22 Março 2008
Ricardo Silvestrin é poeta, músico, cronista, ensaísta e, em breve, lançará um livro de contos. Além disso, é formado em Letras, pela UFRGS, colunista do jornal Zero Hora e lançou, com os poETs (formado também por Alexandre Brito e Ronald Augusto), o CD “Música legal com letra bacana”, pela gravadora YB, de São Paulo.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, esse poeta, que trabalha como publicitário na GlobalComm, comenta sobre a ligação entre poesia e letra de música, mas destaca que, antes de mais nada, ele e os poeEts desempenham o papel de músicos, de compositores, ou seja, eles lidam com música e letra e não com poesia e música. A poesia, Silvestrin destaca, está em seus projetos literários. Os poETs, aliás, já preparam material para um novo trabalho, que pretendem apresentar pelo Brasil e mesmo no exterior.
Silvestrin aproveita para falar também sobre a diferença entre poesia e publicidade, lembrando das funções poética e apelativa de Roman Jakobson: “na publicidade, a função poética é um acessório, um meio para servir à função apelativa”. Ao mesmo tempo, lembra de seu primeiro contato com o haicai, uma das formas poéticas da qual é especialista, de suas influências, dos professores que teve cursando Letras na UFRGS e que o instigaram a ter curiosidade pela teoria literária, uma fonte também para a criação.
Entre os livros de Silvestrin, destacam-se Bashô um santo em mim (Porto Alegre: Tchê, 1988); Quase eu (Porto Alegre: Secretaria de Cultura de Porto Alegre; Coleção Petit Poa, 1992); Palavra mágica (Porto Alegre: Massao Ohno/Instituto Estadual do Livro, 1994); É tudo invenção (São Paulo: Ática, 2003); Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (2. ed. Salamandra, 2004); Ex, peri, mental (Porto Alegre: Ameopoema, 2004); e O menos vendido (São Paulo: Nankin Editorial), que recebeu o prêmio Açorianos de melhor livro de poemas de 2007.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você poderia falar um pouco da interseção entre poesia e letra de música, trabalho que realiza com o grupo poETs. Acha que elas contêm o mesmo tipo de tratamento de linguagem ou há muitas diferenças?
Ricardo Silvestrin – A intersecção entre poesia escrita ou falada e letra de música está na construção do verso. Isso quando o poema é escrito em versos. Mas são estruturas criativas diferentes. Uma é para ser lida ou falada. Outra para ser cantada.
Letra de música tem esse nome porque é parte da música. Tem a harmonia da música, a melodia da música, o ritmo da música, o pulso da música, o arranjo da música, a interpretação da música e a letra da música. Nesse ambiente estrutural se dá a significação como um todo entre a palavra e os outros elementos da composição musical. Já a palavra no papel ou falada interage com outros elementos que são diferentes. Se no papel, o corte, a forma visual uma vez que a letra é também um desenho. Se falada, com os ritmos de fala. O ritmo, a melodia de fala ou do texto escrito para ser lido ou falado não são os mesmos numa estrutura de canção para ser cantada. Essas diferenças são estruturais, não são uma questão de achar ou não. Uma cadeira tem uma estrutura diferente da de uma mesa, embora ambas tenham pernas, possam ser feitas de madeira, etc. Também não se trata de critério de valor. O poema não é uma forma mais culta ou mais elevada do que a letra de música. Nada disso. Ambas podem ser artes praticadas com elevado grau de criatividade. Nos poETs, criamos canções. Ou seja, letra, harmonia, melodia, arranjo. Fazemos nos poETs um trabalho de músico, de compositor. Somos três compositores que criam juntos. Não estamos fazendo um trabalho de música e poesia. Estamos criando música e letra. Nossos poemas estão nos nossos livros. Nossas letras, nos nossos cds de música. A cultura contemporânea, por valorizar mais a poesia do que a letra, costuma chamar um grande letrista de poeta. Mas é o suficiente chamá-lo de grande letrista. Poeta não é elogio. É o nome dado a quem escreve poesia. E letrista, a quem escreve letra. E ainda tem quem faça as duas coisas.
IHU On-Line – Tendo escrito já livros infantis, há diferença entre escrever para adultos ou para crianças, ou o trabalho com a linguagem é o mesmo?
Ricardo Silvestrin – Já editei quatro livros de poesia para crianças. E seis de poesia para adultos. Em ambos os casos, a minha primeira tarefa foi a de escrever um bom poema. Ou seja, um texto criativo, com surpresas de linguagem, dentro de um estilo interessante de construção do verso. A diferença nos poemas para crianças está em não fechar a porta do entendimento. Não buscar temas exclusivamente adultos. Evitar o texto que precisa de uma leitura prévia ou de um conhecimento que uma criança provavelmente não teria. O que ocorre é que vários dos poemas que escrevi para crianças também são bem recebidos por adultos. E vários dos poemas que escrevi para adultos também são bem recebidos por crianças. O que une os dois é o poema.
IHU On-Line – Além de trabalhar com poesia, você trabalha com publicidade. Num estudo sobre poesia concreta, Antonio Risério afirma que ambas são completamente distintas. Na sua opinião, há traços de aproximação entre as duas linguagens?
Ricardo Silvestrin – Tanto na poesia, na letra de música e na poesia concreta, quanto num texto publicitário, há uma parte do trabalho que é da função poética da linguagem, para usar um termo de Roman Jakobson (1). Contudo, na poesia, na letra e na poesia concreta, a função poética, ou seja, selecionar e combinar palavras para se obter um efeito criativo (estranho), é a função que torna o texto possível. Ele existe a partir da função poética; é ela a função principal. Já na publicidade, quem manda é a função apelativa. O objetivo do texto é persuadir. É fazer alguém comprar alguma coisa (mesmo que essa coisa seja uma idéia). Então, na publicidade, a função poética é um acessório, um meio para servir à função apelativa. A publicidade se vale das artes, da música, do cinema, do vídeo, da poesia, da letra, dos atores, para vender alguma coisa. A poesia concreta é poesia, pois usa os elementos de estranhamento da palavra, sendo a palavra ao mesmo tempo um som, um sentido e um desenho, mas concretiza – a forma realiza criativamente o conteúdo. Não é uma forma que comporta um conteúdo como na poesia não concreta. E a publicidade? Pode se valer da poesia concreta e de qualquer arte como meio para a persuasão. Mas também pode prescindir de qualquer artifício do mundo das artes se já tiver um argumento de persuasão que se baste sozinho. Por exemplo: carro zero com entrada de um real.
IHU On-Line – Quais são seus próximos projetos, com os PoETs ou individualmente? Pode falar um pouco sobre o livro de contos que prepara?
Ricardo Silvestrin – Os poETs vão lançar um cd novo, com um repertório das composições que não entraram no nosso primeiro cd e mais outras tantas que compusemos de lá para cá. Seguimos também fazendo shows tanto no Rio Grande do Sul quanto no resto do Brasil e até onde conseguirmos chegar fora do país. Individualmente, tenho um livro novo de poemas, um romance, a reunião dos meus artigos da minha coluna na Zero Hora. Também tenho projetos de livros de ensaios. O livro de contos vai sair em abril. Trabalhei de um tempo para cá nesse projeto. São 17 contos. A prosa é uma coisa nova para mim. Quem leu até agora gostou muito.
IHU On-Line – No final de 2007, você foi premiado com o Açorianos de Literatura com o livro O menos vendido. O título é uma crítica ou uma ironia? Por que, na sua opinião, a poesia representa ainda “menos vendagem” no mercado? Isso seria bom para o poeta ter mais liberdade?
Ricardo Silvestrin – Não é uma crítica nem uma ironia. É o nome de um poema, que, inclusive, está na capa do livro:
O menos vendido
Custa muito
pra se fazer um poeta.
Palavra por palavra,
fonema por fonema.
Às vezes passa um século
e nenhum fica pronto.
Enquanto isso,
quem paga as contas,
vai ao supermercado,
compra sapato pras crianças?
Ler seu poema não custa nada.
Um poeta se faz com sacrifício.
É uma afronta à relação custo-benefício.
Acho que ele explica melhor toda a questão.
Quanto à vendagem, eu já vendi 50 mil livros, todos de poesia. Há um número enorme de sites, blogs, comunidades do orkut, todos ligados à poesia. Criar com as palavras é um dos prazeres do ser humano. O que ocorre é que a cultura colocou a poesia, como conceito, não no lugar da criação com a palavra, que é o seu lugar de fato, e sim no lugar da emoção. Pra retomar o Jakobson, no lugar da função emotiva da linguagem, no lugar do eu. A escola reproduz esse equívoco. Mas trabalhei muitos anos em escola. Fui professor de quinta até oitava. Também lecionei no pós da UniRitter sobre poesia para um grupo de alunos com formação variada, letras, história, música... E faço seguidamente cursos de poesia na Feira do Livro de Porto Alegre. Em todos esses ambientes, com públicos dos onze anos em diante, passando pelos formados em terceiro grau, com pós e mestrado, a descoberta é sempre a mesma. Todos tanto admiram o trabalho criativo com a palavra, que não enxergavam como descobrem em si mesmo esse prazer de linguagem que sempre os acompanhou. Então, há uma miopia da cultura frente ao texto de poesia. Isso distancia do consumo. Mas não há um distanciamento da função poética da linguagem. Isso seria impossível. Pois é pela linguagem que nos tornamos humanos. E criar com a linguagem (a função poética) é um prazer de todos, independe de classe social ou grau de instrução.
IHU On-Line – Em relação à sua obra poética, quais mudanças destaca nela, com o passar dos anos. Entende que haja fases? Poderia especificar?
Ricardo Silvestrin – Sempre tive um interesse por descobrir possibilidades criativas no universo do poema. É uma curiosidade criativa. Por isso fiz Letras. Para entender cada vez mais o que já sabia fazer. Nesse sentido, meu trabalho é o mesmo desde o primeiro livro. Paralelamente a essas descobertas, tem o aprendizado do verso. E as descobertas, por usa vez, alargam os parâmetros do verso que venho trabalhando. Não vejo fases. Isso seria supor abandonar o que ficou para trás. Não ando só para frente. Ando para todos os lados possíveis. Ando para trás também. E esses lados são infinitos. Não vai dar tempo de andar por todos.
IHU On-Line – Na sua formação, quais foram os autores mais importantes? O que continua lendo sempre com o passar dos anos?
Ricardo Silvestrin – O mais importante é o Manuel Bandeira (2). Depois que o li, resolvi escrever poesia de livro, para ser lida. Antes, pensava em fazer uma banda de rock pesado, como o Deep Purple (3) (isso aos quinze anos). Depois, todos os modernistas: Mario de Andrade (4), Oswald, Cecília Meireles (5), Quintana (6), Drummond (Leia a Revista n. 232 sobre o autor), Raul Bopp (6). Depois, os concretistas: Haroldo de Campos (7), Augusto de Campos, Décio Pignatari (8). Depois, Ferreira Gullar (9). Aí, uma segunda descoberta como a de Bandeira: Chacal (10). Foi uma aproximação com a linguagem e a visão de mundo mais parecida com a da minha geração. A seguir, Alice Ruiz e Leminski (11). Também gosto muito da poesia do Nei Duclós, do João Angelo Salvadori, do Alexandre Brito, do Ronald Augusto. Teve um momento do haicai de Bashô. E hoje, a poesia chinesa; tem um livro lindo com traduções da Cecília Meireles. E ainda Arquíloco, Marcial, Verlaine, enfim, há muito ainda por ler e descobrir.
IHU On-Line – Você é um dos principais poetas da tradição brasileira a escreverem haicais. Quais poetas foram suas principais referências desde a linhagem original, japonesa?
Ricardo Silvestrin – Antes de escrever haicai, achava interessante, como uma das realizações possíveis, o poema curto. Quintana tem ótimos poemas assim. No meu primeiro livro, Viagem dos olhos, tem também poemas de dois versos, de três. Um amigo chamou um desses poema de haicai, termo que tinha me passado batido, mesmo já tendo o lido. Ele me mostrou a biografia do Bashô, escrita por Leminski. Achei legal. Li uma antologia do Bashô, um tradução portuguesa, chamada O gosto do orvalho solitário. A partir daí, li vários estudos sobre o haicai, entre eles os de Haroldo de Campos e Otávio Paz. Li antologias com haicais de Issa, Buson. Li os tankas de Takuboku Ishikawa e de Machi Tawara. Lancei um livro de haicais chamado Bashô um santo em mim, e também haicais nos meus livros Quase eu e Palavra mágica. Um momento importante para aprofundar o assunto foi participar da Lista de Haicai, na internet, promovida pelo site Caqui. O contato com as idéias do Paulo Franchetti recolocou algumas questões sobre o entendimento desse gênero. O que concluí sobre o tema está no meu artigo “Os dez desmandamentos do haicai”, que pode ser lido no meu site e no do Caqui. Muitos poetas já escreveram e publicaram haicais: Borges (Leia a edição n. 193 da Revista IHU On-Line sobre o autor), Benedetti, Guimarães Rosa (Leia a edição n. 178 da Revista IHU On-Line sobre o autor), Escosteguy, Quintana, Millôr (12), Leminski, Alice Ruiz (13), Alexandre Brito (14), Ricardo Portugal (15), João Angelo Salvadori (16), Paulo Franchetti (17), Aníbal Beça... a lista não acaba mais.
IHU On-Line – O poeta Silvestrin se interessa também por ler teoria literária, ou acha que ela é dispensável para a criação poética?
Ricardo Silvestrin – Eu me interesso, como já deu para perceber acima. Sou formado em Letras, fiz pós, tive aula com a Tânia Carvalhal (18), com a Maria da Glória Bordini (19), com o Donaldo Shüler (20). Os formalistas russos, o Círculo Lingüístico de Praga e a semiologia francesa são os meus preferidos. Tudo soma. Não tem nada dispensável para a criação poética.
IHU On-Line – Como se dá o seu trabalho como cronista? Como costuma escolher os temas?
Ricardo Silvestrin – O acordo com a editoria da Zero Hora é falar sobre algo ligado à arte, cultura. Sigo o combinado. Faço um mini-ensaio com um pouco de linguagem de crônica. Procuro mostrar ângulos interessantes sobre os objetos culturais que escolho.
Notas:
(1) Roman Osipovich Jakobson foi um pensador russo que se tornou num dos maiores lingüistas do século XX e pioneiro da análise estrutural da linguagem, poesia e arte.Sua vida foi baseada no conhecimento, e principalmente em espalhar o conhecimento pelo mundo, sempre comparando culturas para que elas pudessem ter um sentido que foi o início de suas teorias. Conseguiu transformar conceitos que até hoje são seguidos.
(2) Manuel Bandeira foi um poeta modernista, autor do célebre poema “Os sapos”.
(3) O Deep Purple é uma banda de rock da Inglaterra surgida em 1968 e considerada uma das criadoras do heavy metal e do hard rock.
(4) Mario de Andrade foi um dos poetas do modernismo de 22, autor de obras como Paulicéia desvairada e Macunaíma.
(5) Cecília Benevides de Carvalho Meireles foi uma poetisa brasileira. Apresentou uma cuidadosa seleção vocabular, numa linguagem que explora simbolismos complexos frequentemente simples na forma. Uma poesia que contém imagens sugestivas, sobretudo as de forte apelo sensorial, reflexiva, de fundo filosófico. Abordou, entre outros, temas como a transitoriedade da vida, a efemeridade do tempo, o amor, o infinito, a natureza, a criação artística.
(6) Mario Quintana foi um dos maiores poetas brasileiros, nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul. Considerado o poeta das coisas simples e com um estilo marcado pela ironia, profundidade e perfeição técnica, trabalhou como jornalista quase que a sua vida toda. Traduziu mais de 130 obras da Literatura Universal.
(7) Raul Bopp foi um poeta modernista e diplomata brasileiro. Com Tarsila do Amaral e Oswal de Andrade, amigos pessoais, participou da Semana de Arte Moderna.
(8) Décio Pignatari é um poeta, tradutor e romancista brasileira, autor de Poesia pois é poesia, Contracomunicação, Panteros etc.
(9) Ferreira Gullar é um poeta, crítico de arte, biógrafo, memorialista e ensaísta brasileiro. É autor de livros como A luta corporal e Dentro da noite veloz.
(10) Chacal é um poeta carioca, um dos principais autores da linha marginal. Sua obra completa foi lançada recentemente, no volume Belvedere (São Paulo: Cosac Naify).
(11) Paulo Leminski foi reconhecido como um dos escritores mais importantes do país, tendo escrito crônicas, prosas, ensaios, novelas e, principalmente, poesia. É autor de Caprichos e relaxos, Distraídos venceremos e Catatau, entre outros títulos.
(12) Millôr Fernandes é desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro. Em 1968 começa a trabalhar na revista Veja, e em 1969 torna-se um dos fundadores do jornal O Pasquim.
(13) Alice Ruiz é uma poeta brasileira, autora de Pelos pêlos.
(14) Alexandre Brito é um poeta brasileiro, componente dos poETs.
(15) Ricardo Portugal é um poeta brasileiro.
(16) João Angelo Salvadori é um poeta brasileiro, autor de Teleférico.
(17) Paulo Franchetti é autor de haicais e crítico literário brasileiro.
(18) Tânia Carvalhal foi uma teórica brasileira, autora de, entre outros livros, O próprio e o alheio.
(19) Maria da Glória Bordini é uma crítica literária brasileira.
(20) Donaldo Shüler é um romancista, tradutor e teórico brasileiro, autor da versão completa traduzida para o português de Finnegans wake.
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Poesia, música, publicidade e literatura: uma mistura de linguagens. Entrevista especial com Ricardo Silvestrin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU