Para a poeta, se, mesmo diante de tanta dor, não levarmos a esperança adiante, “não estaremos recebendo o valioso tesouro dos que nos precederam e nada transmitiremos a nossos descendentes”
Há quem diga que a poesia salva. Mas salva como? Para muitos é difícil imaginar essa saída no meio da guerra, da pobreza, da doença ou da fome. Há, ainda, outros que dizem que é a fé que salva. No fim das contas, na tradição cristã, nessa semana, celebramos aquele que morreu para nos salvar a vida e vencer a treva com luz. Mas salva como? Em famílias destroçadas pela peste e em outras sem ter de onde prover o sustento, é difícil compreender o lugar da fé. No entanto, ainda antes de reconhecermos que nessas situações limites é quase impossível manter a esperança, a escritora e poeta Maria Carpi nos provoca: “a esperança é conjuntamente herança e legado. Nós temos o duplo dever de levar adiante os anseios da esperança dos que nos antecederam e de a transmitir a nossos filhos”.
Talvez, o que Maria mostre, nessa entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, é que ter esperança é sobreviver. Para ela, essa esperança é o que nos faz humanos, e até por vezes fracos. Perder a esperança assim seria como perder nossa humanidade. “Não estaremos recebendo o valioso tesouro dos que nos precederam e nada transmitiremos a nossos descendentes”, completa. É por isso que insiste que “ter esperança é acreditar que o trigo será colhido apesar do joio e das intempéries. Promovendo os valores do ser humano, através da ética do cuidado, estaremos abrindo caminhos”.
E Maria Carpi reconhece que a vida não é um cândido paraíso. O mais curioso é que ela, a esperança, há de existir e nos fazer resistir nos piores dos purgatórios, nos fazendo capazes de reconhecer a dor e a dificuldade, mas com a capacidade de olhar além. “Temos de compartilhar as dores do mundo, ser solidários, sem nunca perder a alegria da coragem de viver”, sugere Maria. É por isso também que ela vê a esperança com muitas caras, jeitos e formas. “Quando um pai diz a um filho: tu és a minha esperança, ela se torna uma pessoa”, exemplifica.
E a poesia? E a fé? No fim das contas, elas salvam? Que relação hão de ter com a esperança? Na leitura da entrevista com Maria Carpi, há caminhos. Talvez, quando estivermos submersos em calvários pessoais, sejam eles quais e como forem, a poesia pode tirar esse gosto amargo de fel e nos fazer respirar. É sugestivo experimentar, por exemplo, a poesia de Maria Carpi, sendo lida calmamente, palavra por palavra, sentido o gosto e o tom de cada sílaba.
(...) Subir o amargor pelo caule
e depositá-lo na textura do fruto
doce. Volumando o dentro
contra as oscilações atmosféricas.
Volumando a espera do beijo
delator. Volumando a distância
de estarmos juntos. Volumando
a aspereza até a libertação.
E estar atento em escuridão
a que a lâmpada da alegria
aclare a miséria engolida (...)
É bem provável que, depois desse exercício, todo o mal ainda não tenha se esvaído. Porém, enquanto percorríamos essas poucas estrofes, respiramos. E, nesse caso, sim, a poesia nos salvou. Nos tirou de uma taquicardia e nos fez retomar o ritmo das batidas e capacidade de, ao menos, tentar ver além.
E a fé? Bem, quem sabe a poesia também não seja um caminho para reacender nossa fé, uma fé que encara a realidade e dureza do tempo em que vivemos e que nos encoraja a ter esperança. Maria também recorda que na tradição cristã há muitos caminhos para isso, como a própria experiência de Paulo de Tarso. Porém, a fé não é gêmea siamesa da religião. A fé que reacende a esperança pode ser acessada, como bem lembra a poeta, na calma e observação dos movimentos da natureza. “A natureza é cíclica, sempre se renova. Mesmo nas devastações, a semente eclode e reverdece a terra. Assim sucede conosco, nos fortalecemos também com as dificuldades. Basta lembrar os sobreviventes dos holocaustos”, sintetiza.
Maria Carpi (Foto: Diego Lopes)
Maria Carpi é poeta, escritora, professora, advogada e Defensora Pública. Entre os diversos Prêmios, obteve o Prêmio Revelação de Poesia/1990 da Associação Paulista dos Críticos de Arte por seu livro de estreia, Nos Gerais da Dor, depois traduzido por Brunello de Cusatis e editado na Itália por Morlacchi Editore, sob o título Nel Dolore Sconfinato. Os livros A Chama Azul, sobre Joana D’Arc (com tradução de Helena Ferreira) e O Herói Desvalido (edição bilíngue com tradução de Helena Ferreira e Sandrine Pot) foram publicados na França por Les Arêtes Editions, com os títulos La Flamme Bleue e Le Héros Malgré Lui.
Ainda foi Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente representado a Defensoria Pública e, depois, a OAB/RS. É membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul e representou, por dois anos, a Associação dos Escritores Gaúchos no Conselho Estadual de Cultura. Foi, ainda, a 64ª Patrona Da Feira do Livro de Porto Alegre.
IHU – Como a senhora define a esperança? Por que a esperança é tão importante, especialmente em nosso tempo?
Maria Carpi – As duas perguntas se entrelaçam.
Em princípio, a esperança não se define. Ela é essencialmente vivência. Diria que as três virtudes – fé, esperança, caridade – são caminho. Tanto no percurso de uma existência individual como na caminhada de um povo. Elas definem a saga da humanidade.
Quando um pai diz a um filho: tu és a minha esperança, ela se torna uma pessoa. O bem comum e a justiça são corolários da esperança coletiva. A paz entre as nações será o rosto da promessa.
IHU – Quais os desafios para alimentarmos a esperança nesses tempos? Como, nas práticas cotidianas, podemos construir a esperança?
Maria Carpi – A esperança é conjuntamente herança e legado. Nós temos o duplo dever de levar adiante os anseios da esperança dos que nos antecederam e de a transmitir a nossos filhos, nas práticas cotidianas de cidadãos inseridos numa sociedade justa e fraterna.
IHU – Imaginemos uma situação: o sujeito perde parente e amigos na pandemia, tem dois empregos para sustentar a família e perde um, vê a renda cair pela metade e não consegue manter a casa como vinha mantendo, apesar de toda dificuldade, e enquanto sua qualidade de vida despenca, o preço de itens básico vai para as alturas. Como podemos chegar nesse sujeito e o motivar, animar a buscar essa “fortaleza no desvalimento”?
Maria Carpi – Através não apenas de palavras, mas de trabalho contínuo tanto para a construção de melhorias quanto aos direitos básicos, de saúde, moradia, trabalho, educação. E nos casos de endemias e desastres ecológicos, organizar trabalhos assistenciais condignos à dignidade das pessoas. O importante é fazermos trabalhos de prevenção. Sermos verdadeiramente fraternos.
IHU – Em um dos seus textos, “A esperança contra a esperança”, a senhora retoma a esperança segundo Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios. De que esperança ele fala?
Maria Carpi – Quando eu escrevi o livro Abraão e a Encarnação do Verbo (Editora AGE, 2009), durante um largo tempo meditei no que disse o apóstolo Paulo, que o patriarca exercia a esperança contra a esperança. Isso resultou num livro de poesia e num artigo com o mesmo nome. Ela não consta do dicionário, mas na sua vivência.
O livro de poesia está ainda no prelo e o artigo foi publicado no jornal ZH. Ainda não esgotei meu pensamento e convido os leitores a exercer seu raciocínio poético sobre o assunto, debruçando-se sobre o patriarca das três religiões.
IHU – Não ter esperança é perder a humanidade?
Maria Carpi – Certamente. Não estaremos recebendo o valioso tesouro dos que nos precederam e nada transmitiremos a nossos descendentes.
IHU – Em que medida um olhar para a natureza pode ser um caminho para nos acender a esperança?
Maria Carpi – A natureza é cíclica, sempre se renova. Mesmo nas devastações, a semente eclode e reverdece a terra. Assim sucede conosco, nos fortalecemos também com as dificuldades. Basta lembrar os sobreviventes dos holocaustos.
IHU – Dentro da tradição cristão, essa semana da Páscoa é tida como de introspecção, silêncio e meditação. A mística é viver a dor do Cristo que morre na cruz, mas que ressuscita e faz a vida vencer a morte. Mas hoje, em tempos de peste e guerra, essa mística ainda mobiliza ou está esvaziada como quase tudo na Modernidade?
Maria Carpi – O importante da mística cristã é a ressurreição. O túmulo está vazio. Temos ainda um longo aprendizado com a afirmação: “Não procureis entre os mortos o que está vivo”.
IHU – Vivemos também um tempo de individualismos. Teríamos perdido uma ética de cuidado?
Maria Carpi – Em meu artigo sobre o assunto, afirmo que cuidar de uma pessoa é cuidar do universo. Felizmente a importância da ética do cuidado está acima das leis ilegítimas e da ganância do lucro e muitos fizeram dela a regra de suas vidas. O ordenamento bíblico de “amar o próximo como a si mesmo” é uma afirmação da ética do cuidado.
IHU – Como uma ética do cuidado pode se converter em adubo para que a esperança germine? Ou essa relação é descabida?
Maria Carpi – Sim, a relação do exercício da ética do cuidado propicia à semente germinar. Ter esperança é acreditar que o trigo será colhido apesar do joio e das intempéries. Promovendo os valores do ser humano, através da ética do cuidado, estaremos abrindo caminhos.
IHU – Qual a importância de pensarmos na natureza, não a partir de éticas e conceitos ecologizantes, mas a partir de uma ética do cuidado?
Maria Carpi – Os conceitos egoístas e ideologias de exclusão social não são morais nem éticos. A ética do cuidado faz crescer e se fortificar uma sociedade mais fraterna.
IHU – Se tudo está interligado e cuidar de alguém ou de algo é cuidar do mundo, como defendem muitos autores, como cuidar de quem cuida?
Maria Carpi – Os profissionais da saúde exercem um apostolado de missão e de cuidado. Há a necessidade de melhores condições para exercer essa tarefa. É uma questão de políticas públicas em tempos normais.
E cuidar de quem cuida é o ápice da ética. A começar pela família, cuidar dos pais envelhecidos.
IHU – A pandemia e a guerra podem ser lidas como manifestações da falta de uma ética do cuidado?
Maria Carpi – Não podemos aliar o vírus da pandemia com as guerras. A primeira é uma questão de saúde e será vencida com o progresso da ciência.
As guerras surgem de insanos desacertos da humanidade, a começar pela indústria das armas e a ganância de poder.
Temos o dever e a missão de sermos, com nossas vidas, como afirma Francisco de Assis, “instrumentos de paz”.
IHU – Como sorrir, sem desconsiderar as dores do mundo e as nossas próprias dores?
Maria Carpi – Temos de compartilhar as dores do mundo, ser solidários, sem nunca perder a alegria da coragem de viver.
A alegria da esperança contra a esperança, de sempre renascer, como pessoas e comunidade.
A alegria é uma ressurreição diária.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Maria Carpi – Acrescento um poema:
A alegria não é um improviso,
um mote, um arrancar-se,
mas uma constância. Vários
ciclos de caimento, um poço,
uma lavoura de constância.
Subir o amargor pelo caule
e depositá-lo na textura do fruto
doce. Volumando o dentro
contra as oscilações atmosféricas.
Volumando a espera do beijo
delator. Volumando a distância
de estarmos juntos. Volumando
a aspereza até a libertação.
E estar atento em escuridão
a que a lâmpada da alegria
aclare a miséria engolida.
Estar atento em mansidão
a que a violência da alegria
eternize a duração da chaga.
E num repente cair, soltar-se,
sem a memória do provimento.
Do livro O Herói Desvalido, Editora Bertrand do Brasil.
Nos Gerais da Dor, Vidência e Acaso, Desiderium Desideravi e Os Cantares da Semente (Ed. Movimento/RS);
O Caderno das Águas (WS Editor/RS);
A Migalha e a Fome (Ed. Vozes/RJ);
A Força de Não Ter Força (Ed. Escrituras/SP);
As Sombras da Vinha, O Herói Desvalido e O Perdão Imperdoável (Ed. Bertrand do Brasil/ RJ);
Abraão e a Encarnação do Verbo, A Chama Azul, O Senhor das Matemáticas e Tudo o que resta está por vir (Ed. AGE/RS);
O Cego e a Natureza Morta, O Desvario do Pólen e Uma Casa no Pampa (Ed. Ar do Tempo/RS);
Tudo o que é belo é efêmero (Editora Belas Letras);
Uma Casa no Pampa (Ed. Ar do tempo);
O que resta está por vir (Editora AGE);
O Quebra-Galho e O Faz de Conta (Editora Ardotempo).