Por: Patricia Fachin | 25 Junho 2018
A bioética, convencionalmente abordada na filosofia a partir da resolução de problemas da área médica, tem um propósito mais amplo no pensamento do bioquímico norte-americano Van Rensselaer Potter (1911–2001), autor de obras como Bioética: ponte para o futuro (Loyola, 2016) e Bioética Global: Construindo a partir do legado de Leopold (Loyola, 2018), recentemente traduzidas para o português.
Segundo o filósofo Anor Sganzerla, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, as pesquisas de Potter sobre o câncer e sua preocupação com a sobrevivência humana no futuro capacitaram-no “a propor o surgimento de um novo conceito interdisciplinar na tentativa de unir a ética com a ciência. Esse diálogo entre a ciência da vida (biologia: bios, vida) com a sabedoria prática (filosofia: ethos, valores) permitiu que criasse o neologismo bioética, com a missão de assegurar a sobrevivência humana. Potter comparava a ação devastadora das células cancerígenas no corpo humano com a ação do homem sobre a natureza”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Sganzerla afirma que a bioética potteriana contribuiu com a elaboração teórica do que hoje chamamos de ecologia e sustentabilidade. “Desde o seu pensamento inicial na Bioética como ponte, Potter questionou a concepção materialista de progresso que comprometeria um futuro aceitável e sustentável para a sobrevivência humana e do planeta. Por isso, frente aos avanços científicos e tecnológicos, é preciso desenvolver uma sabedoria que forneça o conhecimento de como usar o conhecimento para o bem social”, comenta. Crítico da noção de progresso e dos avanços materialistas da ciência da tecnologia, nos anos 1970 Potter já alertava que as pesquisas científicas indicavam “um descompasso entre os interesses econômicos, o desenvolvimento do progresso com a sobrevivência humana e do planeta no futuro”.
Influenciado pela obra do teólogo jesuíta Teilhard de Chardin e sua “ousadia” de “reconciliar a ciência com a religião, isto é, de integrar as descobertas científicas com os discursos da filosofia e da teologia”, Potter também argumentou em defesa de uma relação mais próxima entre ciência e religião. Para ele, “a ciência e a religião precisam caminhar juntas, de mãos dadas, em função de um objetivo maior, uma causa que interessa a toda a humanidade: garantir o futuro da vida, humana e cósmico-ecológica, no planeta Terra”, conclui.
Anor Sganzerla, juntamente com Leo Pessini e Diego Carlos Zanella, é organizador da obra Van Rensselaer Potter: um bioeticista original (Loyola, 2018), que será lançada no II Congresso Internacional Iberoamericano de Bioética e VIII Congresso de Humanização e Bioética, que acontece na PUCPR entre os dias 28 e 30 de junho deste ano.
Anor Sganzerla | Foto: Arquivo pessoal
Anor Sganzerla é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, e graduado em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Atualmente é professor na PUCPR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quem foi Van Rensselaer Potter e qual seu legado para o estudo da bioética?
Anor Sganzerla – Van Rensselaer Potter (1911–2001) foi um bioquímico norte-americano, professor e pesquisador na área da oncologia por mais de 50 anos. Trabalhou no MacArdle Laboratory for Cancer Research, da Universidade de Wisconsin, na cidade de Madison. Casou-se e teve três filhos. Seu avô morreu de câncer um ano antes de seu nascimento e lhe deixou o nome de Van Rensselaer Potter II. A mãe morreu de acidente de carro quando tinha sete anos de idade. Sua ampla experiência em pesquisa sobre o câncer atraiu muitos pesquisadores jovens e experientes. Somente de estudantes de pós-doutorado teve mais de 90 orientados.
A experiência com a pesquisa sobre o câncer e sua preocupação com a sobrevivência humana no futuro capacitou-o a propor o surgimento de um novo conceito interdisciplinar na tentativa de unir a ética com a ciência. Esse diálogo entre a ciência da vida (biologia: bios, vida) com a sabedoria prática (filosofia: ethos, valores) permitiu que criasse o neologismo bioética, com a missão de assegurar a sobrevivência humana. Potter comparava a ação devastadora das células cancerígenas no corpo humano com a ação do homem sobre a natureza.
O termo bioética cunhado por Potter foi usado pela primeira vez em 1970 no artigo intitulado Bioethics, science of survival, publicado em Persp Biol Med. Um ano mais tarde o artigo faria parte da obra inicial do pensador: Bioética: ponte para o futuro. Com essa obra, Potter passou a ser conhecido como um dos “pais da bioética”. Falo “pais da bioética” porque, poucos meses após a publicação da obra de Potter, ainda no ano de 1971, o médico obstetra holandês André Hellegers fundou o Instituto Universitário de Bioética, hoje conhecido apenas por Instituto Kennedy de Ética (Washington), que passou a dar grande notoriedade à bioética, o que garantiu sua inserção nos dicionários e enciclopédias.
Embora ambos tenham sido pioneiros na atualização da expressão bioética, a perspectiva da bioética potteriana articula-se em um nível macrobioético, ou seja, o pensamento de Potter vai além do âmbito da vida humana, e com isso inclui os desafios da vida cósmica e ecológica. Hellegers, por sua vez, pensa a bioética a partir de problemas que podemos classificar de microbioética, ou seja, trata-se de uma ética que se restringe a problemas da ética médica, com ênfase no indivíduo preocupado com a resolução a curto prazo. Sua abordagem não é interdisciplinar e não apresenta uma perspectiva geral. Essa visão privilegia os problemas específicos dos países desenvolvidos, ignorando os problemas de saúde dos outros países marcados pela injustiça, pobreza e por graves questões ambientais.
A essa dupla paternidade, devemos acrescentar as descobertas do professor Rolf Lother (1997), da Universidade Humboldt de Berlim, que ao pesquisar nos famosos periódicos Kosmos, encontrou que o teólogo alemão Fritz Jahr, em 1927, havia utilizado o termo bioética em um dos seus artigos no qual apresentava a bioética como a “emergência de obrigações éticas não apenas com o homem, mas com todos os seres vivos”.
Embora na atualidade costuma-se afirmar que a bioética tem “diferentes pais”, a bioética global e profunda proposta por Potter está mais em sintonia com os desafios de nossos tempos.
IHU On-Line – Por que a obra Bioética: ponte para o futuro, de Potter, é considerada uma das obras mais fundamentais na área de bioética? Acerca de quais questões Potter tratou nessa obra?
Anor Sganzerla – A obra Bioética: ponte para o futuro é um marco para a bioética porque nela Potter apresenta a bioética como a “ciência da sobrevivência”, evidenciando a urgente necessidade de unir o “bios” com o “ethos”, isto é, o diálogo entre as ciências da vida com a sabedoria prática, em espaço interdisciplinar, em vista da sobrevivência da civilização humana. A obra é dedicada a Aldo Leopold, um renomado professor da Universidade de Wisconsin, que refletia sobre a Ética da Terra.
Entre os temas centrais tratados na obra temos: o forte questionamento ao ideal de progresso de seu tempo e dos avanços materialistas próprios da ciência da tecnologia; o questionamento sobre que futuro queremos; a relação entre ordem e desordem do conhecimento humano; o conceito de conhecimento perigoso; o progresso e sobrevivência do planeta; as obrigações para com o futuro; o controle da tecnologia; os esforços multidisciplinares da ciência em vista à sobrevivência; a sobrevivência como objetivo da sabedoria humana; controle de natalidade; a necessidade de unir a ciência e a religião com o desafio ético para garantir o futuro da vida, entre outros.
IHU On-Line – Potter pensava a bioética como uma ponte entre a biologia e a ética. Que relações ele estabelecia especificamente entre essas duas áreas?
Anor Sganzerla – Pode-se dizer que a bioética potteriana se constrói a partir de quatro grandes pontes:
a) Ponte entre o presente e o futuro: se o futuro era pensado como certo, e, nesse sentido, a sobrevivência da humanidade estaria garantida, Potter problematiza esse entendimento, afirmando que é preciso repensar as ações humanas no presente e seus efeitos a longo prazo;
b) Ponte entre ciência e valores: é preciso combinar o conhecimento biológico com o conhecimento de valores, pois a sociedade moderna se voltou somente na busca do progresso, esquecendo-se do universo da ética, e dos valores. É preciso perguntar: o que significa progresso? Como pensar o progresso sem comprometer o presente e o futuro da sobrevivência humana?;
c) Ponte entre natureza e cultura: ao aplicar o conhecimento científico sobre a própria natureza humana em busca de favorecer uma evolução humana, e, consequentemente cultural, corre-se o risco de ameaçar a dignidade humana;
d) Ponte entre o ser humano e a natureza: Potter não defende nem o biocentrismo nem o antropocentrismo, mas uma mistura de biocentrismo com um novo tipo de humanismo, preocupado com os interesses e bem-estar dos seres humanos, mas que reconheça também o papel central da biosfera na continuidade da existência. Para tanto, Potter se apropria da expressão biocentrismo humanista (Aldo Leopold) e antropocentrismo esclarecido (Max Otto) consciente da natureza como uma questão de moralidade organizacional dirigida por uma intuição para o bem comum em escala mundial.
IHU On-Line – Em que consistia a defesa de Potter de uma regulação ética do crescimento econômico e do desenvolvimento científico? Em que contexto e por que tinha esse tipo de preocupação?
Anor Sganzerla – Potter acreditava que não podemos mais ficar confortados com a ideia de que se no futuro as coisas piorarem, a ciência terá respostas. As pesquisas científicas, segundo Potter, já nos mostraram que há um descompasso entre os interesses econômicos, o desenvolvimento do progresso com a sobrevivência humana e do planeta no futuro. Somente com uma renovação de nossa relação global com o mundo natural é que haverá possibilidade de garantir a sobrevivência no futuro.
Essa mudança para Potter é urgente. Precisamos, afirma o pensador, de uma bioética política para a população mundial na qual se respeite a diversidade, a proteção da biosfera, em vista da construção de uma sociedade justa. Afirma Potter que temos duas opções para enfrentar o futuro frente ao descompasso econômico, tecnocientífico de nossos tempos: ou nos “voltamos para uma bioética global ou então viveremos a anarquia”.
A decepção com as conquistas da ciência e da tecnologia, que não conseguiram proteger o ser humano, a exemplo da II Guerra Mundial e as polarizações de poder, deixam um saldo de desconfiança sobre o futuro da humanidade. Por isso, a bioética proposta por Potter representa um diálogo entre os diferentes saberes, de modo que os avanços tecnológicos pudessem participar da construção de um futuro melhor. Afirma Potter em Bioética: ponte para o futuro, que “a sabedoria tem uma nova orientação porque a sobrevivência do homem está em jogo. Os valores éticos devem ser testados em termos de futuro (...) e as ações que diminuem as chances de sobrevivência humana são imorais (...)”.
IHU On-Line – Em que consiste a “abordagem global da bioética” proposta por Potter?
Anor Sganzerla – O termo global é introduzido por Potter, a partir da obra Bioética global (1988). Nessa obra o autor apresenta o seu pensamento bioético com uma forte perspectiva ecológica inspirada em Aldo Leopoldo (colega da Universidade de Wisconsin – Madison). Aldo Leopoldo foi pioneiro em apresentar o conceito de Ética da terra, evidenciando a necessidade de proteção da totalidade da vida no planeta. Potter se inspira na definição de Leopoldo no que se refere aos três estágios no desenvolvimento da ética: o primeiro estágio diz respeito às relações entre os indivíduos; o segundo estágio se dá entre o indivíduo e a sociedade; e o terceiro estágio acontece entre os seres humanos com o seu meio ambiente. Nesse sentido, a bioética global de Potter representa um desdobramento do terceiro estágio, com o objetivo de articular os interesses humanos com os interesses da natureza, com as questões de saúde, sociais, culturais e ambientais.
Com a Bioética Global, Potter vincula a saúde humana com a saúde ambiental, evidenciando que o adoecimento de uma das partes consequentemente causará intenso prejuízo à outra, e que a sobrevivência humana e das outras formas de vida no futuro depende dessa sintonia. Afirma Potter na obra Bioética Global: “Chegou o momento de reconhecer que não podemos mais examinar opções médicas sem levar em conta a ciência ecológica e os problemas da sociedade numa escala global (...) a bioética global, portanto é ‘a unificação da bioética médica com a bioética ecológica’ (...) os dois ramos deste saber necessitam ser harmonizados e unificados para se chegar a uma visão consensual que pode ser denominada bioética global, destacando os dois significados do termo global, a saber: um sistema de ética é global, de um lado, se ele for unificado e abrangente, e de outro, se tem como objetivo abraçar o mundo todo”.
Nesse sentido, a Bioética Global favoreceu o surgimento de uma aliança entre a vida e o meio ambiente na qual todos os fatores estão envolvidos, ambientais, econômicos, científicos, sociais, físicos, entre outros, e que somente com a proteção de nossos ecossistemas é que seremos capazes de nos proteger a nós mesmos e as outras formas de vida.
IHU On-Line – Como Potter fundamenta a passagem da bioética ponte para a bioética global e para a bioética profunda?
Anor Sganzerla – Potter trabalha o seu pensamento bioético em três estágios:
a) Bioética ponte, na qual mostrou a necessidade de aproximação das ciências da vida com a ciência dos valores;
b) Bioética global, onde demonstra que a saúde humana está diretamente ligada às questões ambientais, sociais, econômicas, entre outras;
c) Bioética profunda: o conceito de bioética profunda foi elaborado juntamente com seu amigo e discípulo Peter Whitehouse (neurologista, da Case Western Reserve University de Ohio), buscando uma aliança entre a ecologia profunda e a bioética global.
Potter reconhece que os dilemas éticos da década de 1990 exigiam algo a mais do que uma ponte entre a ética médica e a ética ambiental, por isso introduziu novos elementos para compor a bioética profunda, com destaque para a humildade e a responsabilidade sobre o que somos capazes de realizar tecnicamente; a busca de uma cooperação global que possa absorver a política, a economia, o meio ambiente em vista da sobrevivência futura da humanidade a longo prazo; e a introdução da dimensão espiritual no coração da bioética, para superar a visão reducionista, materialista e de curto prazo das abordagens ecológicas.
Afirma Potter, em um dos seus últimos artigos intitulado Bioética profunda e global para um terceiro milênio habitável, que: “a bioética profunda é a busca pela sabedoria, definida como um julgamento de como usar o conhecimento para o bem social. Clamamos por uma sabedoria bioética que combinará o conhecimento ecológico, com um senso de responsabilidade moral para vivermos num mundo saudável”.
IHU On-Line – Como se relaciona a ciência com a religião no pensamento bioético de Potter?
Anor Sganzerla – Para assegurar a sobrevivência da humanidade no futuro e a vida no planeta, a religião tem um papel fundamental, segundo Potter. Esse entendimento aparece tanto em sua obra pioneira como nos escritos posteriores.
Potter era membro da Sociedade Unitariana de Madison. Trata-se de uma organização religiosa de inspiração cristã em sintonia com Jesus de Nazaré e com os ideais de uma religião liberal. Essa organização defendia a livre manifestação de pensamento, e nela eram aceitos membros de diferentes opiniões teológicas. O respeito pela integridade da vida em sua totalidade tem lugar de destaque na organização. Em seu credo bioético, Potter mostra sua proximidade com o pensamento dessa sociedade.
Foto: Edições Loyola | Divulgação
Potter defende a ideia de que não é verdade que a ciência terá as respostas aos problemas humanos no futuro, e, desse modo, é preciso promover também o diálogo entre a ciência e a religião, de modo que essa última também possa contribuir para a sobrevivência humana e da biosfera. Se, no passado, os valores humanos eram propriedade exclusiva dos filósofos e teólogos, na atualidade, afirma Potter, muitos cientistas também possuem valores transcendentais e humanos, e estes precisam estar integrados com a religião e a filosofia em vista de processos políticos que possam ser benéficos à humanidade e ao ambiente.
Um dos temas mais complexos levantados por Potter no diálogo entre ciência e religião diz respeito ao controle populacional. Preocupado com o rápido crescimento populacional mundial, e com a previsão científica de que em meados do século XXI a população mundial dobrará, Potter vê como urgente uma tomada de posição global, ou seja, uma política de controle da natalidade. Sua preocupação com o crescimento populacional é evidente, como é possível de ver nas letras que compõem a placa de seu carro: YES ZPG (Zero population growth), ou seja, “sim, crescimento populacional zero”.
Em seus escritos, Potter faz referências a autores que tratam da religião, com destaque a Antony F.C. Wallace e suas obras Revitalização religiosa e Religião: uma visão antropológica; Teilhard de Chardin, pelo seu esforço em buscar uma ponte entre a ciência e a religião; Hans Küng, pelo diálogo promovido entre a ciência e a religião na busca de um ethos global. Embora Potter se utilize desses e de outros autores para pensar a bioética, há entre eles também muitas divergências.
Para Potter, a ciência e a religião precisam caminhar juntas, de mãos dadas, em função de um objetivo maior, uma causa que interessa a toda a humanidade: garantir o futuro da vida, humana e cósmico-ecológica, no planeta Terra. Para Potter, embora as religiões não possam resolver os problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais, elas podem promover aquilo que não é possível de conseguir com planos econômicos, programas políticos e regulamentações legais. Elas podem promover mudança interior, na mentalidade e no coração do indivíduo de modo que este indivíduo seja capaz de uma nova orientação de vida.
IHU On-Line – Qual é a influência do jesuíta Teilhard de Chardin no pensamento de Potter e na sua visão de bioética?
Anor Sganzerla – Na obra Bioética: ponte para o futuro, Potter destaca a ousadia do teólogo Teilhard de Chardin, na tentativa de reconciliar a ciência com a religião, isto é, de integrar as descobertas científicas com os discursos da filosofia e da teologia. Embora Teilhard tenha servido de inspiração para a formulação da bioética potteriana, a ele Potter também se opõe.
Um ponto de divergência entre ambos está na questão de como a ciência pode determinar o futuro da humanidade e sua evolução. Embora ambos partilhem da ideia de que o futuro da humanidade é um assunto de extrema urgência e que precisa ser tratado pelas diferentes áreas do saber, para Teilhard a ciência será capaz de determinar o futuro da humanidade, como uma espécie de caminho da evolução. Potter, por sua vez, discorda dessa afirmação, pois acredita que o futuro da humanidade é um caminho aberto, e, desse modo, não é possível apresentar uma metodologia única, mas somente uma nova visão de mundo.
Afirma Potter que tanto ele como Teilhard buscavam o mesmo, isto é, combinar a força que legitima a ciência com valores humanos, e que, embora estes últimos tivessem uma abordagem religiosa ou humanista, a importância estava nos acordos que redundariam no bem comum. Assim sendo, pode-se pensar que a abordagem de Teilhard de combinar o cristianismo com a evolução não foi necessariamente desagradável para Potter. O unitarismo religioso de Potter está muito próximo do secularismo, e isso ajuda a entender por que Potter ressignificou a proposta religiosa de Teilhard como uma forma de humanismo científico.
IHU On-Line – Alguns autores avaliam que Potter antecipou o que hoje convencionou-se chamar de “ecologia”. Concorda com esse tipo de avaliação? Pode nos apresentar alguns exemplos de como essa noção de ecologia já estava presente em sua obra?
Anor Sganzerla – Com certeza Potter muito contribui com seu pensamento em defesa do que hoje chamamos de ecologia, e mesmo de sustentabilidade. Desde o seu pensamento inicial na Bioética como ponte, Potter questionou a concepção materialista de progresso que comprometeria um futuro aceitável e sustentável para a sobrevivência humana e do planeta. Por isso, frente aos avanços científicos e tecnológicos, é preciso desenvolver uma sabedoria que forneça o conhecimento de como usar o conhecimento para o bem social.
Para Potter, diante da “crise ambiental” que vivemos e que afeta tanto o indivíduo como a sociedade e o meio ambiente, é preciso que a educação contribua para que o ser humano se compreenda em seu conjunto e suas relações com o mundo circundante, e que seja capaz de usar da sabedoria para não comprometer o seu amanhã. Com isso, a bioética tem o papel de guiar e orientar as políticas públicas em vista do bem social. Se lembrarmos como o Relatório Brundtland, também conhecido como Nosso futuro comum, definiu o conceito de sustentabilidade (“aquele que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem as suas necessidades e aspirações”), reconheceremos que esse conceito está em sintonia com a proposta bioética de Potter.
IHU On-Line – Quais são as críticas de Potter à fragmentação das ciências?
Anor Sganzerla – O caráter interdisciplinar da bioética proposta por Potter representa uma resposta aos problemas enfrentados nas diferentes áreas do saber, e que necessitam de uma convergência ética e científica para o cuidado com a vida. A Bioética global e profunda apresentadas por Potter reforçam a ideia de que não é mais possível pensar os problemas do indivíduo, independente das questões sociais, econômicas, ambientais, entre outros, por isso a necessidade urgente de uma nova visão que supere a fragmentação dos saberes.
Para Potter, tanto os teólogos como os filósofos falharam em sua formulação ética ao pensar a sobrevivência humana e da biosfera. Ao pensar a ética limitada às relações interpessoais ou sociais entre os humanos, tal reflexão exclui a biosfera e os graves problemas de sobrevivência humana no futuro. Nesse aspecto, pode-se perceber uma aproximação das ideias de Potter com a ética da responsabilidade proposta por Hans Jonas. Embora Potter não trate dessa aproximação de modo explícito, a referência a Jonas em seu artigo A ciência e a religião devem partilhar da mesma busca em relação à sobrevivência global permite-nos chegar a essa conclusão.
IHU On-Line – Qual é a atualidade da concepção bioética de Potter considerando o atual desenvolvimento do mundo, das ciências e das tecnologias? De que modo sua obra ainda pode orientar o desenvolvimento das ciências e das tecnologias nos dias de hoje?
Anor Sganzerla – Não há dúvidas que o pensamento de Potter continua a nos inspirar, instigar e provocar para pensar a respeito das realidades do mundo da vida, do nosso estilo de vida, na responsabilidade em vista de uma nova sociedade mais justa e saudável, bem como um futuro de esperança para a humanidade. Em particular no Brasil, a bioética tem crescido muito, e a quantidade de estudantes, professores e pesquisadores, de norte a sul do país que tem se dedicado à pesquisa em bioética, tem chamado bastante atenção.
Embora Potter tenha alertado da necessidade de buscarmos uma Bioética profunda e global em vista da sobrevivência humana e da natureza como um todo, na prática, embora tenhamos tido algumas conquistas, ainda temos muito a superar, pois ainda prevalecem os interesses econômicos e políticos alicerçados na exploração humana e da própria natureza. Nesse sentido, o pensamento de Potter continua sendo bastante atual, e as possíveis divergências do seu modo de pensar com a realidade de nosso tempo deve servir de entusiasmo para a continuidade do debate e da reflexão.
Potter mostrou que um novo mundo é possível de ser construído, com respeito às pessoas, às culturas e em harmonia com a natureza. Precisamos todos nós exercermos nosso protagonismo pessoal e político frente a esse desafio. Os bioeticistas, como afirma Whitehouse, precisam encontrar a coragem e a sabedoria para liderar a revolução em mudanças organizacionais e não serem cúmplices com sistemas disfuncionais.
IHU On-Line – Como a bioética, tal como sugerida por Potter, é compreendida pela “bioética hegemônica”, que dá ênfase à relação entre prática médica e ética, digamos assim?
Anor Sganzerla – A redução da bioética à ética médica foi um equívoco. O próprio Potter se queixou da utilização de seu pensamento de modo reduzido, por isso fazia questão de classificar essa redução não de bioética médica, mas sim de ética médica. Não há dúvidas de que a ética médica é imprescindível aos nossos tempos, mas a proposta de bioética apresentada por Potter representa algo muito maior, interdisciplinar em vista do bem comum da humanidade e da vida em geral.
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Por uma bioética profunda e global e o diálogo entre as ciências da vida e a sabedoria prática. Entrevista especial com Anor Sganzerla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU