Em 2013, Mario Bergoglio é eleito papa. Dez anos depois, analistas ouvidos pelo IHU destacam que o maior avanço é ver a Igreja em meio ao povo, mas o desafio reside justamente em vencer as resistências internas a esse estilo de Francisco
Quando do alto da varanda do Palácio Apostólico, o cardeal Jean-Louis Pierre Tauran, decano do Colégio Cardinalício, em 13-03-2013, anunciou que Jorge Mario Bergoglio era o novo papa, muitos indagaram: um argentino?! E não foram só os brasileiros, que têm uma disputa histórica com os “hermanos porteños”. Aliás, o próprio Bergoglio disse, em suas primeiras palavras, que foram “buscar um papa lá do fim do mundo”. Tal surpresa se deu pelo fato de, depois de séculos, a Igreja ter um pontífice não europeu. Mas essa não foi a única surpresa daquela noite, pois o argentino escolheu ser chamado de Francisco, em referência a São Francisco de Assis.
Depois daquele 13 de março, as surpresas não pararam. Todos se surpreendiam com a simplicidade e austeridade de Francisco. Tal postura tem sido um norte para sua gestão que não apenas é uma Igreja mais simples e dessacralizada como também está mais perto do povo. Para o mestre em Ciência Política, Wagner Fernandes de Azevedo, o Papa Francisco “transformou o papado com a história da Igreja libertadora, principalmente na sua vertente argentina, da Teologia do Povo”. “É uma inversão do eixo de poder, é um papado destronado, descentralizado e, portanto, desocidentalizado”, completa, em entrevista via mensagens de WhatsApp concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Wagner destaca que o pontífice foi capaz de auscultar claramente que vivemos uma transição epocal. “Francisco entendeu que o mundo ocidental, outrora sustentado pelo cristianismo, está em crise. E entendeu que deve propor um novo papel à Igreja nesse novo mundo, sem perder a centralidade do Evangelho”, analisa.
Gustavo Predebon, padre na Diocese de Caxias do Sul, vai além. Para ele, o papa revela ter “a percepção do quanto a hierarquia como um todo não dá conta da realidade do mundo de hoje, e o quanto a Igreja precisa caminhar para realmente apresentar o Evangelho para pessoas do nosso tempo, e não de 400 anos atrás. (…) Por outro lado, creio que nós, ministros e povo fiel, às vezes não conseguimos botar em prática tudo o que o papa traz como novidade. Não estamos aproveitando o momento”, adverte.
Para o antropólogo Antonio Madalena Genz, a transformação que vivemos é tão brutal que lá em 13-03-2013 jamais supúnhamos o tempo que viveríamos hoje. “Há 10 anos seria tomado como insensato alguém que dissesse (…) que daqui a 10 anos existiriam grupos defendendo a ideia de que a terra é plana”, diz. Por isso, considera que “o maior avanço do pontificado de Francisco é ele próprio”. E acrescenta: “o Papa Francisco se dirige ao mundo quando combate um dos traços piores da contemporaneidade, que é essa cultura da indiferença”.
O diplomata Rubens Ricupero observa que “o comportamento do papa é quase como se fosse um pároco, como se sentiu durante a pandemia quando rezava diariamente a missa em Santa Marta, com simplicidade”. Mas nem por isso Francisco se senta na Cátedra de Pedro e se move a partir dela com cheiro de sacristia. Sua liderança e lucidez acerca das crises globais o colocam na ponta de movimentos geopolíticos, um lugar de poucos. E isso, na sua opinião, se mede de diversas formas, inclusive pelos documentos pontifícios: “Sua encíclica Laudato si’ é a mais alta expressão teológica e filosófica da ecologia radical. Não ficam atrás na profundidade e beleza a encíclica Fratelli tutti e a exortação apostólica Evangelii gaudium”, avalia.
O teólogo Luiz Carlos Susin também destaca que todas essas mudanças, os ares novos que Francisco traz para Igreja, têm estreitíssima relação com o Concílio Vaticano II. E é justamente isso que provoca reação, pois há muitos que ainda não conseguem assimilar as luzes acesas pelo concílio. “É sua postura de atualização do Concílio que iria esbarrar na resistência de acomodados, de tradicionalistas, o que inevitavelmente levanta tensões e antipatia. A burocracia da Igreja, o carreirismo ou clericalismo, tem sido um limite imposto como um verdadeiro peso para um papa que deseja leveza”, avalia. Mas nem por isso Francisco titubeia. “É um legítimo filho da Igreja na América Latina e, antes ainda, um portenho filho de migrantes, com um humor próprio de Buenos Aires, mas que mantém a disciplina jesuítica e absorveu a leveza franciscana”, conclui.
“Penso que o maior avanço, em termos de reflexão sobre o catolicismo, sugerido pelo Papa Francisco, consiste em abrir uma profunda discussão sobre o caráter histórico do catolicismo”. É assim que avalia o historiador Eduardo Hoornaert. “O papa sugere considerar o catolicismo tal qual se pratica hoje, em sua qualidade de fenômeno histórico, ou seja, como movimento marcado pela fragilidade, imperfeição e provisoriedade que caracteriza tudo que é histórico”, detalha. Por isso, considera que “entender do atual papa pressupõe compreender que a história é uma ciência que se baseia na convicção que tudo que se constrói na história da humanidade pode eventualmente ser descontruído, reconstruído, adaptado ou reformulado. Eis um pressuposto básico, e penso que o Papa Francisco trabalha com ele”.
Por sua vez, o jesuíta Clóvis de Melo Cavalheiro comenta essa construção que, para ele e para o entrevistado a seguir, materializa-se no pensar a Igreja não apartada do mundo em que está inserida. “A principal transformação por que passou o pontificado foi a incorporação à sua estratégica de beneficiar não somente a Igreja, mas pensar no mundo como um todo, com as suas diferenças culturais, crenças e origens”. Trata-se de um princípio bem claro aos jesuítas que defendem a ideia de ver Deus em todas as coisas. Para Clóvis, é esse o “estilo do Papa Francisco, um homem de profunda espiritualidade inaciana e com grande capacidade de estabelecer as relações entre a ciência e a fé”.
Por fim, o sociólogo José de Souza Martins é categórico e direto: “os avanços de Francisco são um só. Uma síntese. O do reencontro da Igreja com a igreja, da instituição com a comunidade de fé. (…) Francisco tem se empenhado na missão profética de negar a alienação crescente da sociedade contemporânea, que se expressa no desencontro entre fé e vida, na transformação do homem em objeto e coisa e em sua anulação como ser social e sujeito de sua própria história. Seus cinco antecessores fizeram o mesmo”, pontua.
Wagner Fernandes de Azevedo (Foto: Arquivo pessoal)
Wagner Fernandes de Azevedo possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e mestrado em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Tendo realizado pesquisa em que analisou o papel da Teologia da Libertação na integração e cultural política na América Latina, segue atuando em temas como América Latina, religião e pós-colonialismo.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Wagner Fernandes de Azevedo – Proponho pensar os avanços e os limites sob a ótica da primeira exortação apostólica de Francisco, a Evangelii gaudium. Penso que neste documento está o Plano Pastoral do pontificado. A partir da EG, percebo três instâncias no exercício do pontificado: teológica, eclesiológica e política.
Vejo a teologia de Francisco sustentada pelo tripé: misericórdia, diálogo e piedade popular. Esse pontificado rompeu com uma linha doutrinal persecutória, acusatória, fechada ao diálogo com as demais instâncias da sociedade. Pelo contrário, ao assumir um coração humilde à Igreja, Francisco colocou o Evangelho no centro do discurso e como base para seu modelo de pontificado.
Exemplos disso são inúmeros, mas as relações com os povos indígenas, a abertura ao rito amazônico, a constante abertura ao diálogo com as tradições religiosas do Islã e do cristianismo ortodoxo... Francisco retirou o papado da sede gestatória e o colocou no chão, escutando e rezando com a fé popular e atuando entre aqueles que mais precisam.
Neste sentido, na exortação Gaudete et exsultate, Francisco reforça que a santidade se faz na vida cotidiana e em comunidade: “A comunidade, que guarda os pequenos detalhes do amor [107] e na qual os membros cuidam uns dos outros e formam um espaço aberto e evangelizador, é lugar da presença do Ressuscitado que a vai santificando segundo o projeto do Pai” (145).
Em outro ponto, ele conseguiu avançar com uma ecoteologia, na encíclica Laudato si’, porém ele sempre afirmou que pouca importância dava ao tema ecológico, até a Conferência de Aparecida (2007). A Laudato si’ e a ecologia integral são avanços enormes, mas não tão desenvolvidos pelo magistério.
Os grandes meios de comunicação noticiavam que os cardeais mais próximos a Ratzinger seriam os favoritos para o papado. No entanto, ao passar dos anos, outros jornais, mais vaticanistas, revelavam outro ponto central para o novo papa: a reforma da Cúria. Em suma, o grande desafio de Francisco foi este: e está sendo cumprido.
A nova constituição apostólica Praedicate evangelium foi aprovada e implementada mesmo depois de grandes turbulências, inclusive nos círculos mais próximos a Francisco, como no Conselho de Cardeais e na Secretaria de Estado. Francisco conseguiu dar passos concretos ao que anunciava na EG: reformar a Igreja para a saída missionária. A nova constituição coloca a Cúria a serviço do trabalho evangelizador, revertendo a operacionalidade de uma Roma glamourizada e sustentada pelas periferias.
Nisto, é essencial o papel que os sínodos estão tendo. O atual, inclusive, é a maior consulta democrática que uma instituição já tenha feito. E não uma democracia apenas de voto, mas de discussões, propostas, divergências, explícitas e abertas, com encaminhamentos que são visíveis e “auditáveis” por todos os participantes. Neste mesmo sentido, Francisco deu passos largos no combate aos abusos, com a publicação de novas diretrizes legais, mas trazendo ao centro e escutando as vítimas dos crimes, investigando e sancionando os criminosos, sejam cardeais, padres, religiosos e até mesmo “quase santos”.
Francisco entendeu que o mundo está em uma transição de hegemonia e em um Novo Regime Climático. As mudanças geopolíticas não são novidades para a Igreja, que sempre soube se reinventar. No entanto, o eixo ocidental, que tem em seu cerne o cristianismo, tem seu poder relativo sucumbindo perante ao Oriente. Destarte, os sinais de Francisco sempre foram de se aproximar, primeiro guiado pela misericórdia, aos que sofrem, migrantes, refugiados, países em guerra (visitas ao Iraque, à República Democrática do Congo, à República Centro-Africana...); segundo pela estratégia global, colocar a Igreja no centro onde é periferia.
Ainda como ator global, Francisco entende que as crises e os conflitos estão abaixo de uma grande crise maior: a climática. A Laudato si’ foi lançada seis meses antes da Conferência das Partes de Paris [COP15], com o intuito de mobilizar as ações da comunidade católica global e agir com protagonismo no tema. Excluindo a análise da aplicação nas comunidades e vida católica, é fato que Francisco colocou a Santa Sé como o principal organismo da ONU em mobilização pelo clima.
Francisco entendeu que o mundo ocidental, outrora sustentado pelo cristianismo, está em crise. E entendeu que deve propor um novo papel à Igreja nesse novo mundo, sem perder a centralidade do Evangelho.
Não obstante, se as respostas estão corretas ou se o modo de abordagem será suficiente para pôr em prática seu Plano Pastoral, levaremos alguns anos para avaliar. O que há hoje é uma resistência muito forte dentro da Igreja e nos centros do poder global, que paralelamente sucumbem nessa nova ordem. Um exemplo é a Conferência dos Bispos dos EUA e os atravancos com grupos tradicionalistas católicos.
Essa limitação também se vê na forma cuidadosa de não avançar com reformas que vêm do próprio processo sinodal, como abrir para a ordenação de mulheres ou de homens casados (viri probatii).
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Wagner Fernandes de Azevedo – Francisco tenta colocar a Igreja Católica como protagonista no cenário global. Na verdade, o poder da Igreja no sistema moderno de Estado sempre foi o brando, o cultural. Porém, a Modernidade colocou o cristianismo em processo de irrelevância.
A atuação de Francisco é alinhada aos princípios do Evangelho, com foco nos pobres, na luta por justiça social, climática e pela paz. Consegue mais respeito e, por conseguinte, em sociedades escanteadas pela ordem global, como foi o caso da visita recente ao Sudão do Sul. Em temas como economia, tecnologia e educação, a relevância das intervenções vaticanas é bem pequena, mas geralmente a posição da Santa Sé é utilizada como barganha política e justificativa para quem de fato faz o jogo global.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Wagner Fernandes de Azevedo – Como dito acima, Francisco fez o papado descer da gestatória. E o fez na era das grandes mídias. Hoje, o papado não é visto do alto: o papa se fez povo, mas a sociedade também trata o papado como povo. Pela semiótica, Francisco está colocando o poder da Igreja em um cenário horizontal, conectado às diferentes redes, sejam católicas ou não.
O processo sinodal é uma materialização disto, bem como quando Francisco, em cadeira de rodas, faz oração junto aos povos indígenas canadenses massacrados, ou acolhe diferentes crenças e ritos, literalmente até no seu jardim. A visão de um papado humilde e misericordioso, junto ao povo, está no cerne da sua trajetória na teologia latino-americana.
Pode-se dizer que Francisco transformou o papado com a história da Igreja libertadora, principalmente na sua vertente argentina, da Teologia do Povo. É uma inversão do eixo de poder, é um papado destronado, descentralizado e, portanto, desocidentalizado.
As reações estão acontecendo e assim continuarão. Mas a mudança está posta em marcha, Francisco não ficará no pontificado por muito mais tempo, mas assumiu o chamado de “vai e reconstrói a Igreja” e de “não se esqueça dos pobres”.
Particularmente, eu me identifico mais com este papado que o de outrora. Uma Igreja poliédrica em um mundo fragmentado parece ser convergente. Mas mesmo nesse ambiente de fragmentação, o individualismo extremo conseguiu se aglutinar com força nos diversos campos da sociedade. O desafio de Francisco é continuar tendo força de acessar e construir uma subjetividade da misericórdia contra o individualismo, o fascismo e todas as culturas de ódio – mesmo quando ele não estiver mais no papado.
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Gustavo Predebon (Foto: Arquivo pessoal)
Gustavo Predebon é padre na Diocese de Caxias do Sul. Natural de Bento Gonçalves, é assessor diocesano do Setor Juventude. Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul – UCS e Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Gustavo Predebon – Um dos grandes avanços do Papa Francisco foi trazer para o papado o estilo pastoral, muito próprio da experiência latino-americana. O papa não é nada formal quando não precisa, ele sabe lidar com as adversidades, e se sai bem nelas. Nesse sentido, vejo que ele valoriza uma experiência de pastoreio muito nossa. Hoje, talvez os europeus e norte-americanos sintam algum conflito com a forma de o papa exercer o seu ministério, mas ele consegue ser muito próximo de nós.
O segundo avanço muito importante foi a reforma da Cúria Romana. E Francisco tirou o centro da Cúria da Congregação para a Doutrina da Fé (Antigo Santo Ofício), para deixar no centro o Dicastério para a Evangelização dos Povos, além de permitir que leigos, homens e mulheres, assumam mais espaços neste órgão tão importante da Igreja. Para mim, foi um passo gigantesco, e penso que incentivará as paróquias e comunidades a delegarem cada vez mais as funções a pessoas competentes, independentemente de suas vocações dentro da Igreja.
Junto a isso, há pequenas modificações de estilo, mas que têm um grande impacto na vida cotidiana da Igreja. Francisco facilitou o processo de nulidade matrimonial, instigou os casais em segunda união para que fizessem um caminho de volta à igreja, escutou os jovens, escutou as famílias e agora, por último, está fazendo a Igreja refletir sobre a sinodalidade. Talvez, ele tenha a percepção do quanto a hierarquia como um todo não dá conta da realidade do mundo de hoje, e o quanto a Igreja precisa caminhar para realmente apresentar o Evangelho para pessoas do nosso tempo, e não de 400 anos atrás.
O terceiro avanço foi a coragem de lançar luz sobre questões econômicas, morais, formativas da Igreja e, de certa forma, abrir caminho para que nas dioceses se tenham processos econômicos mais transparentes, e que se resolvam as dificuldades em nível moral que tocam os ministros ordenados, por exemplo. O simples fato de ele não ter medo de punir um bispo ou um cardeal mostra que os ministros ordenados não estão impunes quando erram, e nem a Igreja deve ser uma mãe superprotetora.
Creio que há muitos que não comungam com as ideias dele. E por isso a rejeição maior ao papa é do círculo romano, de pessoas que em outros momentos se sentiram muito poderosas e influentes. Estas pessoas acabam barrando muitas das novidades que o papa tenta trazer.
Por outro lado, creio que nós, ministros e povo fiel, às vezes não conseguimos botar em prática tudo o que o papa traz como novidade. Não estamos aproveitando o momento. Ficamos felizes pelo papa ser simpático e conseguir dar as respostas certas na hora certa, mas não mudamos nosso jeito provinciano de viver.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Gustavo Predebon – O estilo pastoral de Francisco o ajuda a conduzir o papado de uma forma nova, diferente e, de certo modo, leve. Ele é autêntico. Por exemplo, não teve medo de chamar a atenção do patriarca da Igreja Ortodoxa Russa por conta do posicionamento a respeito da Guerra da Ucrânia.
E o fato de não carregar toda uma bagagem cultural europeia (bastante pesada) permite essas liberdades de movimentação em direção a outros patamares. De certa forma, o papa tem coragem.
Fala-se muito de que a Igreja estaria hoje passando para uma terceira grande transformação, que é deixar de ser uma Igreja extremamente identificada com raízes europeias, para ser uma igreja que tenha realmente um rosto universal. Seria semelhante ao salto dado do cristianismo, que era vinculado ao horizonte judaico dos primeiros séculos, para o anúncio aos gentios.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Gustavo Predebon – No início, vivíamos bastante com a expectativa de grandes mudanças na vida da Igreja. Agora entramos na normalidade, e isso é positivo. Talvez seja imprudente falar assim, mas não são esperadas tantas novidades como era no início do pontificado. Estamos acostumados com ele.
Hoje, penso que o papa, mais do que querer reformar sozinho a tudo, quer nos colocar a caminho. As caminhadas sinodais me pareceram querer isto, modificar a Igreja a partir de baixo, chamar atenção sobre a realidade que vivemos. Nem simplesmente fazer concessões à realidade, nem simplesmente reforçar discursos doutrinária e disciplinarmente vazios.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Gustavo Predebon – Muitas vezes, surge o debate sobre quem conseguiria suceder a ele no pontificado, no sentido de dar continuidade a esta caminhada que ele está nos fazendo fazer. É uma questão que fica.
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Antonio Madalena Genz (Foto: Arquivo pessoal)
Antonio Madalena Genz possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É mestre em Antropologia, também pela UFRGS, com pesquisa sobre o budismo no Brasil e doutor em Filosofia, interessado nas áreas de linguagem e consciência, relação corpo/mente, em especial na Filosofia Antiga e Medieval e na fenomenologia. É professor de Filosofia no Instituto Federal Sul-rio-grandense – IFSul.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Antonio Madalena Genz – Eu gostaria de responder a essa questão ressaltando que o maior avanço do pontificado de Francisco é ele próprio. Sua presença como papa, a ação que dele emana pela sua própria presença, uma presença carismática e carregada de dons, a partir do grande dom do amor, caridade. Nesse sentido também, podemos destacar o ineditismo surpreendente de termos um papa oriundo do sul global, desse mundo sub, tanto do ponto de vista da lógica do mundo quanto da lógica eclesiástica de Roma.
Para citar mais dois avanços, vou me ater a dois documentos, as duas belas encíclicas – Laudato si’ e Fratelli tutti – que englobam, acho, os temas prioritários, urgentes e intransponíveis do que poderia se denominar de uma agenda global atenta ao que se apresenta em estado de calamitosa emergência no mundo.
Acho que na comemoração da data, os dez anos de pontificado, um dos limites é o do próprio Francisco como ser humano, seus limites ligados à conjunção dessas duas variáveis, saúde e idade. Mas acho que o maior limite é a oposição que recebe no interior da própria Igreja Católica.
Lembro da bela palestra de Gaël Giraud, no IHU, onde ele ressaltava esse paroxismo de, em uma Europa envelhecida, Francisco ser o grande líder no cenário político abrangente e, em especial, de ser esse líder progressista tendo atrás uma instituição que, se deve preservar e cultivar uma tradição e, nesse sentido, ter uma dimensão conservadora, não precisa ou precisaria ser retrógrada.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Antonio Madalena Genz – Definiria a partir de uma expressão que ele utilizou para a Igreja, que ela deve ser como um hospital de campanha. E acho que, desde antes de usar a expressão, a ação dele como papa se caracteriza sobremaneira pelo exercício em especial desse dom de ser pastor e, assim, de uma coerência entre aquilo que ele diz e faz.
É dessa sua prática como pastor que, acho, advém a grande simpatia que o mundo de forma geral tem para com a sua figura, independente de aderência a credos particulares, ou até mesmo de pertencimento religioso. A Laudato si’ foi merecedora de elogios e referendada por várias organizações ecológicas que não tem qualquer vínculo com a Igreja Católica. Acho que esse é um fato novo, que merece ser pontuado.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Antonio Madalena Genz – Não tenho parâmetros para avaliar isso de um ponto de vista de alguém que acompanha a vida da Igreja com essa proximidade ou pertinência. Acho que posso falar mais de um ponto de vista geral. Acho que o Papa Francisco tem que lidar com um sem número de variáveis, entre as quais, por um lado, vivermos em uma sociedade pós-cristã e a combinação disso com uma crise da Igreja, na qual os escândalos de abusos sexuais por parte de religiosos é apenas um exemplo.
A própria ideia de analisar essa passagem de 10 anos, como se fosse um parâmetro estável, abstrato, que pudesse ser comparado a qualquer outro período de 10 anos, é algo discutível. Vivemos sob uma aceleração vertiginosa. De certa forma, esses 10 anos implicaram mudanças radicais no mundo. Há 10 anos seria tomado como insensato alguém que dissesse, por exemplo, que daqui a 10 anos existiriam grupos defendendo a ideia de que a terra é plana.
O Papa Francisco se dirige ao mundo quando combate um dos traços piores da contemporaneidade, que é essa cultura da indiferença. Nesse sentido, a ênfase e a recuperação por parte dele da noção de hospitalidade, do cuidado com o outro, da fé como compromisso prático e existencial com o próximo, é algo radical, vital e fundamental. É a afirmação da vida diante de uma cultura da violência.
Nesse sentido, aliás, gosto de aproximar Francisco de Krenak, como referência de dois homens sábios – coisa rara hoje – e o fato de que ambos nos dizem que vivemos em um mundo em guerra. É essa cultura da indiferença que nos afasta da percepção plena de que estamos em guerra! E essa fala em ambos não é fatalista, mas sim um quase derradeiro lembrar de que ainda poderíamos mudar, transformar o mundo.
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Rubens Ricupero na Unisinos (Foto: Rodrigo W. Blum | Unisinos)
Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Ocupa a Cátedra José Bonifácio da USP. Diplomata de carreira desde 1961, exerceu as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984-1985), assessor especial do presidente José Sarney (1985-1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e do Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco. Serviu de embaixador na Itália e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, órgão da ONU. Entre suas obras, destaca-se: A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017).
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Rubens Ricupero – Não tanto avanços, mas sim mudanças.
A) A primeira é a prioridade às pessoas em situação de periferia, na vida e na própria Igreja da periferia, minoritárias, em países longínquos, sem tradição cristã. Os pobres antes de tudo.
B) A segunda é a coerência da vida pessoal de volta à radicalidade do Evangelho: morar na casa Santa Marta, recusar palácios, luxo, vida de simplicidade, despojamento.
C) A terceira é o deslocamento da fixação em questões de moral sexual individual para a justiça social e o meio ambiente.
Limites:
A) Resistência conservadora que freia a evolução em questões-chave como o celibato dos padres, a posição sobre divorciados e afastados da Igreja, o papel da mulher na Igreja e na sociedade.
B) A falta de apoio de governos, da população e até dos fiéis na pregação em favor do acolhimento a refugiados, migrantes.
C) A pouca afinidade das igrejas na Europa com um papa visto como excessivamente latino-americano, terceiro-mundista, a franca desconfiança de largos setores conservadores e moralistas da Igreja dos Estados Unidos.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Rubens Ricupero – O estilo já se definiu na escolha do nome Francisco, que anunciava estilo de vida de pobreza, amor à natureza e ao meio ambiente, desejo de contar com as orações dos fiéis. Vive como prega: coerência absoluta. Estilo informal, que desconcerta europeus e os habituados com o formalismo do papado.
Ainda, impulsivo, inclinado a gestos dramáticos. Por exemplo, a primeira viagem para jogar coroa de flores no local de naufrágio e morte de refugiados, a ida a campos de refugiados para trazer alguns a Roma. A multiplicação de encontros com patriarcas ortodoxos, inclusive o de Moscou, com líderes religiosos do Islão sunita e xiita, de monges budistas.
A maneira de falar familiar, próxima às pessoas simples, lembrando São João XXIII: desejar bom almoço de domingo. Desmistificação da figura do papa: vai pessoalmente comprar óculos, gostaria de poder caminhar a pé.
Frente às grandes questões globais, Francisco se definiu desde cedo pela defesa do meio ambiente, a luta contra o aquecimento global, a denúncia da injustiça e do desequilíbrio do regime capitalista, a recusa de toda e qualquer guerra, a crítica ao egoísmo das potências ricas e ao armamentismo. Outros papas também tinham feito o mesmo.
Francisco, porém, atualizou os conceitos e a linguagem, renovando o estilo dos documentos pontifícios, dando-lhes uma qualidade pessoal de legibilidade, citando poetas como Vinícius, músicos populares. Sua encíclica Laudato si’ é, na minha opinião, a mais alta expressão teológica e filosófica da ecologia radical. Não ficam atrás na profundidade e beleza a encíclica Fratelli tutti e a exortação apostólica Evangelii gaudium.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Rubens Ricupero – Tudo o que ficou dito nas respostas acima representou uma profunda transformação, verdadeira revolução do pontificado, se comparado ao de João Paulo II ou Bento XVI. Sem repetir esses aspectos, acrescentaria o espírito pastoral, muito mais que doutrinário, de ação concreta para aliviar o sofrimento do próximo, em vez de ficar discutindo dogmas, interdições ou abandono das condenações de teólogos e dissidentes, o comportamento do papa quase como se fosse um pároco, como se sentiu durante a pandemia quando rezava diariamente a missa em Santa Marta, com simplicidade.
Devem-se destacar também a disposição de perdoar, de acolhimento, a grande repercussão que teve o Ano da Misericórdia, o conselho aos confessores para acolherem e perdoarem, não se fecharem em posições rígidas. A abordagem da moral não em abstrato, mas no exame das situações individuais, caso a caso.
Transformação ainda em curso, iniciada desde o começo do pontificado, tem sido a reforma da Cúria e do governo centralizado da Igreja no sentido de acentuar o espírito de sínodo, de assembleia, de fraternidade entre os bispos, de tentativa de superação do clericalismo, afirmação das mulheres e dos leigos. É difícil a esta altura prever os resultados a longo prazo.
Ao mesmo tempo, o pontificado de Francisco enfrentou, ou vem enfrentado, problemas pelos quais não é responsável e sobre os quais tem pouco ou nenhum controle. Um deles foi, obviamente, a pandemia e seus efeitos na vida e atividades da Igreja, até no nível das paróquias.
Outro, devastador, o recrudescimento dos escândalos de abusos sexuais, as investigações que se multiplicam nas mais diferentes igrejas. Embora a reação de Francisco tenha sido muito mais aberta, franca e corajosa que a de seus antecessores, é inegável que o impacto das revelações anula ou perturba muito do que ele desejaria realizar. A dificuldade é aumentada pela incapacidade até agora de ir à raiz da questão: a maneira como a tradição lida com a sexualidade, sua paralisia diante de desafios como o do celibato, da limitação de nascimentos, da interrupção de gravidez, do divórcio.
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Luiz Carlos Susin (Foto: Divulgação)
Luiz Carlos Susin é franciscano, bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí (atual Unijuí). É mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Atua como professor permanente e pesquisador do PPG em Teologia da PUCRS e como professor da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, de Porto Alegre. É membro da Equipe de Avaliação Interdisciplinar da Conferência dos Religiosos do Brasil, secretário-geral do Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Entre suas obras, destaca-se: Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Luiz Carlos Susin – Enquanto papa, ou seja, cabeça do magistério, do governo e do testemunho do episcopado mundo afora, essa década de Francisco, a meu ver, se devo escolher três aspectos, avançou no seguinte:
a) “Caminhar juntos”: o que ele falou no balcão da basílica em sua apresentação desembocou num processo sinodal. Teve, nesse meio tempo, a criação do Conselho de Cardeais para ajudar nas reformas necessárias, no formato cada vez mais aperfeiçoado de realizar os sínodos, sobretudo no cuidado de escutar.
b) Igreja em êxodo, ou em “saída”, insistência de Francisco para que a Igreja cuide mais da evangelização do que da própria subsistência. Nesse sentido, a superação da “autorreferencialidade”.
c) Uma relação evangelizadora conduzida pela mística da “misericórdia”, categoria que resume a postura do Evangelho. Portanto, livre de alfândegas de caráter moral ou doutrinário, para ir antes de tudo direto ao essencial.
É necessário situar o pontificado de Francisco, como os de João Paulo II e de Bento XVI, em sua relação com o Concílio Vaticano II. Ele retoma e atualiza, nos três aspectos sublinhados acima e na atualização da Igreja, o que há de mais significativo no concílio, como, por exemplo, a eclesiologia do Povo de Deus, uma relação mais livre e positiva com o mundo, e desenvolve, de forma a ir além das fronteiras, o diálogo com as diferentes tradições religiosas.
Bem, é sua postura de atualização do concílio que iria esbarrar na resistência de acomodados, de tradicionalistas, o que inevitavelmente levanta tensões e antipatia. A burocracia da Igreja, o carreirismo ou clericalismo, tem sido um limite imposto como um verdadeiro peso para um papa que deseja leveza.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Luiz Carlos Susin – Francisco é um legítimo filho da Igreja na América Latina e, antes ainda, um portenho filho de migrantes, com um humor próprio de Buenos Aires, nas que mantém a disciplina jesuítica e absorveu a leveza franciscana. É uma miscigenação do sul e com habilidades para a abertura planetária, pluralista, amigável, que se necessita.
Em seus textos maiores (Evangelii gaudium, Laudato si’, Amoris laetitia, Querida Amazonia, Fratelli tutti), ele continua sua trajetória literária com estilo leve e aberto, franco, sintético, com uma comunicação de vasto entendimento. É o testemunho que escuto de diversas partes do mundo: é um papa com linguagem muito próxima da gente plural, sem dificuldade de entendimento. Não são aulas de doutrina suas intervenções, mas ela está contida numa linguagem mais ampla de evangelização.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Luiz Carlos Susin – Ele tem concretizado alguns propósitos, ainda que de forma mais modesta do que o esperado. Por exemplo, a reforma da Cúria romana, da Santa Sé. Ele tem estimulado e encorajado as conferências episcopais e o diálogo franco com a sede romana.
Desde o começo ele surpreendeu com gestos proféticos, sobretudo na atenção aos mais pobres. Ele ousou confrontar a arrogância tradicionalista que aberta ou sub-repticiamente vinha pretendendo anular o desenvolvimento do Concílio Vaticano II, como foi o caso da Traditionis custodes. Ele nomeou muitos bispos e cardeais em encargos e sedes de forma significativa, afinados com seu perfil.
Mas em tudo isso houve também limites até agora: as nomeações episcopais ainda seguem uma forma pouco participativa para uma Igreja que se quer sinodal. Os ministérios exigem uma reforma que ele parece desejar, mas enfrentam barreiras. O caso mais emblemático foi a grande expectativa, na região amazônica, de ministério presbiteral para líderes de comunidades que são pais de família, viri probati, casados, mas isso ficou por ora truncado.
Se ele criou uma comissão para estudar a possibilidade de diaconato para mulheres, seria um desejo de ter mulheres nesse ministério, e seria uma maneira de suavizar e contornar, até certa medida, a proibição imposta por João Paulo II, mas permanece também truncado. O acolhimento pleno de pessoas que se separam e constituem outra relação de vida sofreu muito desgaste. Em tudo isso ele viu nascer uma resistência de conservadores e tradicionalistas com rigidez doutrinária.
A impressão que existe é que essas lideranças clericais, a hierarquia que pesa contra Francisco, têm recorrido a uma questão que parece perturbar a Igreja, mas que não tem a ver com o Evangelho: as questões de gênero e de sexualidade. Quando o papa assumiu, a crise que vinha se arrastando nos últimos anos de Bento XVI e que, em grande medida pesaram na sua renúncia, foram os vazamentos do Vaticano em torno de questões econômicas e os escândalos de pedofilia. Em palavras bem populares, é a velha questão das instituições sociais, políticas e eclesiásticas: dinheiro e sexo.
O Papa Francisco vem enfrentando de forma bastante valente, mas tem muito ainda a fazer. As tenções com o processo sinodal alemão têm a ver com isso. A própria estrutura sinodal da Igreja reclama uma mais profunda reforma do Direito Canônico, que permanece basicamente o de 1917, tendo sofrido apenas uma maquiagem depois do Concílio. Sem isso, continuaremos tendo problemas com ministérios, com clericalismo, questões de gênero mal resolvidas.
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Eduardo Hoornaert (Foto: Unicap)
Eduardo Hoornaert nasceu em Bruges, na Bélgica. Cursou dois anos de Línguas Clássicas e História Antiga na Universidade de Lovaina. Estudou teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1957, ingressou no Colégio para a América Latina fundado pelo episcopado belga na Universidade de Lovaina. Chegou no Brasil, em João Pessoa, na Paraíba, em 1958. Foi professor de História da Igreja nos institutos de teologia de João Pessoa, Recife e Fortaleza. É historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina – CEHILA. Desde 1962, escreve artigos de cunho histórico para a Revista Eclesiástica Brasileira – REB, na área do catolicismo no Brasil e do cristianismo em geral.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Eduardo Hoornaert – Penso que o maior avanço, em termos de reflexão sobre o catolicismo, sugerido pelo Papa Francisco, consiste em abrir uma profunda discussão sobre o caráter histórico do catolicismo. O papa sugere considerar o catolicismo tal qual se pratica hoje, em sua qualidade de fenômeno histórico, ou seja, como um movimento marcado pela fragilidade, imperfeição e provisoriedade que caracteriza tudo que é histórico.
O catolicismo é um fenômeno que surge a partir do século IV e se desenvolve ao longo de séculos. Não há uma simples “linearidade” entre o movimento original de Jesus e o catolicismo.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Eduardo Hoornaert – O atual papa cultiva um linguajar que não é de imediata compreensão. Ele não se faz de professor, não expõe “doutrinariamente” em seu pensamento, mas recorre a lances e expressões lapidares, como quem procura “cúmplices”. Pois, entre cúmplices, “meia palavra basta”.
Como entender expressões como: uma igreja em saída, não autocentrada, não autorreferencial, igreja hospital de campanha e, principalmente, sinodalidade? Essa última expressão esconde mais que revela, e isso parece ser intencional. Ao lançar solenemente o tema sinodalidade, o papa pisca o olho para quem? Quem se torna “cúmplice” do papa, nesse questionamento tão novo e desafiador?
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Eduardo Hoornaert – Em meu entender, esse papa não se “transformou” ao longo desses dez anos. Ele continua sendo o jesuíta da comunidade de Scannone, na Argentina. Sua sensibilidade social continua a mesma, sua visão de igreja também. Só que a ressonância de seus posicionamentos se tornou universal, e isso inquieta muito o instituto católico tradicional.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Eduardo Hoornaert – A expressão sinodalidade postula um conhecimento relativamente aprofundado da história dos dois mil anos de cristianismo. Nela, há muita coisa subentendida. Muita coisa que só se revela por meio de uma reflexão sobre os dois mil anos percorridos pela tradição de Jesus.
Por isso, entender do atual papa pressupõe compreender que a história é uma ciência que se baseia na convicção de que tudo que se constrói na história da humanidade (e, por conseguinte, igualmente na tradição de Jesus) pode eventualmente ser descontruído, reconstruído, adaptado ou reformulado. Eis um pressuposto básico, e penso que o Papa Francisco trabalha com ele.
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Clóvis de Melo Cavalheiro (Foto: Arquivo pessoal)
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Clóvis de Melo Cavalheiro é jesuíta, atua como gerente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, na Unidade de Inovação e Tecnologia – Unitec da Unisinos. Possui graduação em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje, Licenciatura em Filosofia pela Unisinos e graduação em Teologia também pela Faje. É especialista em Responsabilidade Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e em Pedagogia Inaciana e Formação Integral pela Unisinos. É também mestre e doutor em Administração pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Clóvis de Melo Cavalheiro – O avanço mais significativo do pontificado do Papa Francisco foi convidar a todos os batizados a buscarem o retorno às essências teológicas da Igreja, nas quais estão os fundamentos da vida religiosa, a catequese, expressões de fé e as pastorais sociais.
Além disso, proporcionou mudança na concepção do “poder” dos ministros ordenados que desvendou o problema da gestão da Igreja, a qual precisa rever a sua atuação no empreendedorismo religioso, por exemplo, não vender os sacramentos para captação de recursos financeiros para a manutenção das paróquias e dioceses.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Clóvis de Melo Cavalheiro – Quando a Igreja Católica adota boas práticas socioambientais, busca a transparência em sua gestão, ela cria uma identificação com seu público, com a sociedade civil. Além disso, consegue dialogar com outros fóruns – político e religioso – sobre os desafios globais. O reflexo disso ocorre a partir do estilo do Papa Francisco, um homem de profunda espiritualidade inaciana e com grande capacidade de estabelecer relações entre ciência e a fé.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Clóvis de Melo Cavalheiro – A principal transformação por que passou o pontificado foi a incorporação à sua estratégica de beneficiar não somente a Igreja, mas pensar no mundo como um todo, com as suas diferenças culturais, crenças e origens. Em meu ponto de vista, a Igreja, a partir da sua atuação na educação, poderá vir a ser um eficaz instrumento de desenvolvimento socioambiental no mundo.
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José de Souza Martins (Foto: Unesp)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994). É professor titular aposentado da USP. Entre os livros recentemente publicados, destacam-se: Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano (2022), A política do Brasil lúmpen e místico (2021) e As duas mortes de Francisca Júlia: a semana antes da semana (2022).
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
José de Souza Martins – O Papa Francisco se situa numa linhagem de papas que tem início com a eleição de Angelo Giuseppe Roncalli como sucessor e descontinuador de Pio XII, quando o Colégio dos Cardeais preteriu o cardeal Siri, de Gênova, e foi buscar um camponês e pobre.
Angelo Giuseppe Roncalli, o Papa João XXIII | Foto: Wikipédia
O catolicismo identificado com o poder da Cúria considera Pacelli o último papa. De fato, o foi. Último de uma tradição antiprofética. As resistências à canonização de Pio XII revelam aguda consciência da Igreja em relação ao que de fato Pacelli representou como expressão de crise do catolicismo. Roncalli abriu caminho para Bergoglio.
Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, Papa Pio XII | Foto: Wikipédia
Nesse sentido, a nova linhagem de papas que começa com João XXIII é antinumérica e antiquantitativa porque profética. A pergunta é quantitativa. Prefiro ir por outro caminho.
Bergoglio tem o perfil de um cura de aldeia. Foi um padre de subúrbio. Foi operário. Optou pelo sacerdócio como chamamento tardio. O que o reveste das revelações do vivencial. João XXIII, cuja casinha camponesa visitei em Sotto-il-Monte, Bérgamo, Itália, tinha um perfil parecido e provavelmente por isso foi o escolhido. Casinha cujas paredes ainda têm cheiro de fogão de lenha. Numa das paredes, num quadro, metade de uma passagem de trem, de ida e volta Veneza-Roma-Veneza. Roncalli não foi a Roma para ser papa. Foi para voltar.
Os avanços de Francisco são um só. Uma síntese. O do reencontro da Igreja com a igreja, da instituição com a comunidade de fé. Ele segue e acrescenta traços à missão dos papas chamados ao grande encontro da igreja consigo mesma, iniciado por Roncalli. A Igreja da oração e do testemunho.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
José de Souza Martins – Os cinco papas que o antecederam percorreram algumas das ramificações desse mesmo e único caminho. É uma bobagem analisar o papado como uma sequência descontínua de papas que seriam eleitos para reformar e negar o antecessor. Desde João XXIII, os papas têm assumido a missão de tornar reais o elenco de possibilidades e as promessas de uma grande reserva de renovações à espera da oportunidade de sua necessária manifestação. Os papas não reinventam a Igreja. Cumprem uma missão e um chamado.
Nesse sentido, Francisco tem se empenhado na missão profética de negar a alienação crescente da sociedade contemporânea, que se expressa no desencontro entre fé e vida, na transformação do homem em objeto e coisa e em sua anulação como ser social e sujeito de sua própria história. Seus cinco antecessores fizeram o mesmo.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
José de Souza Martins – O empenho do Papa Francisco em reconhecer nos seres humanos a condição de protagonistas do destino comum tem sido um aspecto essencial de seu magistério. Sem o reconhecimento desse destino comum não há igreja. Na forma, aliás, de valorização do pensamento crítico como faz no seu apoio ao movimento da Economia de Francisco, no questionamento da economia neoliberal coisificante e desumanizadora.
O grande gesto pelos seres humanos da Amazônia foi, sem dúvida, o marco simbólico dessa orientação, índios de cocar no recinto do Vaticano, na basílica barroca de São Pedro. Os nativos do Novo Mundo reconhecidos como gente no mais monumental recinto do catolicismo, o papa em procissão com eles pela Praça São Pedro, num dia frio e chuvoso.
Uma revolução simbólica e ativa no que é de fato reconhecimento das revelações da situação e da experiência vivencial dos que a história saqueou a vida e privou do sentido da esperança, como esperança compartilhada, cristã.