29 Novembro 2016
“É preciso conquistar a capacidade de ajudar aqueles que estão prestes a se despedir da vida e de acolher com coragem também a própria morte. Da ‘morte por piedade’, encontra-se a ‘piedade por quem morre’.”
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 27-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Gilgamesh já era forçado a descobrir a inevitabilidade da morte, apesar da vã terapia com o vegetal marinho da Ilha dos Bem-aventurados, enquanto o antigo Harpista egípcio fazia tremer as cordas do seu instrumento, entoando o mesmo canto amargo. No entanto, a Beauvoir de “A morte suave” também não estava errada quando confessava que “não existe uma morte natural: daquilo que acontece com o homem, nada é natural, porque a sua presença põe em causa o mundo”. Precisamente por isso, é sábia aquela dose de cautela e de humildade que Zagrebelsky sugeria em um artigo: “Sobre estas questões últimas, sempre somos penúltimos. São discursos ‘no estado’ das próprias reflexões atuais. Cuidado com a segurança. Nas questões desse tipo, a problemática é um dever”.
Embora com uma necessária e fundada bagagem de certezas, Dom Vincenzo Paglia, figura eclesial que não exige notas biográficas, porque nunca hesitou em se assomar para além das fronteiras do perímetro sagrado, adotou o conselho do jurista não crente. É assim que ele pode falar a todos com o seu livro que já teve uma rica bateria de resenhas e que agora eu gostaria de repropor de forma muito livre e simplificada, na convicção da validade do numquam satis latino, isto é, da permanente insuficiência do discurso em torno dessa “irmã” avassaladora que traz um nome que se tornou, muitas vezes, impronunciável até mesmo nas pregações, Morte.
Paglia, surpreendentemente, embora recorrendo no título a Francisco de Assis, decidiu abrir o seu discurso com “A morte moderna”, um romance do sueco Carl-Henning Wijkmark, publicado em 1978, mas traduzido ao italiano apenas em 2008, pela editora Iperborea. Trata-se de uma espécie de parábola sobre o “desvio totalitário do sistema democrático quando se esquece do primado intangível da pessoa humana”.
É um pouco esse o horizonte dentro do qual deve-se colocar também a questão da morte, evitando todo excesso de dogmatismo ideológico a partir de qualquer ponto de vista que se abordem as perguntas. O certo é que, nos nossos dias nos quais a própria semântica da palavra “eutanásia” sofreu uma torção eufemística em relação àquela que era comumente adotada antes, a cautela que mencionávamos acima parece se atenuar cada vez mais, introduzindo um “eutanasiasmo” sem hesitação.
Como observava Daniel Lamb no seu ensaio Down the Slippery Slope, de 1988, parece que “os moribundos acabam em uma situação em que são forçados a expressar o seu ‘desejo de morrer’ como o cumprimento de um último dever das boas maneiras em relação aos vivos”. Não devemos, porém, esquecer que, na realidade, quando o filósofo Bacon, no seu “Progresso do conhecimento” (1605), tirava o pó do vocábulo greco-latino euthanasía, ele o usava como apelo aos médicos para que não abandonassem os doentes incuráveis à morte, mas os ajudassem a sedar os seus sofrimentos (na prática, um recurso também aos cuidados paliativos).
Paglia, naturalmente, se coloca no outro lado em relação àquilo que teve como reviravolta emblemática o “Manifesto sobre a eutanásia”, publicado por cerca de 40 cientistas (incluindo os Nobéis Monod, Pauling e Thompson) na revista The Humanist de julho de 1974. No entanto, ele faz isso se menosprezos polêmicos, tentando registrar e analisar também aquele impulso que parece estender cada vez mais o consenso muitas vezes instintivo e emotivo sobre tal prática.
É um panorama que acolhe também um teólogo como Hans Küng, que dedicou ao tema muitas páginas ate o último Morire felici? [Morrer felizes?] (Rizzoli, 2015), atento, porém, a evitar o termo Euthanasie (que ecoa o infame programa nazista “Aktion 14”, chamado também de “programa eutanásia”) e a usar a palavra Sterbehilfe, “ajuda para a morte”, atestando-se mais à fronteira da vida. Um panorama que acolhe cada vez mais atores e eventos inesperados: o livro de Paglia acabou de ser publicado, mas já se deve anexar o testemunho surpreendente do arcebispo anglicano Desmond Tutu e a decisão belga da eutanásia para um menor de idade.
Pois bem, a análise conduzida pelo bispo Paglia não hesita em desfolhar todas as pétalas dessa flor incandescente, mas partindo de uma visão antropológica geral, de modo a manter sempre fixa a barra de uma abordagem personalista, evitando – como dizíamos – toda obstinação não só terapêutica, mas principalmente ideológica.
Apenas para exemplificar, pense-se na oscilação entre o “direito” e o “dever” de viver e morrer, no individualismo isolacionista, na solidão do moribundo (uma pena que não se cite no livro aquela obra-prima que é a “Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, do qual, porém, é evocado uma esplêndida passagem de “Guerra e paz”), na dignidade da morte, na delicada questão da autodeterminação com o relativo testamento biológico, na medicina paliativa até morrer acompanhado.
Uma análise realizada também com base em uma vasta bibliografia, sinal de uma escavação prolongada, capaz também de levar em conta as curvas de atenção do leitor não especializado, através da inserção sábia de exemplos e de citações, e de um ditado muito límpido.
Mas o percurso não se esgota na investigação e na avaliação crítica dos componentes múltiplos e, muitas vezes, candentes do problema. O cristianismo tem uma hermenêutica própria da vida e da morte que Dom Paglia sintetiza em um capítulo, mas que ramifica também no mapa do seu exame geral (veja-se a seção sobre as “realidades últimas”).
Talvez poderia ter sido organizado melhor o sistema global do ensaio, desenvolvendo ainda mais esse horizonte específico cristão que tem a sua originalidade em relação a outras definições religiosas. O certo é que, na raiz, sempre há uma fisionomia particular atribuída à pessoa humana, captada na sua transcendência, mas também na imanência da sua relação consigo mesma e com o outro, razão pela qual a morte é “íntima” (como diz o título do belo livro de Marie de Hennezel no original francês, que se tornou “Morte amiga”, na versão italiana da editora Rizzoli), mas também comunitária, porque “nenhum homem é uma ilha, inteiro em si mesmo”. É até mesmo mistério, como já afirmava um agnóstico, o filósofo Jankélévitch no seu texto de título lapidar, “A morte” (Einaudi, 2009).
Um mistério que é inseparável do mistério da vida, como escrevia a doutora inglesa Iona Heath, autora de Modi di morire [Modos de morrer] (Bollati Boringhieri 2008): “Se desviarmos os olhos da morte, prejudicamos também a alegria de viver: quanto menos percebemos a morte, menos vivemos”. Só assim se forma a própria interioridade, até conquistar a capacidade de ajudar aqueles que estão prestes a se despedir da vida e de acolher com coragem também a própria morte. Da “morte por piedade”, encontra-se a “piedade por quem morre”.
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Acabar em boa companhia. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU