06 Novembro 2020
Se o outro se torna apenas um inimigo, um adversário ou um concorrente, então, com efeito, a descoberta da fraternidade é mais urgente do que nunca. Ela nos convida a caminhar, mesmo que só um pouco, nas pegadas de Francisco de Assis. A caminho do outro.
A opinião é de Jean-Claude Guillebaud, jornalista, escritor e ensaísta francês, colunista da revista La Vie e ex-correspondente do jornal Le Monde. O artigo foi publicado por L’Osservatore Romano, 04-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu sei muito bem que o sonho de uma sociedade fraterna está no cerne da encíclica Fratelli tutti. Mas, lendo e relendo esse texto luminoso, eu me detive em uma breve passagem: fiquei surpreso que os comentaristas na França não tenham ressaltado (suficientemente) a sua clarividência. Penso na extraordinária e perigosa visita de Francisco de Assis ao sultão egípcio Malik-al-Kamil em 1219, em plena era das Cruzadas.
Tomando a estrada para o Oriente, Francisco era pobre e vulnerável. O (longo) caminho era pontilhado por toda parte com torres e muralhas. A guerra entre cristãos e sarracenos estava por toda a parte, assim como a miséria e o sofrimento dos pobres. E assim como ódio, aliás! Sem dúvida, Francisco sonhava em converter o sultão, mas esperava, acima de tudo, a reconciliação e a paz.
Hoje, oito séculos depois, os franciscanos ainda conservam com grande destaque a memória daquela viagem. E o fazem bem! Eles se esforçam para continuar e aprofundar a reflexão sobre a nossa abertura às outras culturas e às outras religiões.
Voltando a Francisco e o seu companheiro de viagem, Iluminado, eles foram inicialmente maltratados e espancados pelas vanguardas dos sarracenos. Finalmente, puderam ser recebidos pelo sultão. Francisco se expressou a ele com o fervor de espírito conforme o versículo do Evangelho: “Eu lhes darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos inimigos poderá resistir ou rebater vocês” (Lc 21,15). O sultão ofereceu ricos presentes a Francisco, que “ele rejeitou como lama”.
Francisco não era ávido pelas riquezas do mundo, mas pela salvação das almas. Esse desprezo pelos bens daqui de baixo impressionou tanto o sultão que ele propôs a Francisco e ao seu companheiro de viagem que prolongassem sua estada. Como isso era impossível, ele designou soldados para que escoltassem os dois frades durante a sua viagem de volta.
Conhecemos esses detalhes graças a São Boaventura de Lyon, que foi, com Duns Scotus e Tomás de Aquino, um dos três mais famosos doutores da escolástica medieval.
Os franciscanos argumentam hoje que, talvez, foi precisamente a recordação de Francisco, da sua doçura e da sua fé sem limites que desempenhou um papel quando, dez anos depois, sem que qualquer força o obrigasse, o próprio Malik-al-Kamil decidiu devolver Jerusalém aos cristãos: “Sem dúvida, o olhar límpido de Francisco havia continuado o seu lento trabalho na consciência desse homem aberto ao pensamento dos outros”.
Fiquei alegre e surpreso ao descobrir, no início da encíclica Fratelli tutti, a evocação dessa prodigiosa viagem que também foi um caminho para o outro. Ao lê-la, de fato, pensei naquilo que está acontecendo conosco na Europa, e precisamente na França. Entre os crimes terroristas do jihadismo e o nosso fechamento no horror, a violência desenfreada prevalece. Dia após dia, ano após ano.
Afiamos a severidade da repressão, dos tribunais, das prisões e das retaliações, enquanto a emoção obstrui legitimamente os nossos espíritos. Certamente, sabemos bem que, a oito séculos de distância, as situações são diferentes. Mas ainda somos capazes, ainda temos a força para nos distanciar um pouco? Isso precisa ser feito. Busquemos, busquemos de novo de onde pode vir o retorno dessa barbárie indizível.
Certamente concordamos com a urgência de combater esse terrorismo abjeto. Mas isso não nos impede de nos interrogarmos sobre o “tempo longo”. Quem somos nós, ocidentais? O que é essa nossa modernidade, nascida na confluência do pensamento grego, do judaísmo e do cristianismo? Podemos datar com um mínimo de precisão esse evento histórico? Com a vitória de Carlo Martelo sobre o Islã em 733? Com a afirmação imperial do seu sobrinho, Carlos Magno? Com a ambígua era das Cruzadas que, pela primeira vez, viu o Ocidente se projetar para fora de si?
A nossa reflexão se reatualiza por causa do recrudescimento do terror. O Ocidente não é apenas um simples conceito geográfico (o promontório europeu e a América do Norte), mas também filosófico (uma certa ideia de liberdade, do indivíduo e dos direitos humanos). Ora, portanto, nós, ocidentais, não somos mais “proprietários” desses valores democráticos, que pertencem, de agora em diante, a toda a humanidade (que não os aplica, senão parcialmente).
Na Fratelli tutti, o Papa Francisco evoca uma certa fatalidade que fala ao repórter de guerra que eu fui e ao jornalista inquieto que eu me tornei. Isso ocorre quando ele aborda “a ilusão da comunicação” e o desastroso predomínio do imaterial: “Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente. Dilui-se o respeito pelo outro” (n. 42).
Se o outro se torna apenas um inimigo, um adversário ou um concorrente, então, com efeito, a descoberta da fraternidade é mais urgente do que nunca. Ela nos convida a caminhar, mesmo que só um pouco, nas pegadas de Francisco de Assis. A caminho do outro.
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O sonho de uma sociedade fraterna. Artigo de Jean-Claude Guillebaud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU