08 Março 2023
"Eu estava perdido. Me sentia indigno. Eu estava com uma dor terrível. Não tinha muita vontade de continuar vivendo, muito menos lutar pelos outros. O Papa Francisco me tirou do túmulo e serei eternamente grato. Muito me foi dado e muito será exigido de mim. Eu levo isso muito a sério", escreve Juan Carlos Cruz Chellew, sobrevivente chileno de abuso, membro da Comissão para a Tutela de Menores, em relato publicado por National Catholic Reporter, 06-03-2023.
Quando tento descrever o que o Papa Francisco significa para mim, imediatamente penso que deveria escrever algo que um teólogo diria, inteligente e salpicado de citações. Não sou teólogo, mas minha história com Francisco tem um episódio do Novo Testamento que serve de lente para mim e provavelmente é familiar para todos vocês.
Jesus foi chamado a Betânia por suas amigas Marta e Maria porque seu irmão Lázaro havia morrido. Ele estava morto há quatro dias, e quando Jesus foi para a sepultura, ele o ressuscitou, e Lázaro continuou sua vida. Então, sim, eu me sinto como Lázaro. Sou uma pessoa normal que recebeu demais; portanto, tenho o dever de devolver tudo o que puder.
Papa Francisco e Juan Carlos Cruz. (Foto: Cortesia de Juan Carlos Cruz | National Catholic Reporter)
Conheci Francisco um dia durante uma batalha de anos com tantos líderes da igreja que, como alguns ainda fazem, tentaram silenciar a mim e a tantos sobreviventes sobre os horrores do abuso. Em 2018, tive a oportunidade de falar diretamente com Francisco. Na época eu era um homem que sofria e não queria que nada ficasse sem ser dito durante aquela conversa.
Queria falar por tantos sobreviventes que merecem o privilégio que me foi dado e nunca o terão, contar a ele sobre tantos que morreram esperando, aqueles que se suicidaram e aqueles que não acreditam e continuam implorando por justiça. Eu queria contar a ele sobre a situação da comunidade LGBTQ e a rejeição cruel de muitos na Igreja.
Depois de pensar antecipadamente por dias e horas, nos encontramos nos corredores da casa Santa Marta, no Vaticano, onde, para minha surpresa, encontrei um homem humilde e pronto para ouvir o que eu ia dizer.
Ficamos sentados por três horas e meia em uma sala onde contei a ele sobre o que haviam feito a mim e a muitos outros, e as maquinações das lideranças da Igreja.
Eu também disse a ele que eu não era único e que era um padrão para milhares de sobreviventes em todo o mundo. Contei como a minha fé e a figura de Maria me sustentaram nos momentos mais sombrios, mesmo quando eu queria morrer.
Falei dos líderes da Igreja – muitos bispos e cardeais que mais pareciam lobos do que pastores – que destroem as coisas mais sagradas que um ser humano possui: nossa crença, nossa fé e nossa dignidade.
Enquanto viajávamos pela dor, seu rosto, sua postura e suas palavras ocasionais pareciam sinceras, ao contrário de outras pessoas que, ao longo dos anos, apenas fingiram ouvir. Nós choramos e rimos. Entrei com uma mochila enorme de raiva e dor e saí da sepultura, como Lázaro, sentindo que tinha uma segunda chance e mais motivado do que nunca para ajudar o próximo. Ele mudou minha vida.
Ao longo dos anos, vim a conhecer e entender um papa que carrega o peso do mundo sobre seus ombros. Um homem que quer muito mudar e, ao fazê-lo, percebe o quanto ainda há por fazer. Do lado de fora, sinto a frustração quando vejo aqueles que dizem sim na cara, mas, quando voltam para suas dioceses ou escritórios, não mudam nada.
Estou maravilhado com este homem que caminha para onde os outros querem fugir, que exalta os pobres e marginalizados e que não tem medo de falar o que pensa diante da injustiça. E quando estou desanimado e converso com ele, seu senso de humor pode me animar. Ele é a única pessoa no mundo que depois de cada interação que tenho com ele parece a primeira vez que nos encontramos.
O exemplo de Francisco me faz querer falar contra aquelas minorias barulhentas e poderosas que tentam monopolizar a religião por meio do poder, dinheiro e leis antigas que afastam as pessoas. Aqueles que lançaram tantos de nós para a condenação eterna sem sequer avaliar suas próprias vidas.
Eu acho que ele sabe que existem milhões ao redor do mundo que foram tocados por seu amor e o amam de volta. Não estou dizendo que ele é perfeito ou que resolveu tudo que precisa ser resolvido, mas quem é e quem resolve? Ele tenta sinceramente. Eu vejo quando ele convida, cuida e ama a todos.
Sei que muitos não compartilham como me sinto e tudo bem. Minha mudança nesses anos foi inacreditável. Eu estava muito perdido. Eu me senti indigno. Eu estava com uma dor terrível. Eu não tinha muita vontade de continuar vivendo, muito menos lutar pelos outros. O Papa Francisco me tirou do túmulo e serei eternamente grato. Muito me foi dado e muito será exigido de mim. Eu levo isso muito a sério.
Este relato aparece na série de longas-metragens a respeito dos 10 anos do pontificado de Francisco. Veja a série completa em inglês aqui.
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Eu sou um sobrevivente dos abusos sexuais. O Papa Francisco se encontrou comigo e mudou minha vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU