Por: João Vitor Santos | 30 Mai 2017
Quem nunca foi a um consultório médico e saiu com uma dúvida: “mas o que é que tenho mesmo?”. Ou: “para o que mesmo é esse remédio que ele me receitou?”; e ainda: “essa é mesmo a melhor forma de tratar meu familiar?”. Essas situações revelam o descompasso que pode haver na relação entre o médico e seu paciente, que pode ainda ser agravado em situações extremas, em casos de doenças mais graves. “O paciente deve ser visto como pessoa, com seus valores, crenças, determinantes culturais e sociais, antes do que como corpo doente, doença a ser diagnosticada, doença terminal”, argumenta o médico Rogério Amoretti. Defensor dos direitos humanos do paciente, destaca que essa perspectiva que leva em conta o sujeito diante do “doutor” é importante para ambos os lados. “A bioética e a perspectiva dos direitos humanos tornam mais horizontais e colaborativas as relações entre médicos, equipes multiprofissionais, pacientes e familiares, em uma época em que nenhum profissional detém todas as respostas e os pacientes assumem com convicção a sua vontade de participar de decisões sobre a sua saúde”, analisa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Amoretti reitera a importância de regulamentação dos direitos humanos do paciente. “Ainda não há da parte dos pacientes uma consciência clara de seus direitos humanos, principalmente entre a população mais carente, entre a população mais pobre que usa exclusivamente o SUS”, aponta. O médico, que trabalhou na elaboração da Carta de Direitos Humanos do Grupo Hospitalar Conceição, Porto Alegre, ainda destaca a importância de se ter uma legislação que normatiza os direitos humanos do paciente, o que dará segurança jurídica para o desenvolvimento pleno do campo. “A nossa discussão e a nossa prática demonstram que ética e lei devem se complementar. Não adianta uma discussão puramente ética frente a questões práticas de natureza social, se não houver uma lei que determine direitos e deveres”, reflete, ao defender o projeto de lei que tramita no Congresso Nacional.
Embora o projeto de lei, e as próprias perspectivas dos direitos humanos dos pacientes, não trate de forma diretamente o controverso tema da eutanásia, Amoretti reconhece que esse pode ser um passo para, no futuro, propor discussões mais sóbrias acerca do tema. “Talvez para o futuro, em algum momento, a eutanásia poderá ser eticamente discutida, como ocorreu e ocorre em outros países. Será uma longa e polêmica discussão social”, analisa.
Rogério Amoretti | Foto: Grupo Hospitalar Conceição
Rogério Amoretti possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é presidente do Comitê de Bioética do Grupo Hospitalar Conceição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No que consistem os direitos humanos do paciente?
Rogério Amoretti – Direitos humanos dos pacientes decorrem dos direitos humanos universais, sendo direitos extensivos a todas as pessoas, a qualquer sujeito que se encontre na condição de paciente. Nem sempre foram reconhecidos, e pode-se dizer que são avanços recentes na esfera dos direitos humanos que, principalmente desde a década de 1970, reforçam a autonomia e autodeterminação dos pacientes que estão assim saindo da condição subjugada e submissa na relação com os médicos e os demais profissionais e serviços de saúde. As pessoas estão buscando agora cada vez mais participar ativamente das decisões que dizem respeito à sua saúde, suas doenças, tanto durante o diagnóstico como nas escolhas terapêuticas.
A partir da década de 1970, e com forte acento nos Estados Unidos, iniciou um movimento de enfrentamento com o paternalismo e o autoritarismo vigente na medicina e nas internações hospitalares. A defesa contra a exclusão racial, dos doentes mentais, dos pobres sem atendimentos, a luta das mulheres por contracepção, pelo aborto, pela saúde da mulher em geral também foram fundamentais nesse processo de ativismo por mais direitos para os pacientes. Agora, a dimensão desse ativismo por direitos está bastante ampliada, principalmente através da certeza de que todos nós somos ou seremos pacientes em um momento ou outro e, nessa condição, queremos ter nossos direitos preservados e respeitados, nunca desconsiderados.
Muitos países foram criando leis pelos direitos dos pacientes, na Europa, na África, na América do Sul, na América do Norte, mas o Brasil foi ficando para trás. Ainda não temos lei sobre direitos dos pacientes. Então, questões como a privacidade, a confidencialidade do atendimento, o consentimento para procedimentos e cirurgias, a possibilidade de indicar um representante legal, a qualidade do atendimento, tudo isso e muito mais deve estar previsto numa lei sobre direitos dos pacientes.
IHU On-Line – O que levou o Grupo Hospitalar Conceição a tratar do tema? E como foi o processo de elaboração da carta?
Rogério Amoretti – O Grupo Hospitalar Conceição – GHC de Porto Alegre é o maior conglomerado de saúde da Região Sul do Brasil. Desde 2003, mesmo ano em que foi fundado o Comitê de Bioética do GHC, o Grupo é 100% Sistema Único de Saúde – SUS. Referência no atendimento do SUS no Estado, o GHC é formado pelos hospitais Nossa Senhora da Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor e Fêmina, além da Unidade de Pronto Atendimento – UPA Moacyr Scliar, de 12 postos de saúde do Serviço de Saúde Comunitária, de três Centros de Atenção Psicossocial – CAPS e do Centro de Educação Tecnológica e Pesquisa em Saúde - Escola GHC. Vinculado ao Ministério da Saúde, conta com uma oferta de cerca de 1.410 leitos, é responsável por 56,7 mil internações/ano. Com mais de 9.400 profissionais, o GHC é responsável por cerca de 1,4 milhão de consultas, 30,9 mil cirurgias, cerca de 3,7 milhões de exames e 8,3 mil partos por ano. Tem ainda um não menos importante papel na formação de recursos humanos para a saúde. Atende grande parte da população da região metropolitana de Porto Alegre e é referência também para um grande número de atendimentos do interior do Estado.
Dessa maneira, parece natural que a Carta dos Direitos dos Pacientes, uma iniciativa do Comitê de Bioética, em sintonia com os objetivos históricos e atuais da instituição, tivesse surgido e ocorrido aqui. Nesses hospitais de um Grupo que busca atender da melhor maneira possível, com responsabilidade e buscando a humanização dos atendimentos, em respeito à dignidade dessas pessoas que nos procuram e aos seus direitos humanos. Isso apesar das grandes dificuldades que enfrenta. Assim, a Carta é um instrumento pioneiro pela defesa dos pacientes e apoio aos profissionais em hospitais no Brasil. Grande parte do que está subscrito na Carta já é cumprido nos atendimentos oferecidos pelos profissionais no GHC.
Mas muitas dúvidas ainda restam ser pensadas e esclarecidas. A Carta de Direitos dos Pacientes busca também esse objetivo. Embora a Carta esteja designada como de Direitos dos Pacientes, sem dúvidas ela tem demonstrado ser de importância para os profissionais. Ela é um instrumento de estudo e prática da bioética clínica e social que o Comitê de Bioética defende. Tem servido de orientação e apoio a pacientes, familiares e profissionais do GHC, servindo como uma fonte permanente para consultas e tomadas de decisões.
A Carta dos Direitos dos Pacientes não surgiu do nada. Ela está sustentada num dos principais documentos da bioética mundial atual, a Declaração Sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, de 2005. Ela é também expressão da forte participação da bioética latino-americana na atualidade mundial.
Pacientes, familiares, profissionais e equipes multiprofissionais reportam-se aos conteúdos da Carta de Direitos dos Pacientes e frequentemente participam das discussões mediadas pelo Comitê de Bioética do GHC, em rounds clínicos, reuniões do Comitê ou em suas atividades consultivas e nos pareceres solicitados.
Embora só recentemente tendo completado um ano de sua publicação, a Carta já é documento importante e afirmado dentro da instituição GHC.
IHU On-Line – Há implicações éticas na aplicação dos direitos humanos do paciente? Quais?
Rogério Amoretti – Direitos podem ser morais, de aplicação sustentada pela ética ou podem ser legais, fundamentados na lei. Os direitos humanos dos pacientes decorrem do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Englobam todas as pessoas, independente de cor, classe social, preferência sexual, idade, formação profissional. Não aceitam discriminações. No Brasil não há uma lei sobre direitos dos pacientes. A nossa discussão e a nossa prática demonstram que ética e lei devem se complementar. Não adianta uma discussão puramente ética frente a questões práticas de natureza social, se não houver uma lei que determine direitos e deveres. Pacientes e profissionais devem estar amparados na lei. Por outro lado, de nada adianta existirem leis se elas não forem cumpridas, se não houver pessoas que as reconheçam e as sigam por seus valores e ética. Nesse aspecto, a formação ética das pessoas dá sentido e valor à lei.
Os estudos bioéticos, a divulgação da bioética e a participação do Comitê de Bioética em múltiplos espaços institucionais busca mudar uma cultura em que a bioética é somente para especialistas e criar um ambiente em que os valores, os princípios e os direitos das pessoas se somem às expertises profissionais agindo como um somatório de esforços que busca contemplar as necessidades e a dignidade de todas as pessoas que atendemos. Nossa Carta de Direitos dos Pacientes, por exemplo, deu origem a um projeto de lei que está tramitando na Câmara dos Deputados, há cerca de um ano. Esse projeto foi desenvolvido pelo Comitê de Bioética do GHC e deverá se transformar no Estatuto do Paciente. É o PL 5559/16.
IHU On-Line – Em que medida os direitos humanos do paciente podem entrar em conflito com outros dispositivos legais, como o Código Penal no caso da eutanásia?
Rogério Amoretti – No Brasil a eutanásia é considerada crime. Em outros países a legislação permite a eutanásia. Tanto a Carta de Direitos dos Pacientes do GHC quanto o PL 5559/16, o futuro Estatuto do Paciente, em tramitação na Câmara Federal, não consideram a eutanásia como possibilidade. Não há conflito nesse sentido. A ética que defendemos na Carta e a lei que estamos propondo estão em consonância. Mas esse é um exemplo extremo e fora da nossa alçada de consideração. Talvez para o futuro, em algum momento, a eutanásia poderá ser eticamente discutida, como ocorreu e ocorre em outros países. Será uma longa e polêmica discussão social.
Mas temos discutido muito questões importantes sobre a terminalidade, o fim da vida. O tema é difícil para pacientes, familiares e profissionais. Nós buscamos discutir e ajudar as pessoas nesse momento. O desenvolvimento tecnológico mudou profundamente as questões referentes ao morrer. Hoje, mesmo uma pessoa que está acometida por doença fatal, em estado terminal e sem esperanças de retorno a uma vida normal, pode ser mantida através de aparelhos e medicamentos por vários meses em uma UTI, com um prolongamento artificial da agonia, com sofrimento para a pessoa, os familiares e os profissionais, com todo o desgaste decorrente dessa situação. Esta não é a melhor maneira de morrer, com certeza. Essas pessoas poderiam se beneficiar de cuidados paliativos, com atenção para que não sofram dor e angústia desnecessárias e com apoio psicológico e médico.
Muitas vezes as famílias, em determinadas circunstâncias de não retorno de saúde, preferem um convívio humanizado nesses momentos finais, com o paciente junto à família ou em um quarto, com atendimento especializado de cuidados paliativos e não no isolamento da UTI. Isso pode ser previsto e garantido na lei. Contudo, a falta de uma lei que reconheça direitos para os pacientes, que dê titularidade de direitos que então deverão ser respeitados, necessita ser superada.
IHU On-Line – Quais as contribuições das perspectivas dos direitos humanos do paciente na relação entre médicos e demais membros da equipe de profissionais da saúde, desde casos mais simples como consultas eletivas até procedimentos mais complexos em situações de urgência ou emergência?
Rogério Amoretti – A bioética e a perspectiva dos direitos humanos tornam mais horizontais e colaborativas as relações entre médicos, equipes multiprofissionais, pacientes e familiares, em uma época em que nenhum profissional detém todas as respostas e os pacientes assumem com convicção a sua vontade de participar de decisões sobre a sua saúde. É o que estamos vendo cada vez mais e esse é um bom caminho. As informações sobre doenças, saúde, tratamentos estão acessíveis na internet. Os pacientes então, naturalmente, vão questionar a adequação dos tratamentos, vão perguntar, querem saber e participar das decisões. Estão mais informados, mas a melhor informação deve vir do médico que cuida do paciente e da equipe multiprofissional. Podem aceitar ou não, podem ouvir outras opiniões, podem consentir ou retirar o consentimento, tudo isso são direitos dos pacientes.
O mesmo ocorre com os profissionais de enfermagem, fisioterapia, farmácia, nutrição, bioquímica, psicologia, serviço social. O trabalho advém cada vez mais multiprofissional e interdisciplinar. Todos têm consciência da importância do seu trabalho e passam a dividir a responsabilidade pelos resultados dos tratamentos, muitas vezes são os que se dedicam a maior parte do tempo aos cuidados do paciente internado ou mesmo ambulatorial. É preciso haver sintonia e respeito entre os profissionais das distintas categorias que exercem os cuidados.
IHU On-Line – Na prática cotidiana do Hospital, quais os desafios para aplicar os direitos humanos do paciente? Onde estão as maiores resistências e como superá-las?
Rogério Amoretti – Ainda não há da parte dos pacientes uma consciência clara de seus direitos humanos, principalmente entre a população mais carente, entre a população mais pobre que usa exclusivamente o SUS. E, também, nem sempre há a consciência do profissional sobre os direitos dos pacientes, ainda existem muitas atitudes paternalistas que julgam que o paciente deve aceitar sem discutir as indicações médicas para a realização de procedimentos, cirurgias e tratamentos.
O Conselho Federal de Medicina - CFM tem um papel importante divulgando o Código de Ética Médica e principalmente através de suas resoluções, pareceres e recomendações que mostram os direitos das pessoas na condição de pacientes. Mas isso tudo fica em uma esfera infralegal, não tem a força de lei. Há um grande trabalho a ser realizado para que essa consciência se expanda. Os profissionais de saúde precisam se informar cada vez mais sobre direitos dos pacientes e sobre bioética, eles têm um papel de grande importância nesse sentido, pois trabalham diretamente com essas pessoas.
Do lado dos pacientes, eles precisam se conscientizar das suas responsabilidades diante dos cuidados com a própria saúde. Devem colaborar e participar ativamente do processo do seu tratamento, pois é uma parceria necessária e indispensável a que reúne o paciente e o seu médico, a equipe multiprofissional de saúde, bem como os familiares, todos devem estar juntos e colaborar nessa hora. Isso também está previsto na Carta de Direitos dos Pacientes do GHC e no Projeto de Lei a que ela deu origem.
IHU On-Line – Dentro da perspectiva dos direitos humanos, é possível se pensar em limites para autonomia do paciente? Até onde, por exemplo, um paciente tem direito de decidir se quer ou não receber um determinado tratamento?
Rogério Amoretti – Embora a autodeterminação do paciente que esteja consciente seja um direito fundamental seu, há limites sim. A sua autonomia permite ao paciente consentir ou não com um tratamento ou procedimento, permite solicitar uma segunda opinião profissional, permite até retirar um consentimento já dado. Contudo, em relação à indicação técnica do procedimento, a escolha da melhor alternativa é do médico. O paciente não pode, pelo seu direito de autodeterminação, querer impor sua vontade para um tratamento que não esteja de acordo com a opinião e o conhecimento do profissional; isso extrapola o limite do seu direito. Também no caso de paciente menor, inconsciente ou incapaz, seu tutor ou representante legal não pode interferir impedindo a realização de procedimento que pudesse beneficiá-lo, se estiver expondo o paciente a um risco crítico.
Cada caso deve ser avaliado em seu contexto real, com suas alternativas e possibilidades. Um paciente adulto e consciente com um câncer, por exemplo, pode optar por não se submeter a uma quimioterapia, cirurgia ou radioterapia, está no seu direito, pode optar por viver a sua vida enfrentando a sua doença da forma que a sua vontade e consciência lhe dita, pode buscar terapias alternativas se for isso que desejar. Da mesma forma, um paciente religioso, Testemunha de Jeová, por exemplo, que se negue a receber uma transfusão de sangue, esse é um direito sobre a sua vida privada, que deve ser respeitado. Contudo, não há uma lei que diga isso, o que faz prevalecer certa confusão jurídica entre os pacientes e os profissionais que nem as recomendações do Conselho Federal de Medicina tornam claras.
No caso de uma criança, considerada incapaz legalmente, os pais, mesmo tendo preservado o seu próprio direito à crença religiosa na Constituição, não têm o direito de expor o filho menor a um risco, limitando tratamento necessário em caso de possibilidade de morte. Nesse caso, o profissional pode agir pela preservação da vida da criança e determinar a transfusão. Cada situação deve ser avaliada com todos os seus determinantes médicos, sociais, familiares e culturais. O Comitê de Bioética pode intervir como elemento consultivo de mediação, com o objetivo de proteger pacientes, familiares e profissionais, buscando esclarecer e valorizar eticamente esses determinantes.
IHU On-Line – No que consiste e como conceber um modelo ideal de parceria entre a equipe de profissionais da saúde e o paciente? E quais os riscos de uma parceria de caráter paternalista?
Rogério Amoretti – O paternalismo que predominou maciçamente nas relações médico-paciente até a década de 70 do século XX vem progressivamente perdendo terreno nessa relação, sendo substituído por uma relação cooperativa em que a parceria e a confiança da relação se fortalecem com a comunicação clara, a informação dos fatos e a solicitação de consentimento para os procedimentos e tratamentos. É um processo em que a judicialização dessa relação com ações contra médicos e estabelecimentos de saúde cresceu muito, fazendo repensar a situação. Também a bioética com sua intenção disruptiva de intervir nesses processos, mediando e esclarecendo conflitos, protegendo pacientes, familiares, profissionais e as próprias instituições, com cautela e firmeza na defesa da dignidade das pessoas e seus direitos, tem modificado para melhor esse panorama, embora ainda de forma incipiente.
A discussão sobre o valor da autodeterminação dos pacientes e a necessidade do seu consentimento em relação aos tratamentos propostos apresenta uma nova forma para a relação entre os profissionais de saúde e os pacientes. Necessariamente deve se basear na confiança e na colaboração, para melhorar os resultados e resgatar as melhores práticas na área da saúde. O paciente deve ser visto como pessoa, com seus valores, crenças, determinantes culturais e sociais, antes do que como corpo doente, doença a ser diagnosticada, doença terminal. Essa centralidade do paciente em todos os tratamentos e consultas deve ser considerada desde o início, fortalecendo os laços do profissional com ele e seus familiares. Também esses aspectos éticos da relação reduzem a judicialização das práticas.
IHU On-Line – O que existe no Brasil hoje acerca de legislação e ou regulamentação acerca dos direitos humanos do paciente?
Rogério Amoretti – É interessante notar que no Brasil existe um Código de Defesa do Consumidor, usado muitas vezes por pacientes que buscam direitos legais. Essa legislação cobre uma relação de consumo, mas não uma relação que dê titularidade de direitos enquanto paciente. Serve quando muito para a relação de compra e venda de um serviço de saúde, promove diferença e reclamação pecuniária. Existe também a Carta dos Usuários do SUS, que embora contendo alguns aspectos de direitos dos pacientes, fundamentalmente é uma legislação sobre acesso a serviços disponibilizados. Cada uma dessas legislações tem a sua importância, contudo não se igualam. O consumidor ou o usuário não englobam a condição maior e mais específica do paciente, daquela pessoa, de toda a pessoa atendida por profissional da saúde, médico ou não, seja em serviço público ou privado, ambulatorial ou hospitalar. No Brasil, não existe uma lei federal sobre direitos dos pacientes. Algumas leis estaduais de alcance limitado existem, como é o caso da Lei Mário Covas, em São Paulo, e outras.
O Conselho Federal de Medicina possui, no Código de Ética Médica, um capítulo muito importante sobre direitos humanos e, ao longo do Código que é deontológico, assinalando deveres dos médicos aparece, no enfoque dos deveres médicos, muitas situações que representam direitos a serem preservados para os pacientes. Além disso, em suas resoluções, recomendações e pareceres, o CFM tem sido um propulsor de valores éticos, um incentivador da bioética e da defesa dos direitos humanos dos pacientes, isso é inegável. Mas ele volta-se aos profissionais médicos, é dirigido à sua corporação, não aos pacientes. Contudo, todo o esforço do CFM esbarra na condição infralegal dos seus dispositivos, o que fortalece a necessidade de uma lei, sob a qual a atuação do Conselho ganhará ainda maior força e concretude.
IHU On-Line – Por que é importante uma legislação federal que regule esse campo? E quais os desafios?
Rogério Amoretti – Ao criar legislação sobre direitos dos pacientes, pacientes e profissionais estarão beneficiados, os primeiros por terem seus direitos protegidos e os segundos por terem garantidos esclarecimentos objetivos do seu campo de atuação, seus deveres, possibilidades e limites. Ao definir direitos e responsabilidades para os pacientes, estarão sendo definidos de forma clara os deveres dos profissionais. A segurança jurídica para os atendimentos dará confiança e a certeza para a prática, principalmente à categoria médica, a mais penalizada com essa falta de definição legal. O maior desafio agora é ampliar a discussão social sobre a necessidade de uma lei sobre direitos dos pacientes e ganhar apoios sociais que favoreçam a sua aprovação.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Rogério Amoretti – É preciso chamar a atenção para a importância do momento histórico que estamos vivendo no Brasil, em relação aos direitos humanos, a luta para afirmar e não deixar recuar os avanços conquistados nessa área e fazer avançar outros direitos ainda não firmados na legislação.
A Carta de Direitos dos Pacientes do Grupo Hospitalar Conceição deu origem ao PL 5559/16, futuro Estatuto do Paciente, que visa suprir uma lacuna na esfera dos direitos humanos, assim como aconteceu com o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Carta e o Projeto de Lei estão sendo por nós encaminhados para Conselhos Regionais e Federais, entidades da área da saúde, associações de classe e outras da sociedade civil, Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde. Já há um movimento significativo, mas ainda insuficiente de debate desse projeto na sociedade civil e com os movimentos sociais.
A Sociedade Brasileira de Bioética - SBB, por exemplo, sinaliza apoio ao PL e abriu importante espaço para a sua apresentação e debate no Congresso Brasileiro de Bioética que ocorrerá em setembro, em Recife. Estaremos lá levando essa discussão e conseguindo mais apoios para o Projeto, com a consciência que a bioética deve ser clínica e social, fundamentalmente comprometida com a dignidade das pessoas, com seus direitos humanos em geral e com seus direitos enquanto pacientes em particular.
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Direitos humanos do paciente: respeito e dignidade ao sujeito no momento da dor e da doença. Entrevista especial com Rogério Amoretti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU