"A pandemia revelou que no Brasil não se trata apenas de uma doença de origem biológica e viral, mas de outra doença, por ela revelada, a de uma doença social e política", diz o sociólogo
Apesar de o ano de 2021 iniciar com a esperança de que os primeiros brasileiros poderão ser vacinados contra a covid-19 a partir de fevereiro, o fato é que depois de dez meses de distanciamento social "o mundo mudou mas as pessoas não têm palavras nem ideias apropriadas para expressar o que o mundo se tornou e para expressar em que possa consistir a esperança nesta nossa hora mais sombria", constata o sociólogo José de Souza Martins.
Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, ele faz uma retrospectiva do ano de 2020, apontando os "fracassos da sociedade brasileira", dos partidos e, especialmente, do presidente Jair Bolsonaro na administração não só da crise pandêmica, mas das crises econômica e social que se agravaram no país no último ano. 2021, menciona, caso a cessação do auxílio emergencial ocorra, iniciará com 25 milhões de pessoas "sem nenhum rendimento e, portanto, nenhuma perspectiva de sobrevivência como seres humanos".
A crise endêmica que está instalada no país há décadas, analisa, foi ainda mais agravada pelos partidos políticos de esquerda e de direita que foram incapazes "de fazer um diagnóstico político que aponte ao país, ao menos, a tentativa de encontrar uma saída viável para a insurreição eleitoral alienada e alienante de 2018". Aliado ao poder político, particularmente às crenças pessoais do presidente, acentua, as "igrejas de balcão" vendem uma "religiosidade mercenária que vem disseminando a convicção pseudorreligiosa de que seus membros, porque 'creem', não serão atingidos pela pandemia". E lamenta: "Após a declaração do presidente de que não tomará a vacina contra a covid-19, a proporção dos que declararam que também não a tomarão saltou de 9% para 22%: 44 milhões de brasileiros pautam-se, nessa questão vital, pela opinião de um governante que não tem a menor consciência do que é sua responsabilidade social e política numa questão grave como essa".
Diante deste cenário, adverte, o tema da "sobrevivência" é o mais urgente para ser discutido no país neste ano que se inicia. "Se o Brasil sobreviver à covid-19 e aos desmandos de Bolsonaro e de seus acólitos, o Brasil terá que discutir a sua reconstrução como nação democrática. Para isso, os partidos, e as esquerdas em especial, terão que superar suas concepções toscas a respeito do que somos, do que e por que não temos podido ser e do que podemos ser se superarmos nossas limitações de entendimento e de ação", conclui.
José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulos Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016).
A entrevista foi publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 05-01-2021.
IHU On-Line - Que balanço faz do ano de 2020, especialmente no Brasil?
José de Souza Martins - Provavelmente, em toda a história do Brasil republicano, é a primeira vez que se pode dizer que o balanço de um ano é o de um país no vermelho em todos os índices de civilização, próprios do que seria uma sociedade democrática e moderna e que, ainda por cima, se diz cristã: em política social, em política econômica, na questão ambiental, na questão da saúde, na questão da cidadania, na tolerância e no respeito pela diversidade social e cultural, no combate à inclusão social perversa, no respeito à pluralidade étnica do povo brasileiro, na proteção às populações indígenas e aos seus direitos, nos direitos dos idosos (que arrastaram o país nas costas ao longo da vida), no respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes, no respeito às mulheres, no respeito à condição de gente e pessoa dos que aqui habitam.
Têm sido tantas as evidências da degradação das relações sociais e políticas, de incremento da pobreza, de maciça exclusão social, que fica muito difícil, se não impossível, reconhecer algum indício na situação social, econômica e política do país, de que a crise tenha sido revertida e de que todos os seus graves desdobramentos tenham sido contidos. Sem contar a previsão de que, com a cessação do auxílio emergencial, já em janeiro, se isso ocorrer, 25 milhões de pessoas ficarão sem nenhum rendimento e, portanto, nenhuma perspectiva de sobrevivência como seres humanos.
O governo não demonstra saber ou querer administrar a crise, aferrado que está às determinações de uma orientação econômica problemática. A do perverso modelo de economia de Milton Friedman, pai das maldades do neoliberalismo econômico, Prêmio Nobel de Economia. Patrono da política econômica dos regimes autoritários, o das sanguinárias ditaduras militares do Chile e do Brasil. Achávamos que havíamos superado as iniquidades do regime autoritário.
Com as eleições de 2018 e os votos de mais de 50 milhões de brasileiros, ficou claro que não havíamos dado esse passo. O espírito da ditadura estava de tocaia nos escaninhos do poder e na mentalidade ingênua de um eleitorado que revive periodicamente a carência autoritária de um feitor de senzala que o conduza. Não obstante indisciplinado, o brasileiro gosta de ser mandado.
Para esse neoliberalismo econômico, defender a intervenção do Estado na proteção às vítimas da lucratividade sem limite de um capitalismo enfermo, como este, é coisa de socialistas fabianos e de keynesianos, como na Inglaterra do Partido Trabalhista, de socialistas e de comunistas. É o modelo econômico cujo pressuposto é o de que, na miséria, a culpa é da vítima por não ser capitalista nem agir como capitalista. Miserável porque incompetente e não porque tenha sido privada de seus direitos, não só direitos jurídicos, mas os próprios direitos como seres humanos. Um modelo econômico que não é apenas de socialmente excluídos, mas de seres humanos destituídos e coisificados.
A incompetência para administrar a crise de agora que é, também e sobretudo, decorrência de que o objetivo do governo Bolsonaro e dos que tramaram sua ascensão ao poder, para assim colher benefícios de orientação política e econômica, é este mesmo. O de aprofundar e radicalizar a crise econômica para com ela provocar o desmonte do país, fragilizar o Estado e facilitar a ascensão política de grupos que nunca seriam eleitos pela via regular da democracia e das consciências esclarecidas, de modo a ajustá-lo social e economicamente à exclusão necessária à mansidão de um regime servil que dê à nossa economia de província os lucros descomunais das economias metropolitanas e ricas. Quanto maior a crise, maior o conformismo e a cegueira social e política das vítimas. É inútil explicar e esclarecer. Alcançada essa forma de exclusão social, a própria vítima perde o entendimento crítico de sua situação. Exclusão sob a forma de inclusão perversa produz a alienação extrema que inviabiliza que cada um possa fazer a confrontação crítica das irracionalidades produzidas pela economia, em contradição com valores e realidades fragmentárias anunciadores da possibilidade da superação da adversidade, da emancipação das pessoas em relação à pobreza de alternativas, da libertação social.
Costumo fazer análise de balanços de empresas para acompanhar e entender a dinâmica da economia brasileira, a das grandes empresas e dos grandes grupos econômicos. O lucro dos bancos tem sido de mil por cento ao ano. Enquanto os reajustes salariais, dos que permanecem empregados, são comparativamente ínfimos, enquanto aumenta o número de favelas e de favelados, de cortiços, de moradores de rua, de famintos. Não é de hoje. Lula chegou a dizer que nunca os banqueiros ganharam tanto quanto no seu governo. Também ele havia se tornado um refém do sistema, que o sacrificaria pouco tempo adiante, cuspido depois de mastigado.
IHU On-Line - No início da crise pandêmica, o senhor nos disse que um dos "grandes desafios" dos sociólogos era "decifrar a mentalidade, as ações e o projeto de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas" no enfrentamento da pandemia. Oito meses depois, qual é o resultado desse exercício a partir das suas próprias reflexões e do que o senhor tem observado a partir do trabalho dos sociólogos brasileiros, de modo geral?
José de Souza Martins - A pandemia decifrou e revelou a verdade profunda de Bolsonaro, dos bolsonaristas e do projeto político que estão impondo ao Brasil. A pandemia tem sido aqui o que Henri Lefebvre sociologicamente define como um revelador e analisador da situação. No caso, o das inconsistências de um governo despreparado para transmitir confiança aos diferentes setores da sociedade e da economia, de diferentes modos alcançados por esse projeto. No entanto, seu compromisso apocalíptico com a besta-fera, ente comumente invocado pelas populações simples do sertão para explicar as maldades sociais que as vitimam, já estaria chegando à consciência da maioria. Num regime parlamentarista, o Parlamento lhe teria retirado a confiança e Bolsonaro teria caído há muito.
Em primeiro lugar, a pandemia mostrou que ele e seu grupo não tem competência para governar o país. Mas tem a cumplicidade silenciosa de uma parcela ainda importante da população brasileira. Não obstante os desacertos e distúrbios nas questões sociais, ambientais, de saúde e na questão econômica, 37% dos consultados em pesquisa de opinião do Datafolha classificam o governo de Bolsonaro como ótimo e bom, 75 milhões de brasileiros.
Após a declaração do presidente de que não tomará a vacina contra a covid-19, a proporção dos que declararam que também não a tomarão saltou de 9% para 22%: 44 milhões de brasileiros pautam-se, nessa questão vital, pela opinião de um governante que não tem a menor consciência do que é sua responsabilidade social e política numa questão grave como essa. Um governante que não tem habilitação em medicina, mas que usa a força simbólica da Presidência da República para recomendar a cloroquina como remédio preventivo dos efeitos da covid-19. Um governante que está muito aquém do que seria necessário num país já mergulhado em profunda crise econômica quando de sua posse.
Os desafios da pandemia acentuaram as evidências do despreparo. A melancólica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, recheada de palavrões e de concepções toscas e primárias sobre a função do Estado e as obrigações do governante, mostrou que esse governo é norteado pela bravata, um governo subversivo que altera a ordem política e compromete a democracia ao desfigurá-la. À nossa moda, vai se definindo uma situação como a da França de 1792, quando o rei foi destronado e a república foi proclamada sob o temor da pátria em perigo.
IHU On-Line - As vacinas da covid-19 trazem esperança para a população, mas, ao mesmo tempo, já sabemos que inúmeras pessoas ficarão desassistidas. Quais são os desafios do Brasil em relação à vacinação contra a covid-19?
José de Souza Martins - As vacinas da covid-19, graças a iniciativas em confronto com o governo federal, como a do competente Instituto Butantã, não farão o milagre de consertar os abusos de comportamento, estimulados pelo próprio presidente da República, dos que se juntam em multidões em praças e ruas, como se nada estivesse acontecendo. Os inconscientes e debochadores dos grandes ajuntamentos, a que comparecem sem máscaras e sem cuidados, contra todas as recomendações dos especialistas. É o carnaval perene dos disseminadores da doença, dos que não têm o menor apreço pelo direito à vida dos que ficam expostos à sua arrogância e irresponsabilidade. A vacinação não imunizará contra a burrice e a ignorância e o comportamento antissocial. Já se sabe que mesmo os vacinados terão que usar máscaras e adotar distanciamento social por pelo menos dois anos. Aqui, não tem sido raro usar remédios e vacinas como meios de mágica medicinal popular. O que abre caminho para a transgressão das regras médicas.
Uma deficiência de referências de conduta, propriamente sociais, na cultura brasileira, agravada pela conduta desviante e dissidente do presidente da República, constitui desafio que não será suficientemente superado na situação de emergência em que o país se encontra desde os primeiros meses de 2020.
Sem os cuidados da persistência no confinamento até que haja a segurança mínima da chamada imunização comunitária e de cautelas como a de usar máscaras, álcool em gel, sabonete, constantemente, a vacina em si terá efeitos limitados. A pandemia revelou que, aqui no Brasil, mas também em outras sociedades, não se trata apenas de uma doença de origem biológica e viral, mas de outra doença, por ela revelada, a de uma doença social e política.
A vacina não terá efeitos na irresponsabilidade e na incompetência política dos governantes. A massa dos que já estão à margem dos direitos relativos à saúde, com a vacina, apenas confirmará um dos aspectos mais dolorosos da exclusão social, que é a exclusão do direito à vida, muito mais do que do direito à atenuação das iniquidades e limitações que caracterizam a insuficiência de oportunidades de participação na estrutura da sociedade ou as deformações nessa participação no que é de fato inclusão social perversa.
IHU On-Line - A consciência da injustiça cresceu neste ano ou as ações de solidariedade surgidas na crise pandêmica dão uma nova esperança à sociedade brasileira?
José de Souza Martins - “Consciência da injustiça” contraposta a “ações de solidariedade”, em relação à sociedade no seu conjunto, como duas tendências opostas e seguras, são indicadores de avaliação impossível. Mesmo que fosse possível quantificar ambos, o saldo não permitiria fazer uma interpretação sociológica do que possa ser definido como “nova esperança para a sociedade brasileira”.
A injustiça e a solidariedade, numa sociedade como esta, uma em relação à outra, não se propõem como alternativas numa concepção de tempos sociais sucessivos. Elas ocorrem ao mesmo tempo, pois a sociedade se move a partir de contradições, de antagonismos estruturantes, reciprocamente necessários, contemporâneos.
Eu entendo que a intenção da pergunta é a de saber quais os indícios de que, numa tragédia como a desta pandemia, o bem está se sobrepondo ao mal. Estão ocorrendo ações em favor do bem, sem dúvida, numa situação em que ao mesmo tempo o mal se regenera, como é característico da sociedade contemporânea. O repetitivo pode se sobrepor ao inovador nas peculiaridades dos conflitos sociais na modernidade, como Henri Lefebvre, o grande sociólogo marxiano francês, demonstra em suas densas obras sobre as minúcias da sociedade atual. O que propõe a luta pela justiça social e pela democracia numa perspectiva diferente da acostumada e da, já nesta altura, equivocadamente assumida até mesmo pelas esquerdas.
Para que uma sociedade tenha consciência da injustiça é necessário que assuma antes a necessidade da justiça social como uma carência radical, carência de transformações e inovações sociais, e não como mera vontade moral ou de probabilidade lotérica. Não é um jogo, é um conflito difícil e desafiador.
Aqui, mesmo os que falam em injustiça a ela se referem de maneira abstrata e, em abstrato, todos são contra ela. Mas ao mesmo tempo, de vários modos, todos são beneficiários de algum tipo de injustiça. Para ter consciência do que ela é, aqui se decanta a injustiça, de maneira autoprotetiva e autoindulgente, para condená-la no agir dos outros e poupar-nos da injustiça que há em muitos aspectos do nosso agir.
Por outro lado, ações de solidariedade têm havido sempre. Quem se dedica ao estudo sociológico da vida cotidiana sabe quantas pequenas e invisíveis ações de solidariedade existem nas tradições desta sociedade e continuaram a existir e a crescer depois do início da pandemia. Sem contar criativas inovações de solidariedade, em cuja aplicação, os que são sensíveis aos efeitos socialmente destrutivos da miséria e do abandono, alargam sua consciência crítica e seu compromisso com o outro.
Tampouco é possível falar em “novas esperanças” em clareza a respeito da situação e de suas contradições. A esperança depende de uma sociabilidade que expresse possibilidade da reordenação das relações sociais e da consciência social numa práxis de superação de adversidades. A esperança só é real no marco do socialmente possível na obra comum e consciente de mudar o mundo. A esperança é a dimensão poética do possível. Sem poesia a sociedade se torna rotineira e conformista. Um dos nossos dramas é justamente o de que as esquerdas democráticas e os próprios grupos religiosos preocupados com a questão social perderam o sentido da poesia.
Eis por que isso não ficou evidente até agora no Brasil desta tragédia. Principalmente no comportamento de setores da classe média, nos dias dos cumprimentos natalinos de 2020. Os votos foram os mesmos de Natais anteriores, mesmas palavras vazias, mesmas fórmulas: “Feliz Natal” e “Feliz ano novo”, como se nada estivesse acontecendo. Algo que revelasse que tais votos são a repetição da indiferença, da incapacidade de gritar o anômalo e nesse grito anunciar um querer transformador e libertador.
O mundo mudou mas as pessoas não têm palavras nem ideias apropriadas para expressar o que o mundo se tornou e para expressar em que possa consistir a esperança nesta nossa hora mais sombria. O que indica os fracassos da sociedade brasileira.
No plano religioso, o mal como triunfo cúmplice do poder por parte das igrejas de balcão, as da religiosidade mercenária que vem disseminando a convicção pseudorreligiosa de que seus membros, porque “creem”, não serão atingidos pela pandemia. Já o foram.
Os partidos políticos, de esquerda e de direita, se igualaram na redução da política ao partidário e na incapacidade de fazer um diagnóstico político que aponte ao país, ao menos, a tentativa de encontrar uma saída viável para a insurreição eleitoral alienada e alienante de 2018, cujo preço estamos pagando nos desacertos em relação à questão social da pandemia.
IHU On-Line - Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, mais de 14 milhões de pessoas estão desempregadas somente no Brasil. Como fazer frente a esse cenário num momento de crise política, econômica, pandêmica e social?
José de Souza Martins - O número de desempregados vem crescendo nas últimas décadas. Não é de agora. Está relacionado com a desindustrialização, a reestruturação produtiva e a modernização inevitável da produção e dos serviços, na indústria e na agricultura. Os empregos que, em consequência, desapareceram, não voltarão. Não há como reverter as transformações tecnológicas motivadas pelo afã da redução dos custos do trabalho. A mão de obra descartada tornou-se obsoleta. Mesmo que houvesse uma ampla reeducação profissional dos desempregados, muitos deles não têm como beneficiar-se dela porque carecem da escolarização necessária a empregos que exigem formação no ensino médio e no ensino superior.
O reemprego vem dependendo, em escala inferior à do desemprego, da restauração dos setores da economia que ainda não foram atualizados pela modernização. O que contraria a ideologia modernizante dos poderosos, mas que tem sido fator de uma economia virtuosa na história do Brasil, a do dualismo econômico. Isso, na economia, é considerado retrógrado. Mas foi o que viabilizou o grande salto econômico e social na China, na Índia e mesmo no Brasil do nacional-desenvolvimentismo destruído pela ditadura.
Os governos posteriores à ditadura militar tiveram a chance de rever o modelo econômico do neoliberalismo, adaptando-o e reduzindo-lhe o impacto socialmente destrutivo, e não o fizeram. Antes, a ele aderiram, equivocadamente supondo que políticas sociais tópicas e assistencialistas, compensatórias, como a do bolsa-família, seriam suficientes para atenuar os danos sociais de uma economia socialmente iníqua. Na verdade, o Bolsa Família, na versão petista, foi um recurso político inevitável para assegurar a sobrevivência dos pobres, mas também das iniquidades da economia neoliberal, sem enfrentá-la. Sem propor um novo modelo econômico baseado no primado do social, o do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.
Uma das brechas, com base na própria legislação legada pelo regime militar, poderia ter sido a reforma agrária ampla, o favorecimento prioritário da agricultura familiar no confronto com o favorecimento do agronegócio milionário e assistido. O reconhecimento das ocupações agrícolas como legítimas profissões da economia moderna. Reconhecimento, também, de que a propriedade privada da terra e, eventualmente, de seus usos comunitários, é forma social diversa da propriedade capitalista, que não se confunde com ela. Com base na rica experiência social da Pastoral da Terra, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil já o havia assinalado em seu documento “Igreja e Problemas da Terra”, de fevereiro de 1980.
A agricultura familiar é dotada de rico capital social, no mais amplo sentido da palavra, um germe fecundo de transformação social com base num legado antigo: tecnologia tradicional, cultura aberta à absorção de inovações tecnológicas apropriadas a um mais racional uso do solo, do trabalho e dos recursos naturais, cultura comunitária e familiar preservadora da equidade e do bem-estar no que é a célula-mãe dos nossos mais importantes valores sociais. Como o da solidariedade e o da religião de família. Na verdade, o único Brasil que deu certo após o fim da escravidão.
As próprias esquerdas nunca valorizaram essa tradição da sociedade brasileira porque a desqualificaram e minimizaram no confronto com a suposta superioridade histórica da produção coletiva, da fábrica e do proletariado industrial. Nem se deram conta de que a sociedade brasileira caminha para a realidade do proletariado mínimo. Mesmo na cultura canavieira, que há alguns anos empregava milhares de trabalhadores boias-frias e temporários, com salários miseráveis, o suposto e louvado proletariado rural já não tem emprego. Esses trabalhadores foram todos substituídos por tecnologia sofisticada.
Assim como já não há operários em algumas fábricas, já não há operários em vários setores da agricultura, mesmo no corte de cana. Nem o tratorista. Tudo automatizado, com equipamentos tratados com o cuidado que os boias-frias nunca receberam, tratados como descartáveis, baratos e substituíveis.
IHU On-Line - Intelectuais de várias áreas alertam não só para a crise sanitária, econômica, social e política, mas também para a crise psíquica agravada em função dos efeitos da pandemia, com crescimento do medo, do desespero, da insegurança e da raiva. O senhor, inclusive, destacou o crescimento da frustração no Brasil pós-crise pandêmica, na última entrevista que nos concedeu. Há espaço para a esperança diante desse quadro? Pensando na realidade do nosso país, como podemos construir a esperança?
José de Souza Martins - Pessoas em situação de grave adversidade social e pessoal, em diferentes sociedades, têm sido capazes de compreender a brutalidade da situação adversa e têm sido capazes de reinventar a sociedade e de reinventar-se.
Crise psíquica é sobretudo um problema da classe média, a que tem mais a perder com os efeitos econômicos da insegurança social. Nem toda classe média está sujeita a ela. É uma modalidade de crise pessoal que expressa a crise social dos valores e das relações comunitárias e de família. Valores e relacionamentos frágeis na classe média, em países como o nosso, a classe tem como marca o individualismo. Uma classe social sem consistência e sem referências, capturada pelas falsas esperanças da sociedade de consumo e pelas ilusões de que a superação de problemas como estes de agora pode ser conseguida pela compra da prosperidade, da vida e da felicidade. Há igrejas oferecendo essas mercadorias a bom preço.
Nessa perspectiva, com dinheiro, tudo se resolve. O problema é que com o desemprego e o abandono fica difícil encontrar saídas sem dinheiro. No capítulo das crises, nada se compra a crédito. Um dos mais dolorosos aspectos da exclusão social e suas decorrências, na sociedade do dinheiro, é a perda do crédito, de que resulta a perda da credibilidade, o derretimento da identidade pessoal e social.
É essa classe que define a pauta de diálogo político do governo atual. A classe média é incapaz de ter uma consciência social superadora de situações como a de agora. Ela tende a ser conformista e cúmplice dos poderes. Historicamente, tende para o autoritarismo político e o fascismo da falsa segurança compensatória. Foi assim na Alemanha nazista, na Itália fascista, nos EUA macartista e está sendo assim no Brasil bolsonarista. Certamente, há muitas exceções na classe média. Estou me referindo a uma tendência típica que, nas situações críticas, amortiza a consciência social.
É claro que os pobres, que não têm os meios e as concepções da classe média, estão sendo duramente penalizados com a crise. Mas suas enormes dificuldades para assegurar a sobrevivência cotidiana, muitas vezes na rua, sem teto, não lhes permite a consciência dos distúrbios psíquicos nem lhes permite tê-los. Distúrbios psíquicos são interpretações de comportamento, são definições de alguém pelo outro, geralmente próximo, no seu grupo de referência, não raro na própria família. Erving Goffman, sociólogo canadense, fala em conspiração alienativa contra alguém que se desvia do costumeiro e do desejado. Nos próprios grupos sociais, mesmo na família, há valores de excludência social que culminam no abandono de quem neles se enquadra. Não é incomum que, nesses casos, pais abandonem filhos ou filhos abandonem pais.
Com isso às vítimas não resta senão a alternativa da ressocialização em estruturas sociais residuais, as do abandono. Pode-se ver, entre os moradores de rua de grandes cidades, como São Paulo, a reinvenção da solidariedade social, ainda que na miséria, e a inovação de formas sociais de convivência autoprotetiva. Isso, a classe média não seria capaz de fazer, porque não lhe é própria a inventividade social, a que decorre dos desafios da anomia social e das situações socialmente patológicas.
O que genericamente se define como elite é outra coisa. A crise não lhe impõe carências nem distúrbios psíquicos. Nem mesmo o sentimento de culpa. Tampouco é ela capaz de desenvolver uma consciência social de carência de superação da situação adversa. Isso implica em uma revolução econômica, numa crítica consistente do modelo econômico que vem sendo aplicado aqui, com muito mais virulência no governo de Bolsonaro. Um governo que se duplicou: Bolsonaro é o comissário político do autoritarismo e dos desmandos destrutivos na área das questões sociais. Guedes é o todo-poderoso comissário da economia neoliberal, que pressupõe a intocabilidade e o primado da maximização dos lucros. Concepção ideológica de que não é essa orientação a responsável pelas tragédias sociais. Ao contrário, supostamente produziria, automaticamente, as correções sociais para os desarranjos que causam. A penalização dos países do Terceiro Mundo com as consequências dessa economia do prejuízo social economicamente lucrativo é bem indicativa de que os pressupostos de Friedman e da escola de Chicago são receitas de enriquecimento sem limite para os poucos e poderosos. A própria miséria e o autoritarismo político acabam assegurando as condições da preservação da ordem econômica.
Os poucos sinais de inovação social criativa, de emergência, são os que vêm dos mais desvalidos dentre os desvalidos. Que são também os únicos capazes de reconhecer que a sociedade desmoronou, ao menos para eles, que não há o que esperar nem dos partidos nem dos governos nem dos messianismos ideológicos oportunistas.
Isso pode ser observado, ainda uma vez, entre moradores de rua de São Paulo e de outros lugares. Uma cidade utópica está sendo inventada nas ruas, longe da concepção tradicional de casa e residência, de emprego, de ascensão social. Uma cidade revertida aos grandes e belos valores da solidariedade comunitária de tipo tradicional. São os portadores da consciência da exclusão social, não a das pastorais sociais e dos movimentos sociais baseada na premissa insuficiente de que a solução estaria na inclusão tópica resultante de direitos de tipo estamental. Do tipo das que “consertam” as anomalias mediante a institucionalização da esmola e não mediante a transformação profunda e intencional da realidade. É claro que a solidariedade dos desvalidos indica competência localizada para enfrentar as adversidades imediatas. Mas não revoluciona a sociedade na escala necessária a incluir todos numa sociedade nova. Não se trata de uma nova esperança, mas de outra esperança.
IHU On-Line - Como superar a "dinâmica da alienação moderna, o poder da falsa consciência", com a qual o senhor se preocupa?
José de Souza Martins - Hoje se sabe que a consciência verdadeira e reveladora das contradições de que resultam os problemas sociais é uma consciência tópica e temporária. Ocorre espontaneamente apenas em algumas situações históricas e não em outras.
A sociedade é movida por contradições, acobertadas por novas modalidades de alienação sempre que as relações sociais são reordenadas com a superação insuficiente e inacabada das contradições daquele momento histórico. Nesse sentido, a alienação é o principal problema histórico e político da modernidade, é o principal desafio das esquerdas, também elas desafiadas a reverem-se criticamente e a atualizar sua consciência social e política. Desafio que nem sempre compreendem. É característico da alienação de esquerda ter respostas partidárias, mas não ter perguntas sociais e políticas que questionem concepções e receitas costumeiras.
As esquerdas desenvolveram sua concepção peculiar de alienação na modernidade, reificando-a, como se alguns por convicção partidária e ideológica fossem imunes a ela. Dificilmente, um militante de esquerda aceitará que Karl Marx era um alienado típico de sua classe social e de sua época. Mostrou-o na relação problemática com as filhas, exposta em sua correspondência. Mostrou-o, também, no relacionamento com Helena, a serva doméstica de sua casa, com quem teve um filho que foi assumido por Engels e por Engels amparado. Mostrou-o, ainda, na sua reação depreciativa de Mary Burns, companheira de Engels, quando recebeu a notícia de que ela havia falecido e achou que Engels se preocupava demais com uma pessoa como ela.
A operária irlandesa, analfabeta e católica, que mostrara a Engels, um industrial, o que era e em que condições vivia o operariado, levando-o a percorrer e conhecer os cortiços de Manchester, foi a grande auxiliar de pesquisa do autor em “A condição da classe trabalhadora na Inglaterra”. Fonte decisiva da compreensão de Marx do que era o operariado de carne e osso, bem diferente do seu operariado reduzido explicativamente ao teórico. O operariado de Marx criava a possibilidade política da revolução. Não obstante, criava, também, a realidade social problemática do presente, do repetitivo e da alienação, da invisibilidade do historicamente possível.
Não tem sido estranho à postura das esquerdas de classe média o pressuposto de que ter o poder desaliena. O que aconteceu aqui no Brasil, com o petismo, é bem indicativo de imensa incapacidade teórica de compreender a totalidade do processo social e político como processo histórico, que precisa ser decifrado não só nas soluções que propõe, mas também nos problemas que cria para a própria esquerda. Não compreender que a mítica classe operária da região do ABC estava parindo uma classe média conformista e consumista, antiproletária, foi um erro do Partido dos Trabalhadores. Erro decorrente da impropriedade da teoria e de sua conexão com a prática.
IHU On-Line - Há bastante tempo o senhor alerta para a frustração política à esquerda e à direita e, na entrevista que nos concedeu em abril de 2020, disse que "há grande possibilidade de Bolsonaro e do bolsonarismo conseguirem a reeleição em face da divisão e das incertezas do eleitorado" nas eleições de 2022. Como está lendo o cenário político neste momento, tendo em vista as recentes eleições municipais?
José de Souza Martins - Há indícios de que os partidos propriamente democráticos já tomaram alguma consciência do que representam Bolsonaro e o bolsonarismo como riscos à democracia no Brasil. Além do que representam os recentes percalços eleitorais e políticos de Bolsonaro na sua pretensão de permanecer no poder. Não é pouco que, no geral, seus aliados tenham sido derrotados nas eleições municipais de 2020. Algumas derrotas foram poderosamente simbólicas: em São Paulo, em Macapá, no Rio de Janeiro.
No Rio, a prisão do prefeito, por ele apoiado, completa a significativa atenuação do que parecia um trunfo em 2018, sua suposta capacidade de despolitizar o eleitorado e arrastá-lo às urnas com base em sua fúria antipetista e em sua ideologia meramente antagônica e satanizante. Não será estranho se, justamente o falsamente político de sua ascensão à Presidência, produza um efeito bumerangue até 2022, especialmente se as oposições conseguirem se articular numa frente democrática de centro-esquerda e conseguirem escolher um candidato com carisma e perfil republicano imaculado.
No entanto, os eleitores ainda não deram vigorosas demonstrações de consciência dos dilemas deste momento histórico. Nas eleições municipais recentes, o eleitorado indicou que está revendo criticamente as limitações do bipolarismo que nos vem dos tempos do PT e que foi decisivo na irresistível ascensão política de Jair Messias. Se os partidos de centro e de esquerda conseguirem definir uma estratégia alternativa para escapar do pendularismo político, definir uma doutrina de desenvolvimento econômico e social possível e democrático e encontrar uma liderança política autêntica, democrática e popular, o bolsonarismo poderá não sobreviver. A população já vem dando claros sinais de que o eleitorado majoritário cometeu um erro em 2018.
IHU On-Line - Desde a eleição do presidente Bolsonaro, intensificou-se a discussão sobre a construção de uma frente ampla em oposição ao presidente. Alguns sugerem que ela seja organizada somente à esquerda, outros defendem que seja mais ampla, englobando o centro e, também, partidos da direita. Quais são os limites e potencialidades dessas propostas e que saídas vislumbra para superar o bolsonarismo?
José de Souza Martins - As facções da esquerda brasileira, com orientação teórica obsoleta, desatualizadas em relação ao que é a sociedade contemporânea e, sobretudo, a sociedade brasileira, não têm condições de ganhar as eleições e de governar sem fazer um jogo político que inclua o centro. Isso seria muito menos arriscado do que aconteceu com as alianças e concessões que viabilizaram a eleição de Lula e do PT em 2002. Para governar, o partido teve que fazer as piores alianças, com o que havia de mais atrasado na política brasileira. Satanizou os partidos democráticos de centro. Quando acordou, descobriu que havia criado Bolsonaro e a extrema direita que o acompanha por raiva política e por oportunismo.
O fim do regime militar, não obstante, na época, as crescentes manifestações políticas pelo fim da ditadura, ocorreu porque uma facção da própria coalizão de apoio partidário ao regime apoiou a eleição de Tancredo Neves, candidato da abertura política.
Aliás, temos uma larga tradição nesse sentido. Como observou Euclides da Cunha no início do século XX, o império fora governado pelo movimento pendular entre Partido Conservador e o Partido Liberal. Os liberais propunham reformas sociais, como a abolição da escravatura. Mas eram os conservadores, quando no poder, que as viabilizavam.
A Revolução de Outubro de 1930, que pôs Getúlio Vargas no poder, só se viabilizou criando um regime político que associou os militares exaltados do Tenentismo com os setores esclarecidos das oligarquias regionais.
IHU On-Line - Na cena política, quais são os nomes razoáveis que poderiam encabeçar um projeto de mudança e oposição ao que existe hoje?
José de Souza Martins - Os nomes razoáveis são muitos e os excelentes também. A questão não é essa, é a de encontrar os nomes viáveis capazes de reaglutinar os brasileiros em torno de um projeto democrático de nação, um projeto de desenvolvimento econômico que seja também de desenvolvimento social, includente, que assegure lugar para todos na história do nosso presente e do nosso futuro, o de um Estado que retome e faça reformas sociais, que diversifique as elites e nelas proponha o desafio do compromisso com os direitos dos outros para que possam legitimar os próprios direitos, não raro desproporcionais ao que recebem do país.
Alguém que na condução de uma reforma do Estado brasileiro compreenda que deve ela alcançar as forças armadas, especialmente o Exército, para acabar com a concepção autoritária de que os militares estão aí para tutelar a sociedade e o povo. De modo que compreendam que o povo não é o inimigo da nação e menos ainda que a nação precisa de liberdade vigiada.
IHU On-Line - O que a presidência de Joe Biden nos EUA representa para o mundo, e particularmente para o Brasil, neste momento, em comparação com o governo Trump? Vislumbra alguma mudança radical, considerando o quadro político do presidente eleito? Que leitura faz das indicações de Biden até o momento?
José de Souza Martins - Para nós, a derrota de Trump e de sua concepção personalista e alucinada do poder e do lugar dos Estados Unidos no mundo, é também a derrota de Bolsonaro e do bolsonarismo, excrescências de uma geopolítica de aglutinação de todos os oportunismos antissociais que transformaram o poder, no Brasil, no instrumento de um regime de subserviência. Biden e os democratas não têm motivos nem faz parte de sua tradição o favorecimento do Brasil no que quer que seja. Mas o não desfavorecimento já seria uma bênção.
IHU On-Line - Quais são os temas urgentes a serem discutidos no Brasil no ano de 2021?
José de Souza Martins - Os da sobrevivência. Se o Brasil sobreviver à covid-19 e aos desmandos de Bolsonaro e de seus acólitos, o Brasil terá que discutir a sua reconstrução como nação democrática. Para isso, os partidos, e as esquerdas em especial, terão que superar suas concepções toscas a respeito do que somos, do que e por que não temos podido ser e do que podemos ser se superarmos nossas limitações de entendimento e de ação.
IHU On-Line - O que vislumbra para o primeiro semestre deste ano que se inicia?
José de Souza Martins - Em minha agenda, anotei, no dia 18 de março, que aqui em casa minha família se confinara e só sairia do confinamento quando fôssemos vacinados e já fosse segura a eficácia da vacinação. Portanto, 2020 terminara no dia 17 de março. No dia 18, teve início 2021, ano cuja duração não será de doze meses. Poderá durar mais, provavelmente um ano e meio. Já estamos há 8 meses no ano de 2021.
O que resta desse ano anômalo não será diferente dos seus meses vividos até agora. Sobretudo porque o país é hoje governado por pessoas que não têm o menor senso de responsabilidade na gestão de uma sociedade em profundo estado de anomia, desregulada e desgovernada. O presidente da República insiste em desrespeitar normas sanitárias de Estado, essenciais à segurança da população. Na campanha eleitoral, o candidato a vice-presidente declarou que o objetivo do bolsonarismo seria o desmonte do Estado. Alegava fatores políticos incontornáveis de país alinhado com os interesses americanos. Não levava em conta que os EUA estavam sendo governados por um presidente fora dos eixos e fora dos marcos do próprio capitalismo de que a América é expressão e símbolo. Trump revelou-se um inimigo do capitalismo. Bolsonaro e o bolsonarismo, que o copiam, têm agido, na verdade, no sentido de tornar inviável o capitalismo no Brasil e manter o país na posição de republiqueta subalterna de outra nação.
IHU On-Line - Mas de que capitalismo se trata?
José de Souza Martins - Com Trump e Bolsonaro ou sem eles, o capitalismo subvertido pelo neoliberalismo da Escola de Chicago e das ideias de Milton Friedman, que nos penalizam e respondem pelas anomalias econômicas que desindustrializaram o Brasil e o transformaram num país produtor de commodities, com a pandemia e outras consequências, não tem condições de sobreviver. As potências europeias e asiáticas e Biden, pela América, têm declarado explicitamente que o modelo econômico já não corresponde à realidade econômica, ambiental, social e política de hoje. A covid-19 está funcionando como polarizador de consequências das irracionalidades econômicas do modelo.
O Brasil é particularmente visado pelas críticas que devem levar a um novo modelo, em que a questão ambiental terá uma função decisiva. A Amazônia é uma fábrica de oxigênio e o mundo já não terá como tolerar que esse patrimônio do mundo seja administrado por incompetentes que desenvolveram e aplicam um modelo econômico e político baseado no uso predatório da floresta, do subsolo e do solo.
É o modelo da destruição lucrativa. O modelo se configurou durante a ditadura militar, quando se consolidou um capitalismo anticlássico, baseado na associação entre o capital e a propriedade da terra, que no modelo clássico são antagônicos. Essa associação facilita e estimula o caráter predatório da exploração econômica, como estamos vendo. É um modelo que estimula o desenvolvimento de uma mentalidade rentista e anticapitalista no empresariado. Todo o sistema econômico foi contaminado.