22 Fevereiro 2017
“Cada um de nós não é apenas ‘uma vida’ determinada por parâmetros biológicos, mas é uma pessoa com relações, comunicação, afetos, e há uma qualidade de vida que não pode ser reduzida a quantidade de dias.”
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 21-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando Samuel Huntington teorizou o “choque de civilizações”, nestas colunas eu ousei preconizar que, na Itália, não ocorria esse choque, mas que viveríamos, em vez disso, um choque de éticas: até algumas décadas atrás, de fato, a ética cristã católica era, em grande parte, inspiradora também da ética laica, mas, na era do pluralismo, apareceram na nossa sociedade éticas diversas.
Assim, nestes anos, assistimos a um confronto duro, marcado por ideologias e desprovido daquela serenidade que seria desejável para realizar um caminho de humanização compartilhado por pertencentes e não pertencentes a religiões diferentes. Na Itália, no ano passado, o tema divisivo era o das uniões civis, e o mundo católico militante deu batalha até o fim, sofrendo, depois, o resultado de uma lei considerada por ele contrária à ética católica.
Atualmente, o choque está ocorrendo, pelo menos por enquanto com tons menos acesos, em torno da legislação prevista sobre o testamento biológico e sobre os tratamentos do fim da vida. Um debate, é preciso dizer com clareza, que continua sendo difícil em um país onde falta uma cultura do alívio da dor, onde o acesso aos cuidados paliativos continua sendo lacunoso e, em algumas áreas, praticamente ausente, em uma sociedade em que não há informação nem educação sobre o morrer e onde já se perdeu a sabedoria e a naturalidade com que, no passado, se abordava esse desafio.
Os militantes do direito à eutanásia, assim como os da vida a ser conservada a todo o custo, por enquanto, não parecem empenhados em fornecer um discurso convincente e articulado, mas parecem preocupados, por um lado, com cada haja uma lei sobre a matéria, por outro, em vez disso, que ela não seja absolutamente promulgada.
Quando se escuta “o povo”, constata-se um medo surdo e mudo ao abordar esse assunto. Há, sim, remoção da morte, mas sobretudo um grande temor daquilo que poderia acontecer, por falta de confiança nos médicos e nas estruturas de saúde: a maioria teme uma extensão abusiva do direito à eutanásia, uma espécie de prática da morte causada por razões econômicas, isto é, contra as pessoas idosas em prol da coletividade; mas também dá medo a ideia de acabar nas mãos de pessoas que decidem sem ouvir as razões do paciente e dos familiares, e que querem prolongar os tratamentos de acordo com o seu julgamento ou por interesses alheios ao moribundo.
Hoje, existe a consciência do direito de morrer com dignidade, sofrendo o mínimo possível, e esta, unida à centralidade adquirida pelo sujeito humano na nossa cultura, requer tanto o testamento biológico quanto uma normativa sobre os tratamentos do fim da vida.
De minha parte, considero necessário e urgente que os cidadãos sejam autorizados a redigir um “testamento biológico” ou uma “declaração antecipada”, que tenha relevância legal que especifique as condições desejadas para o próprio fim da vida. Infelizmente, até agora, um procedimento deste tipo teve fortes oposições de alguns setores da Igreja italiana, mas se deveria reconhecer que, em vez disso, os bispos das Conferências Episcopais tanto da Alemanha quanto da Suíça convidaram os seus fiéis a redigirem um biotestamento cristão, inspirando até mesmo as suas modalidades: em particular, se trataria de especificar se se aceita ou não a administração de medicamentos para aliviar a dor, mesmo quando estes tivessem como efeito colateral a abreviação da vida do paciente, e de indicar se se deseja que os tratamentos para o prolongamento da fase terminal da vida sejam deixados de lado ou suspensos quando a sua eficácia fosse reduzida para simplesmente retardar o momento da morte.
A contraposição entre considerar a alimentação e a hidratação artificiais como sustento vital a ser administrado sempre e em todo o caso e, por outro lado, considerá-las como tratamentos que podem ser suspensos, na minha opinião, é radicalizada e artificial. Todos sabemos que a alimentação e a hidratação são sustentos vitais, mas, em algumas circunstâncias – como quando requerem uma intervenção cirúrgica ou um ato médico invasivo –, podem se tornar pesadas, desproporcionais e causa de mais sofrimentos, até se configurarem como obstinação terapêutica, o que requereria a sua suspensão.
Nesse ponto, há o risco de introduzir uma casuística – dentre outras coisas, sujeito a conhecimentos terapêuticos e recursos técnicos em contínua evolução –, na qual a moral não consideraria, acima de tudo, o sujeito moribundo nem a sua dor, mas sim a pertinência de um tratamento específico em relação à lei geral. A ética cristã diz “não” a tratamentos médicos desproporcionais, sabendo muito bem que a lei não pode normatizar todas as situações, presentes e futuras. Em vez disso, se tratará de avaliar caso a caso, com atenção para a situação geral do paciente, ouvindo a sua vontade e a própria consciência.
Pio XII, em um discurso aos médicos católicos em 1957, já distinguia entre meios “ordinários” e “extraordinários” para preservar a vida e declarava como direito do paciente a renúncia à obstinação terapêutica. Por isso, o Catecismo de João Paulo II também afirma que “a interrupção de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionais aos resultados esperados, pode ser legítima. (…) Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o fato de não poder impedi-la” (CIC 2.278). Segue-se daí que o recurso à sedação paliativa contínua, quando foram tentados sem sucesso todos os recursos médicos disponíveis, é moralmente possível, porque o objetivo é aliviar a dor, não a eutanásia, que é sempre vontade precisa de pôr fim à vida do paciente.
Parece evidente para todos que, aqui, a fronteira entre ética cristã e ética laica é realmente sutil, e pode se desencadear em ambos os lados a tentação da hipocrisia, que desencadeia o julgamento e a condenação. Por isso, é importante a aliança entre o paciente, o seu fiduciário, o médico e os familiares: que o paciente não seja deixado sozinho para decidir o seu destino – com a eventualidade de desencadear o recurso ao suicídio assistido –, mas que interajam com ele, acima de tudo o médico, que pode discernir “com ciência e consciência” as reais possibilidades de vida e de morte do paciente, e, depois, os familiares, as pessoas próximas ao paciente, começando com aquelas que o paciente eventualmente indicou como seu representante no testamento biológico. Uma aliança na qual o paciente deve ter a prioridade, com o seu sofrimento e o seu desejo expressado também antecipadamente, e onde entram em jogo a consciência dos médicos e dos familiares.
Cada um de nós não é apenas “uma vida” determinada por parâmetros biológicos, mas é uma pessoa com relações, comunicação, afetos, e há uma qualidade de vida que não pode ser reduzida a quantidade de dias. É claro, ninguém deveria ser obrigado a redigir o próprio testamento biológico ou a traçar o “planejamento antecipado dos tratamentos”, mas que a lei saiba acolher aqueles que querem declarar antecipadamente essa escolha, que ela favoreça a aliança médico-paciente-fiduciário, que deixe espaço para a consciência e que garanta tratamentos paliativos especializados e de qualidade acessível a todos, independentemente da renda ou do local de residência. Disso depende a qualidade da vida de cada um, quer seja doente ou saudável.
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A dignidade do fim da vida. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU