13 Mai 2022
A Igreja evitou durante décadas enfrentar o tema dos abusos de menores por parte do clero e só o fez quando se viu obrigada. Porém, há um ponto de inflexão nesta história. Em janeiro de 2018, durante sua viagem ao Chile, o Papa Francisco cometeu um erro grave e um importante acerto, praticamente ao mesmo tempo. Interrogado pelas vítimas sobre os abusos do padre Fernando Karadima (em torno de 200 casos denunciados) e por um de seus encobridores, o bispo Juan Barros, respondeu que eram calúnias e exigiu que trouxessem provas. Recebeu por isso uma onda de crítica. E uma das primeiras e mais duras foi a de Juan Carlos Cruz, vítima de Karadima.
Pouco tempo depois, Francisco enviou dois investigadores, que lhe entregaram um relatório demolidor e terminou forçando a renúncia de toda a cúpula da Igreja chilena (34 bispos). Na sequência, ocorreu um sínodo especial, dezenas de novas normas e uma mudança de mentalidade em uma parte do clero que permitiu realizar comissões de investigação em um grande número de países. Cruz é hoje um bom amigo do Papa, um dos seus conselheiros pessoais na luta contra os abusos e membro da comissão vaticana para a prevenção deste tipo de casos.
A entrevista é de Daniel Verdú, publicada por El País, 09-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Você está na origem da mudança de rumo da política do Vaticano no tema de abusos. Que dimensão têm essas modificações e que possibilidades têm de se manter depois deste pontificado?
Houve mudanças concretas em relação à relevância que tem os abusos, na mão firme em casos que não havia antes, na abolição do segredo pontifício ou na criação da comissão para a tutela de menores. Minha proximidade como Papa me permitiu ver como abri portas que outros queriam manter fechadas. Porém, tudo isso não é suficiente. Se colaboradores como bispos e cardeais não ajudam, não chegamos a nada.
Não fazem?
Muitos bispos tratam de fazer o correto. Porém há alguns que vão ao Vaticano, veem o Papa, fazem visitas ad limina ou participam em cúpulas sobre abusos e dizem sim a tudo. Porém, depois que voltam a suas casas não fazem nada. Para mim esse é o grande problema da Igreja: a falta de compromisso para atuar em bloco. E no tema dos abusos se vê claramente.
Falta autoridade desde o Vaticano para que se acatem as ordens?
O Papa já disse de todas as maneiras. Na reunião da semana passada nos falou: “Vocês têm um mandato para ajudar as conferências episcopais para que investiguem e se criem escritórios de onde se possam receber denúncias e esclarecer estes processos”. Porém há muitas partes do mundo onde não acontece. E essa desvinculação me impressiona pensando, como bom católico, que quando o Papa dizia uma coisa todos correm para fazer. Porém não é assim.
O Papa, por outro lado, foi inflexível no Chile e liquidou toda a cúpula da Igreja. Crês que esse é um modelo de autoridade que deveria ser mais aplicado?
O que ele fez no Chile, como envolvido, me pareceu ótimo. Aquela conferência episcopal era como a caverna de Ali Baba e os 40 ladrões. Que ele tenha batido na mesa assim foi uma lição para muitas conferências episcopais ao redor do mundo.
Ajudou a melhorar?
Há muito o que fazer. Muitas vítimas não recebem justiça e muitos bispos nefastos da velha guarda permanecem. Mas chegaram novos prelados que trazem outra maneira de fazer as coisas. E há de se admitir isso. Mas o problema é que o dano foi tão forte e doloroso que a conferência episcopal é hoje irrelevante no Chile.
De todas as novas medidas, qual considera mais relevante?
Talvez a eliminação do segredo pontifício. Era uma arma dos bispos não investigar.
Outro dia você se encontrou pela primeira vez pessoalmente com os outros membros da comissão para a tutela dos menores e com o Papa. Qual foi a sua impressão?
Fiquei impressionado com o empenho do Papa em continuar trabalhando nesta questão. Ele disse que era inaceitável e reconheceu o horror que representa para as vítimas. Gostei que ele tenha dito que temos o mandato de auditar ou estar atentos ao que todas as conferências episcopais do mundo estão fazendo e relatar à Santa Sé. E isso é importante, porque muitos bispos tentam muitas vezes não bisbilhotar suas coisas. Você chega e eles te tratam como se você fosse o diabo.
Já aconteceu com você?
Em algumas partes do mundo há processos que foram vencidos pelas vítimas e a Igreja não toma as medidas correspondentes.
Você está satisfeito com o trabalho da comissão? Digo isso porque alguns antigos membros leigos, como Marie Collins ou Peter Saunders, criticaram que não era útil ou que era estético.
Estou satisfeito por ter conhecido as pessoas que o compõem, porque vejo que estão interessadas e não é algo estético. Mas agora vem uma reforma abrangente a ser anunciada em breve. Uma nova etapa está chegando e a comissão será integrada à Congregação para a Doutrina da Fé (CDF)…
Isso pode comprometer sua liberdade?
Não vou deixar minha liberdade ser comprometida. Não estou aqui para satisfazer as necessidades de relações públicas. Cheguei a uma comissão que deve ser séria para ajudar a liquidar este flagelo e fazer justiça a este crime. Não me prestarei a ser usado, asseguro-lhe.
A Congregação para a Doutrina da Fé agiu corretamente nestes anos? Eles estão disponíveis para seus pedidos?
A última reforma realizada na CDF responde a esta pergunta: quem estava lá e quem está lá agora. Talvez ainda seja necessário que as pessoas saiam, mas algumas muito importantes foram embora. Tenho esperança em John Kennedy [nomeado há duas semanas como chefe da seção disciplinar], sei que dom Scicluna está por trás disso, que existem pessoas boas como dom Jordi Bertomeu. Pessoas que atuam para que haja verdade e transparência. Porém, para mim, foi chocante ver a lentidão dos casos e a opacidade para explicar onde estão. As vítimas só são informadas quando se chega a um resultado, e isso é terrível. Eu vou lutar por mudanças.
O Papa lhes pediu que preparem um relatório anual sobre a situação da questão no mundo. Como seria? Que modelo seria seguido?
A Igreja não é uma multinacional, mas em muitas coisas é semelhante. Devem ser prestadas contas do trabalho anual, por exemplo. Este relatório pode ser um instrumento para saber se as coisas estão sendo bem feitas e de pressão. É uma ferramenta muito importante para medir a situação. Os jornalistas, por exemplo, não possuem essa documentação.
Será público?
Claro, e transparente.
Há medo de compensar financeiramente as vítimas?
Sim, com certeza. Muitos pintam as vítimas como pessoas que vêm roubar o dinheiro da Igreja. Mas o dano que lhes foi causado merece justiça e reparação. Eu mesmo passei por isso. E o dinheiro que me deram não cobre as despesas que tive ou a dor e os danos emocionais que sofri. Eles não podem sentir medo ou ódio em relação às vítimas.
Na Espanha é assim há muitos anos. Como você vê, como membro da comissão, o que vem acontecendo nos últimos meses?
Minha opinião é que o cardeal Omella quer descobrir a podridão e está fazendo certo. Mas estou desapontado por terem colocado um escritório de advocacia [Cremades & Calvo-Sotelo] de propriedade de um membro da Opus Dei à frente da comissão. Isso gera desconfiança. Parece que ele não tem a independência que deveria ter. Talvez seja apenas uma questão de imagem, mas faz com que muitas vítimas não queiram colaborar.
Que tipo de comissão você acha que é mais útil?
Eles devem ter experiência em direitos humanos e civis. Que tenham um amplo espectro político, não partidário. Com várias disciplinas científicas. Somente essas são eficazes e úteis para esclarecer a verdade. Mas olha, espero que as vítimas sejam ouvidas com o respeito que merecem e que, de uma vez por todas, a justiça seja feita. Os bispos não devem mais esconder ou perpetuar a cultura de abuso e encobrimento.
Na Espanha, ainda existe a possibilidade de encontrar uma forma que contente a todos?
Ainda há uma chance se houver mudanças nos Cremades e eles conseguirem inspirar confiança nas vítimas. A Conferência Episcopal Espanhola [CEE] não pode se dedicar a defender a instituição e tratar algumas vítimas como se quisessem processá-las. A Igreja espanhola deve ser humilde.
O que você achou da primeira reação da CEE ao relatório publicado por El País?
A CEE, como tantas outras quando já estão sobrecarregadas, não teve uma atitude humilde de reparação e justiça, e lutou contra o que saiu na mídia como a Coluna Digital do El País, que fez um trabalho exaustivo. E eles lutam contra isso com números e decimais para se defender. E isso incomoda a mim e ao resto das vítimas. Que eles deixem de usar figuras estúpidas para se defender e coloquem a Igreja à disposição das vítimas, estas têm um enorme direito de receber justiça, reparação e consolo das conferências episcopais.
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“O dano causado pelos abusos foi tão forte e doloroso que a conferência episcopal é hoje irrelevante no Chile”, diz Juan Carlos Cruz, da comissão vaticana de prevenção aos abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU