas, mas é mais complexo do que isso”, pontuou.
Já o padre jesuíta e professor da PUC-Rio, Luís Corrêa Lima, destacou as adversidades que Leão XIV deverá enfrentar à frente da Igreja. “Manter o legado de proximidade em relação às pessoas, ser firme em favor dos pobres, dos vulneráveis e do meio ambiente; manter a unidade da Igreja e avançar nas reformas iniciadas”, ressaltou.
Brenda Carranza | Foto: Frame do vídeo/Blog do Noblat
Brenda Carranza é professora de antropologia da religião da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, doutora em Ciências Sociais, pós-doutora em sócio-antropologia da religião e formada em Teologia - Santo Anselmo/Roma. Atua no Programa de Doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP.
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Massimo Faggioli (Foto: Reprodução | Youtube)
Massimo Faggioli é doutor em História da Religião e professor de teologia e estudos religiosos da Universidade de Villanova, na Filadélfia, Estados Unidos. Também é editor colaborador da revista Commonweal. Destacamos os seguintes livros, de sua autoria: Vaticano II: A luta pelo sentido (Paulinas, 2013); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium (Liturgical Press, 2012); e, em espanhol, Historia y evolución de los movimientos católicos. De León XIII a Benedicto XVI (Madrid: PPC Editorial, 2011).
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Luís Corrêa Lima | Foto: Frame do vídeo/Blog do Noblat
Luís Corrêa Lima, SJ, é graduado em administração pela FGV-SP, em filosofia e em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte. Fez mestrado em história na PUC-Rio e doutorado em história na Universidade de Brasília (UnB). Leciona no Departamento de Teologia da PUC-Rio e é membro do seu programa de pós-graduação. É autor de Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos (Vozes, 2021).
IHU – O que se sabe da biografia do novo Papa e o que se pode intuir do próximo pontificado a partir da saudação inicial do Papa?
Brenda Carranza – Nós sabemos que o papa Leão XIV é um homem que tem transitado pela América Latina, o Sul, o fato dele ter mencionado a diocese de Chiclayo e ter falado em espanhol é um excelente sinal de que ele estará muito sensível a relações entre o Norte e o Sul. E ao Norte é uma sinalização para o seu país de origem, Estados Unidos, com sua política migratória de expulsão e de exterminação dos migrantes dentro dos Estados Unidos.
É bom lembrarmos que os Estados Unidos sempre foram um país acolhedor da migração, pioneiro em política de integração e em diversidade étnica. Nesse momento, uma política que tende a ter discursos de ódio, de expulsão, que levanta muros e não constrói pontes, o fato de ter um novo papa norte-americano pode ser um bom sinal, vai depender das ênfases que queira dar a esse assunto, considerando sensível nas relações bilaterais Vaticano/Estados Unidos. Mas isso é parte da obrigação de chefe de Estado que assume como papa.
O segundo ponto interessante na biografia do cardeal Prevost, é ser parecido com Francisco na simplicidade, ser pastoral, ter um rosto afável, além de parecer uma pessoa muito comunicativa e a sua proximidade com Santo Agostinho. Sabemos que Santo Agostinho é um padre da igreja que foi extremamente intelectual e que vai trabalhar as questões da doutrina da igreja. Então, temos, de certa maneira, um papa de longo papado, de estabilidade, pois o mínimo que se pode pensar é 20 anos se estiver bem de saúde. Portanto, esse deve ser um papado não de transição, mas de estabilidade. Nesse sentido, a sua ligação com uma ordem religiosa agostiniana, que tem como sinal a questão da intelectualidade, pode ser uma maneira de trabalhar as questões internas na igreja que tanto se falaram na congregação [pré-Conclave], que era a conciliação. O tema da conciliação foi colocado várias vezes nas doze reuniões que presidiram o Conclave.
O terceiro aspecto interessante, que podemos colocar na biografia dele, é o fato de ser próximo a Francisco, Santo Agostinho e um papa que adotou o nome de Leão XIV. Ele é a sucessão de Leão XIII, que historicamente sabemos que fez uma grande discussão sobre a modernidade e modernismo na história da igreja. O final o século XIX é turbulento com um socialismo, tem a Rerum Novarum, que será uma encíclica dedicada ao trabalho, aos trabalhadores. Além disso, tem a proposta de que os leigos na igreja comecem a se articular. O que acontece na primeira metade do século XX, que vão ser a agremiações em todo o mundo e que desembocaram na Juventude Agrária Católica – JAC, Juventude Católica – JUC, Juventude Estudantil Católica – JEC e Juventude Operária Católica – JOC, que seriam todos os movimentos de ação interna popular, as pastorais universitárias, da juventude e operária. Começamos a ter esses movimentos com Leão XIII.
Outro movimento interessante de Leão XIII foi toda sua articulação diplomática. A tarefa de Leão XIV não vai ser fácil em um mundo polarizado e vai precisar de um belo jogo de cintura diplomático. Esses são elementos que considero interessante do papa Leão XIV.
E vale a pena retornarmos a mais um aspecto: ele foi formador. Isso é fundamental para qualquer ordem religiosa, porque vai cuidar os quadros de reprodução interna das ordens religiosas, tarefa que continuou realizando dentro do Vaticano no Dicastério dedicado aos bispos. Portanto, nos últimos anos, ele conhecia todos os bispos que estavam sujeitos a ele, o que é, de certa maneira, favorecedor do ponto de vista estratégico no Conclave.
Massimo Faggioli – Leão XIV é um papa pan-americano, o primeiro papa nascido após a Segunda Guerra Mundial, missionário e agostiniano – significativamente diferente dos jesuítas. Suas primeiras saudações foram muito pastorais e com forte ênfase na paz, além de uma interessante menção à sinodalidade na Igreja. É interessante que em suas primeiras saudações ele tenha usado latim, italiano e espanhol, mas não inglês.
Luís Corrêa Lima – Ele é um estadunidense naturalizado peruano, que penetrou bem na realidade latino-americana. Ele foi superior geral da ordem agostiniana, o que indica uma grande capacidade de liderança. Além disso foi colocado pelo papa Francisco no Dicastério para os bispos, o que é sinal de muita confiança.
IHU – Quais são os três pontos que mais lhe chamaram atenção no primeiro pronunciamento do Papa eleito?
Brenda Carranza – O primeiro ponto que me chamou a atenção em sua primeira fala pública foi o tema “missão”. Missão significa um compromisso com o catolicismo por todo o mundo. Portanto, um espírito missionário que seria a busca dessa unidade da igreja. Seu lema papal é de unidade da igreja, portanto, será um papado de conciliação. Voltamos ao que já foi colocado.
O segundo aspecto que chamou a atenção no pronunciamento foi a questão da mensagem religiosa, que foi pastoral. Então, é uma procura de falar uma linguagem do mundo. É claro que ele fez um límpido aceno à sinodalidade, o diálogo entre pares. Um diálogo que pode ir desarmando o patriarcalismo, os machismos internos na igreja, os modos de conduzir a igreja, que são extremamente clericais e hierárquicos.
Massimo Faggioli – A ênfase agostiniana em uma interpretação pessimista do mundo foi uma característica marcante da primeira homilia. Isso está ligado a uma compreensão tipicamente norte-americana da natureza violenta dos sistemas de poder: isso pode soar como "teologia conservadora" para ouvidos europeus e/ou progressistas, mas é mais complexo do que isso. A vida nos EUA tem uma perspectiva agostiniana das coisas como um de seus efeitos colaterais.
Luís Corrêa Lima – Ele se referiu com apreço ao pontificado de Francisco. Também falou de construir pontes e em favor de uma Igreja sinodal. Tudo indica que é uma continuação de Francisco com um estilo que pode ser diferente.
IHU – Quais são os principais desafios para o papado pós-Francisco?
Brenda Carranza – Eu não tenho escutado nas análises de especialistas e na mídia, que um dos desafios é fazer a ligação de que ele é um mediador para essa conciliação da igreja com a questão da fé e da ciência. Em tempo de negacionismo intelectual, negacionismo climático e negacionismo das políticas de migração e refugiados, Estados Unidos, crescimento de muros e a falta de pontes, esse aceno de um homem que colocou ponto final à discussão “sem ciência na igreja”, pode ser explorado como um caminho a trabalhar as questões de negacionismo dentro da Igreja.
Massimo Faggioli – Deixar claro a todos aqueles ao redor do mundo que têm alguma opinião ou suposições negativas sobre os EUA que ele não é "o papa americano", mas um papa das Américas. Responder às perguntas deixadas em aberto por Francisco sobre questões controversas (especialmente sobre o papel das mulheres na Igreja), de forma a levar em conta a enorme diversidade entre as diferentes igrejas locais. Separar o catolicismo das ideologias atuais que tentam manipular a religião em sistemas autoritários em diferentes países.
Luís Corrêa Lima – Manter o legado de proximidade em relação às pessoas, ser firme em favor dos pobres, dos vulneráveis e do meio ambiente; manter a unidade da Igreja e avançar nas reformas iniciadas.