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11 Fevereiro 2016

“Morte feliz: isso significa “eutanásia” em sua origem e etimologia, embora os nazis tenham degradado seu sentido ao utilizá-lo para designar suas práticas de extermínio, de morte infeliz. Morte feliz, ou eutanásia, significa morrer sem tristeza e sem dor, ou com o mínimo de tristeza e de dor inevitáveis. Morrer em plena consciência. Despedir-se serenamente dos seres queridos. Assumir sem angústia a pena da separação; na pena há consolo, na angústia não; a pena não impede a felicidade, a angústia sim“, escreve José Arregui, teólogo, em artigo publicado por Religión Digital, 09-02-2016. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o artigo.

Nestes dias reli o último livro de Hans Küng, ainda não traduzido ao espanhol, um texto breve do ano de 2014 com o qual, aos seus 86 anos, afligido por um Parkinson progressivo, quis coroar sua vida e toda a sua obra. O título constitui mais do que um mero testamento vital, um programa de vida: “Morte feliz”. Contradição? Melhor, paradoxo da vida, que só pode ser feliz doando-se. Paradoxo da morte que se faz doação e se torna decisão, expressão, culminação da vida. A morte pode ser feliz, pois a vida que se dá não morre. Isso te parece um jogo de palavras vazio? Para Hans Küng é o horizonte que ilumina sua vida inteira, incluída a morte. Sabe do que fala, pois a isso consagrou suas inesgotáveis energias físicas, emocionais, intelectuais, espirituais.

Morte feliz: isso significa “eutanásia” em sua origem e etimologia, embora os nazis tenham degradado seu sentido ao utilizá-lo para designar suas práticas de extermínio, de morte infeliz. Morte feliz, ou eutanásia, significa morrer sem tristeza e sem dor, ou com o mínimo de tristeza e de dor inevitáveis. Morrer em plena consciência. Despedir-se serenamente dos seres queridos. Assumir sem angústia a pena da separação; na pena há consolo, na angústia não; a pena não impede a felicidade, a angústia sim.

Morrer em profundo assentimento a toda a vida, aceitando tudo, dizendo sim a tudo, também aos ferimentos sofridos e, o que é muito mais difícil, aos ferimentos infligidos: não tenho sido perfeito, eu o sinto, mas a isto cheguei, e assim está bem; gostaria que muitas coisas tivessem sido melhores, mas está bem assim como está; digo sim a tudo, sem justificar nada. Dizer: “Minha obra está acabada: aqui vo-la deixo”. E não faz falta que seja uma “grande obra”, como a de Hans Küng, nem ninguém pode medir a grandeza da obra pelo tamanho ou o número ou a qualidade dos livros escritos, nem pelo êxito obtido, ou o influxo exercido. Coroar a vida humildemente. Morrer em paz. Pois bem, como pessoa que crê, pensador e humanista, afirma Küng: no momento em que minha vida já não possui para mim qualidade humana suficiente, posso e devo escolher essa “morte feliz”, digna, bela, boa. Morte irmã, não inimiga. Há um tempo para viver e um tempo para morrer. E eu não posso, devo dizê-lo responsavelmente. “O ser humano tem o direito de morrer quando não tem nenhuma esperança de seguir levando o que segundo o seu entender é uma existência humana”. Recusar, prolongar indefinidamente a vida temporal faz parte da arte de viver e da fé na vida eterna. Já se havia pronunciado no mesmo sentido faz 20 anos, em 1995, em outro livro (Morrer dignamente, Trotta 1997), escrito em colaboração com seu amigo e colega Walter Jens.

Assistimos a uma mudança radical de paradigma. A legislação social dos diversos países - com contadas exceções como Holanda e Suíça – sofre ainda de um grande atraso com respeito à opinião social. E o atraso é maior no caso da hierarquia eclesial. Sustentar, como sustenta, que só é lícita a “ajuda passiva” (desconectar um aparelho de alimentação ou de respiração, por exemplo) não deixa de ser uma ficção. Há tanta diferença entre desconectar um aparelho e proporcionar uma dose maior de morfina que me levará à morte ou a descanso final? A hierarquia eclesiástica corre o risco de voltar a equivocar-se, como se equivocou a propósito dos métodos contraceptivos ou de fecundação chamados “artificiais”.

Escolher a morte de maneira humana é a forma final de escolher a vida de maneira humana. E a humanidade não está definida nem ditada por uma divindade exterior nem representada por nenhuma religião. Quem crê deveria desejar uma morte feliz como definitiva doação confiada de si à Realidade primeira e última, como trânsito à Realidade profunda, à Realidade Fonte, à Vida sem origem nem fim. Dizer que não podemos escolher a more porque não somos donos da vida é uma fraude máxima.

Não somos donos da vida nem da morte, mas somos responsáveis pela vida e, portanto, também pela morte, e aqui não é decisiva a distinção entre quem crê o descrente. Não só podemos, senão que devemos escolher responsavelmente – digo responsavelmente – quando e como morrer, sem outro limite que nosso bem-estar e o bem-estar comum, começando pelo das pessoas mais chegadas. E os médicos e as pessoas mais próximas deveriam poder atender a demanda de quem livremente lhes pede - ou de quem livremente teria deixado expressa essa demanda – uma ajuda para bem morrer. É uma exigência do cuidado da vida, e não há outro mandato divino nem outra divindade senão a Vida, o Cuidado, a Bondade e o Bem Viver.

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