Ernesto Cardenal e sua trajetória pelo Cosmos (1925-2020): poesia, mística, revolução e libertação

Ernesto Cardenal em arte de Jimelovski Platano Macho

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 03 Março 2020

Nascido em 20 de janeiro de 1925, na cidade de Granada, na Nicarágua, Ernesto Cardenal cumpriu, durante seus 95 anos, a missão de fazer em arte e ação a síntese do desconhecido e inalcançável com a esperança cintilante. No domingo, 01 de março de 2020, "a sua carne e seus ossos que vieram das estrelas, voltaram, com a sua morte, a formar outras estrelas e galáxias", assim como poesias e revoluções (Cântico Cósmico. Cantiga 4).


Ernesto Cardenal em sua casa em 2019. Foto: Franklin Villavicencio | Revista Niú

O poeta dizia que somos todos feitos de estrelas. Mais que metáfora, esta era uma constatação, expressada com sua poesia que conciliava o mistério da Criação e se encantava com as pistas e os enigmas dados pela ciência.

¿Qué hay en una estrella? Nosotros mismos.
Todos los elementos de nuestro cuerpo y del planeta
estuvieron en las entrañas de una estrella.
Somos polvo de estrellas
Canto Cósmico. Cantiga 4 (1989)

Em sua ação política, vertida pela mesma mística, cumpria o papel de padre e teólogo da libertação, traduzia os Salmos para a realidade de opressão do povo nicaraguense, uma releitura do clamor dos pobres campesinos, que eram semelhantes à poeira dispersa, espalhada na escuridão. Esses elementos soltos quando organizados, tal como os átomos, ganhavam unidade, corpo, gerando uma Revolução na sua forma e substância, que assim como a poeira que foi carregada pelas estrelas, fazia brotar o mistério da vida.

Salmo 5 (1976)

Escucha mis palabras oh Señor
Oye mis gemidos
Escucha mi protesta
Porque no eres tú un Dios amigo de los dictadores
ni partidario de su política
ni te influencia la propaganda
ni estás en sociedad con el gángster.

No existe sinceridad en sus discursos
ni en sus declaraciones de prensa

Hablan de paz en sus discursos
mientras aumentan su producción de guerra

Hablan de paz en las Conferencias de Paz
y en secreto se preparan para la guerra

Sus radios mentirosos rugen toda la noche

Sus escritorios están llenos de planes criminales
y expedientes siniestros
Pero tú me salvarás de sus planes

Hablan con la boca de las ametralladoras
sus lenguas relucientes
son las bayonetas...
Castígalos oh Dios
malogra su política
confunde sus memorándums
impide sus programas

A la hora de la Sirena de Alarma
tú estarás conmigo
tú serás mi refugio el día de la Bomba

Al que no cree en la mentira de sus anuncios comerciales
ni en sus campañas publicitarias, ni en sus campañas políticas
tú lo bendices
lo rodeas con tu amor
como con tanques blindados.

Embora algumas ditaduras tenham passado pela Nicarágua, instaladas por décadas ou apenas de visita, perseguindo Cardenal, o padre não foi calado. Suas palavras e ações libertadoras sempre rompiam os temores que a hierarquia e o autoritarismo lhe impuseram, fosse em meio à guerrilha, ao mosteiro ou em sua rede, autocratas e suas milícias não o derrubaram.

yo he repartido papeletas clandestinas,
gritado: Viva la libertad! En plena calle,
desafiando a los guardias armados.
Yo participé en la rebelión de abril:
pero palidezco cuando paso por tu casa
y tu sola mirada me hace temblar
Epigramas (1961)

Ernesto Cardenal em premiação no México. Foto: Secretaria de Cultura do México

A sua vida como consagrado iniciou junto ao mosteiro trapense no Kentucky, EUA. Relatou sua experiência no livro Gethsemani, Ky (1960). Em seu Cântico Cósmico, obra na qual culminou o seu pensamento, expressou em alguns versos a referência que o monge e mestre de noviciado Thomas Merton teve em sua forma ousada e corajosa de ser completo, de contemplar a Deus:

Dios es pequeño". Y los científicos se encontraron
que el estudio de lo más pequeño y el de lo más grande
son el mismo.
Merton oyó en la India el cuento del sufí que dijo:
"Que yo diga que soy Dios no es soberbia, es modestia."
Lo entiendo: Yo soy Dios ¡pero qué Dios, Dios mío!
Yo soy Dios, oh biólogos.
Canto Cósmico. Cantiga 34 (1989)

Merton e Cardenal foram dois místicos rebeldes. O primeiro foi um manifestante contundente contra a Guerra no Vietnã, já Cardenal esteve ligado aos campesinos nicaraguenses, ao lado da Força Sandinista de Libertação Nacional contra a violenta dinastia somozista. Embora não seguissem juntos no mesmo mosteiro, foi Merton quem inspirou na década de 1960, a criação de uma comunidade em Solentiname, um arquipélago no Grande Lago da Nicarágua. Ernesto formou nessa comunidade artesãos e lideranças camponesas, registrando em seu Evangelho em Solentiname, os diálogos que eram parte das celebrações. Na Parábola dos Talentos (Mt 25, 14-30), orientava:

“Cristo diz que como os exploradores multiplicam o dinheiro, nós revolucionários devemos multiplicar o amor”.

Cardenal foi um revolucionário sandinista de fato, desde a formação dos grupos à instalação do governo. Foi ministro da Cultura até 1987, coincidindo pelo menos por quatro anos junto ao trabalho do seu irmão, Fernando Cardenal, s.j., que esteve à frente do Ministério da Educação. Ernesto e Fernando romperam apenas na década de 1990 com o partido sandinista revolucionário. O comandante Daniel Ortega aos poucos descaracterizava o movimento popular centralizando-o à figura de um déspota, aliado aos antigos inimigos da Revolução.

Entre los dirigentes y las bases se habían creado no sólo difi cultades de comunicación, sino también chocantes desigualdades económicas y de nivel de vida; la ejemplaridad que el Che consideraba esencial en un dirigente revolucionario no brillaba en muchos dirigentes sandinistas.
La Revolución Perdida (2004)

Quando ainda no Ministério da Cultura, em 1983, Ernesto fora confrontado também por outro hierarca, João Paulo II, que em visita à Nicarágua, repreendeu-o publicamente devido ao seu envolvimento político e revolucionário. Um ano depois, sofreu uma suspensão do direito de exercer o sacerdócio e celebrar sacramentos.

Se Ortega e João Paulo II o perseguiram, outros companheiros revolucionários foram fiéis a Cardenal até o fim. A também poeta e perseguida pelo governo autoritário Gioconda Belli escreveu em suas redes sociais "Nosso querido poeta Ernesto Cardenal, foi quieto e docemente a esse cosmos que cantou. Muito triste perder a lucidez e a poesia com que viveu até o final. Mais que chorar, há de se celebrar uma vida como a sua, consequente e criativa, infatigável por 95 anos".

Sergio Ramírez, que foi vice-presidente do primeiro governo revolucionário e líder da dissidência sandinista, também se manifestou: perco um irmão mais velho, amigo inseparável e vizinho de muitos anos, um guia moral, um modelo literário, e com ele se vai parte essencial da minha própria história".


Foto: Confidencial

Há um ano, em fevereiro de 2019, o papa Francisco, quem desde o início do pontificado despertou a admiração de Ernesto - "um Papa melhor do que poderíamos ter sonhado", afirmou em entrevista ao El País, em 2017 -, levantou a suspensão ad divinis. Depois de 35 anos, celebrou sua primeira missa, já em um leito de hospital.

Pode se dizer que Francisco apenas cumpriu uma expectativa que Cardenal sempre teve: a Revolução virá. Mesmo com a desilusão com os rumos do sandinismo ou da Igreja que combateu a Teologia da Libertação, manteve sempre viva a certeza do Reino de Deus. A morte tinha um sentido, fosse para voltar ao cosmos, fosse para fazer brotar uma nova vida. Um ciclo eterno da Criação.

pero el heroe nace cuando muere
y la hierba verde renace de los carbones
Hora Cero (1957)

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