Por: Patricia Fachin | 25 Mai 2017
Apesar de as recentes delações dos executivos da JBS e dos desdobramentos da Lava Jato terem aprofundado a crise política e reforçado a tese de que o sistema político brasileiro está corrompido, as causas da crise atual podem ser verificadas ao se fazer uma retrospectiva no tempo, voltando, por exemplo, ao ano de 1988, quando a Constituição foi promulgada, sugere Diego Viana, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
“Desde que foi adotada a Constituição, aos poucos foi se organizando um sistema pelo qual determinados grupos garantiram seu quinhão de poder, os partidos encontraram modos de se financiar e se perpetuar nos cargos eletivos (mais ainda: de distribuir esses cargos entre si quando alguém importante fica de fora), ao mesmo tempo que o PIB encontrou mecanismos razoavelmente confortáveis para garantir que seus interesses fossem atendidos pelos sucessivos governos. Esses arranjos pareciam funcionar muito bem (quando enfim deixam de funcionar, como é fácil dizer que são capengas!), tão bem que puderam acomodar até mesmo aquela que foi um dia uma tonitruante oposição de esquerda”, avalia.
Segundo ele, a crise atual “parece indicar” que os “arranjos” estabelecidos ao longo dos últimos quase 30 anos, como as relações do sistema partidário com o poder econômico, e as relações de forças políticas regionais com a burocracia federal “estão mudando”. Mas, apesar disso, lamenta, há um “esgotamento das forças políticas de quem se espera que rompam com essa lógica, que introduzam uma novidade de fato em relação a esse Brasil oligárquico, o Brasil do patrimonialismo estamental”. A consequência, frisa, é que a falta de alternativas políticas para romper com a “perpetuação de feudos” “nos deixa um pouco desorientados: para onde ir agora? Pelo menos no curto prazo, não há resposta disponível”.
Nesta entrevista, Diego Viana analisa a atual conjuntura brasileira à luz de alguns acontecimentos históricos, comenta os “sinais de esgotamento” da Nova República manifestados em junho de 2013 e as consequências políticas e sociais do “patrimonialismo” denunciado por Raymundo Faoro.
Diego Viana | Foto: Arquivo Pessoal
Diego Viana é graduado em Economia, e mestre em Filosofia. Atualmente cursa doutorado no programa Diversitas da FFLCH-USP e no Laboratoire du Changement Social et Politique (LCSP) da Universidade Paris Diderot (Paris VII). Também é membro do Grupo de Estudos Iconomia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você compreende a crise pela qual o Brasil passa atualmente?
Diego Viana - Nesse turbilhão que o país virou, é difícil fazer afirmações conclusivas. A primeira impressão que temos é que se abriu a porta atrás da qual estavam escondidas todas as nossas contradições, todos os nossos fantasmas, nossos horrores. Mais ou menos como no mito de Pandora. Essa impressão me parece correta, e seria o resultado do abalo sofrido, talvez um início de ruína mesmo, por uma série de arranjos em que se sustentou a dita "Nova República" até agora. Uma tarefa, neste momento, é enumerar esses arranjos, estimar o quanto cada um está comprometido, identificar as causas desse abalo e começar a especular sobre o que se vai reconstruir, em quanto tempo e passando por que caminhos. Já há quem diga que a Nova República acabou e só falta enterrar. É possível, mas em todo caso vai ser necessário mudar muito o modo de funcionamento do sistema político para evitar que o cenário se perpetue ou descambe para algo ainda pior, como uma solução messiânica ou bonapartista.
Quando falo em arranjos, estou usando um termo genérico para me referir a vários mecanismos diferentes: a conexão do sistema partidário com o poder econômico, o controle sobre o quotidiano das cidades e a estrutura fundiária, as relações entre forças políticas regionais e a burocracia federal... Desde que foi adotada a Constituição, aos poucos foi se organizando um sistema pelo qual determinados grupos garantiram seu quinhão de poder, os partidos encontraram modos de se financiar e se perpetuar nos cargos eletivos (mais ainda: de distribuir esses cargos entre si quando alguém importante fica de fora), ao mesmo tempo que o PIB encontrou mecanismos razoavelmente confortáveis para garantir que seus interesses fossem atendidos pelos sucessivos governos. Esses arranjos pareciam funcionar muito bem (quando enfim deixam de funcionar, como é fácil dizer que são capengas!), tão bem que puderam acomodar até mesmo aquela que foi um dia uma tonitruante oposição de esquerda.
Mas eis que algo aconteceu para emperrar esses mecanismos. Aí surgem as maiores dúvidas: foi uma causa só ou foram múltiplas? Como elas se encadeiam, ou seja, o que precipitou o quê? Será, por exemplo, que o fim do ciclo virtuoso da economia levou à insatisfação precipitada em 2013, que levou ao abandono do governo Dilma Rousseff pela base aliada, que levou a operação Lava Jato ao centro do noticiário e assim por diante? Ou será que tudo começa com o célebre e-mail de Dilma justificando a compra de Pasadena, que por sua vez inflou a Lava Jato, que por sua vez paralisou a economia...? Ou ainda, será que tudo não passa de um spin-off de House of Cards, em que Temer e Cunha conspiraram para salvar a própria pele entregando Dilma aos lobos? E por aí vai.
Um dos motivos pelos quais todo mundo parece ter a resposta definitiva, sendo capaz de demonstrá-la peremptoriamente, é que, a esta altura, qualquer das sequências é verossímil. Por outro lado, alguns elementos de resposta parecem existir com certo grau de segurança. Primeiro, existe uma mudança na estrutura produtiva que se reflete nas relações de poder tanto do lado do capital quanto do trabalho: a desindustrialização desfavorece, por exemplo, movimentos sindicais; e fortalece grupos que prefiram um câmbio supervalorizado (exportadores de commodities) a grupos que prefiram câmbio desvalorizado (exportadores de manufaturados).
Segundo, ao longo do último ciclo de crescimento, houve uma inclusão social que, parcial e limitada que tenha sido, aumentou as expectativas de boa parte da população, ao mesmo tempo que encarecia certos serviços pessoais que a classe média toma por naturais e sem os quais pensa que não pode viver. A interrupção desse processo de inclusão, ainda que seja apenas o desnudamento de uma fraude, como acreditam muitos, não tem como não ser traumática.
Terceiro, a população já não cresce no ritmo de décadas passadas, a dinâmica das migrações internas também mudou, as cidades não vão mais se expandir como antes... tudo isso faz com que as demandas e as reivindicações da população mudem: as novas gerações têm expectativas e articulações de outra natureza em relação aos lugares onde moram, ao que podem atingir, ao que esperam do país, de sua própria formação e do trabalho que vão exercer. Isso vale tanto para camadas mais baixas da população, que reivindicam melhorias no transporte público, quanto para classes médias mais afluentes, que desejam um sistema político mais transparente.
Tudo isso para ficar só nas dinâmicas locais, sem mencionar o cenário internacional, a começar pela reversão do curso das commodities, a entrada da China como novo motor industrial, baixando salários de operários mundo afora, e a dominância de uma ideologia extremista que entrega todo o poder decisório nas mãos de alguns conglomerados transnacionais, ao mesmo tempo em que favorece o aumento da desigualdade. Tudo isso atinge o Brasil e exige respostas que o país não parece pronto a dar, nem a esquerda representada pelo PT, que permaneceu presa a um desenvolvimentismo em formato incompatível com a fronteira da economia global hoje; nem muito menos a direita, que, debaixo de uma retórica liberal tão insincera quanto tem sido desde 1822, implementa políticas que favorecem grupos bastante específicos de poder: note-se como é fácil para planos de saúde, bancos, grupos de comunicação, latifundiários e mineradoras safar-se de multas, dívidas e punições.
A crise atual parece indicar que os tais arranjos são dependentes de condições que estão mudando. O sistema eleitoral brasileiro é caríssimo e favorece a perpetuação de feudos, além dessas propinas cujos valores estamos conhecendo mais de perto agora e que, a bem dizer, expressam mais do que qualquer outra coisa a promiscuidade entre o poder econômico e o político, o público e o privado, ou seja, o proverbial patrimonialismo (estamental, inscrito na estrutura dos cargos do Estado) de que falava Raymundo Faoro. Os principais mercados do país são oligopolizados, dos bancos de varejo à telefonia celular, passando pela alimentação (basta ver o caso da carne) e a construção. Com isso, os preços são altos e a qualidade, baixa. O mesmo vale para os meios de comunicação, comandados por meia dúzia de famílias. O transporte público nas maiores cidades também é dominado por um punhado de empresas que enxergam o usuário do serviço como fonte de receitas fáceis, daí a desfaçatez com que enlatam a população como sardinha.
Aproveito este último ponto para começar a falar das coisas que ainda são muito nebulosas e disputadas, e das quais deveríamos falar com menos convicção do que tem sido o caso. Acho que não é acaso nenhum que os protestos de 2013 tenham começado com os atos do Movimento Passe Livre - MPL. No plano da vida urbana, o tema do transporte público é uma espécie de nó górdio da crise brasileira, não no sentido de "momento de crise", mas no sentido de "aquilo que, neste país, é crítico". Mal comparando, o achatamento da qualidade de vida nas cidades, cuja primeira instância é justamente o transporte, ou a possibilidade física de ir e vir, corresponde, no plano da vida rural, à devastação dos meios de vida do Cerrado e da Amazônia, em nome de uma subjugação total à agricultura de grande escala. Quando desatarmos esse nó, acredito que veremos muita coisa mudar no país, começando pelo direito à cidade, naturalmente, mas se espalhando para a lógica das relações sociais e chegando até a política. O transporte público tem uma influência enorme sobre o desenho das cidades, porque determina como cada categoria de trabalhadores vai poder viver, relativamente à cidade, quando não está trabalhando.
Some-se a isso o tema da violência policial, que teve um papel determinante naquele momento, impulsionando a revolta para níveis inesperados e dando início a um processo que terminaria com a direita tomando as ruas, e desta vez aplaudindo a violência policial, tirando fotografias com PMs, excluindo da pauta tudo que se referisse ao direito à cidade e centrando fogo no PT. O contraste é tão impressionante que não se pode deixar de concluir que algo aconteceu nesse meio-tempo.
E, de fato, é sobre esse "algo" que aparecem as maiores controvérsias. Note-se como a narrativa petista hegemônica afirma que 2013 foi a eclosão do fascismo no país, pura e simplesmente, e se associa à nossa direita mais raivosa na denúncia dos "black blocs" como se tudo se resumisse às cenas de embate com a polícia repetidas pela TV à exaustão. A direita foi ainda mais cara de pau: apagou, sem mais, todo aquele episódio de sua leitura dos acontecimentos, a ponto de a Folha de S. Paulo ter dito que uma das manifestações pelo impeachment foi a maior da história do Brasil, esquecendo que no ano anterior São Paulo inteira tinha ficado tomada de manifestantes, enchendo simultaneamente as avenidas Paulista, Faria Lima e Berrini: foi um dia em que, na Marginal Pinheiros, motoristas desligaram seus carros e saíram, simplesmente, porque de fato a cidade parou.
Portanto, temos duas coisas que ainda vai ser preciso explicar, e que vai demorar muito tempo para entendermos: como se deu essa virada e por que tanto de um lado quanto de outro os maiores atores precisam apagar (direita) ou falsear (esquerda) o ponto de partida do processo, sem o quê não conseguem chegar a uma narrativa que lhes convenha.
Por ora, uma coisa que pode ser dita é a seguinte: os cartéis de transporte Brasil afora tiveram um tremendo de um alívio, e hoje estão rindo à toa. Estiveram sob ameaça por um breve momento, mas hoje estão a salvo, desde que tanto a direita quanto a esquerda (eleitorais) se uniram para evitar que eles fossem atingidos. Hoje, falamos em JBS, falamos em Petrobras, falamos em Odebrecht, mas o assunto "cartéis do transporte" foi enterrado lá no fundo, bem abaixo das querelas entre coxinhas e petralhas. A gente se esgoela e eles riem, em resumo.
Não é nenhum absurdo ficar perplexo diante desse quadro. Fazendo-se de inocente para realçar o absurdo dos arranjos políticos em que a Nova República se sustentou por um quarto de século, poderíamos alçar as sobrancelhas e perguntar: por que um partido de esquerda, tão estruturado e forte, uma vez no poder, não quis aproveitar a breve janela de oportunidade aberta para quebrar uma das maiores fortalezas do poder patrimonial do país, quando finalmente pôde se alimentar da proverbial "força das ruas"?
A resposta é evidente, claro, sobretudo depois das revelações da Lava Jato: a fonte do poder do partido em questão há muito tinha deixado de ser a militância e mesmo o eleitorado, passando aos próprios grupos de poder patrimonial. Isso ficou evidente naquele momento, de modo que, para a esquerda, seguir sustentando o PT como governo se tornou um anacronismo; não por acaso, as manifestações contrárias ao impeachment nos anos seguintes foram fracas e sem convicção: "fica, mas melhora" não é exatamente uma palavra de ordem que arregimente os corações.
Só que, uma vez aberta a porteira das manifestações de rua, se as pautas que associamos à esquerda estão suprimidas, o que resta são as pautas da direita. Se o PT não soube ler a janela de oportunidade, o mesmo não se pode dizer de Paulo Skaf [presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp)], por exemplo, que viu ali um trampolim político. Aliás, quando começaram a se espalhar manifestações contra Dilma, Lula, o PT, a esquerda como um todo, eu apostaria que todo o espectro político imediatamente enxergou a chance de restaurar a normalidade perdida no ano anterior: bastaria, de um jeito ou de outro, oferecer em sacrifício, ou melhor, oferecer como boi de piranha, aquela estrela vermelha já emaciada. Dali por diante, seria possível tocar em frente. Posso imaginar um líder político qualquer vendo toda aquela gente protestando com camisa da CBF, carregando patos da Fiesp e tirando fotografias com a Polícia Militar, e pensando: agora é a minha chance. Afinal, ninguém em sã consciência associaria esses três símbolos acima (PM, Fiesp e CBF) ao combate à corrupção... antes o contrário.
Me parece que o erro está em acreditar que se pudesse voltar à normalidade, como se o que ocorreu em 2013 tenha sido o "raio em céu azul" de Victor Hugo. Pelo visto, acreditaram na narrativa capenga que tinham criado para se favorecer. A Nova República já vinha dando sinais de esgotamento e algumas das causas são essas que mencionei acima. Os arranjos simplesmente não podem mais se manter intactos.
Como sustentar um sistema de propinas tão caras se a economia não cresce mais tão rápido e a população tampouco? Como manter um programa de investimentos como quis fazer o governo Dilma, principalmente em relação à Copa, se eles precisam custar o suficiente para sustentar tanto o poder dos oligopólios quanto o das oligarquias partidárias? Como continuar aumentando as tarifas de ônibus se o custo já é inviável para tantas famílias? Algo como 7 ou 8 milhões de pessoas estavam matriculadas em universidades privadas há alguns anos, passando maus bocados para pagar seus cursos. Imagine como se sentem ao não encontrar empregos, ainda terem dívidas, e verem estilhaçado o sonho de uma vida mais afluente do que a de seus pais, entendendo que fizeram um curso de péssima qualidade a um custo absurdo, enquanto os donos das universidades já não sabem mais o que fazer com tanto dinheiro. O que eles sentem é raiva, primeira face visível da frustração.
Um sistema desses não tem como voltar à normalidade. A tentativa vai levá-lo ao colapso. Infelizmente, não temos neste momento ninguém no sistema político que ofereça uma saída viável: o governo pretende manter rigorosamente os mesmos tipos de dominação patrimonialista do sistema econômico e político, mas eliminando o pouco que foi feito para mitigar seus efeitos mais deletérios, como o sistema previdenciário. (Isso se, até a entrevista ir ao ar, ainda se tratar do mesmo governo...) A esquerda se contenta com uma defesa inócua de algumas políticas sociais, que não dão conta das mutações do sistema econômico, e do "empresariado nacional", que não se vê como nacional, bem o dizia Fernando Henrique em sua época áurea. Eventualmente, o sistema político vai acabar recorrendo a alguma solução mágica e emergencial, que muita gente vê em Bolsonaro ou Doria, mas é possível que venha de alguma liderança religiosa. Em todo caso, não posso me dizer otimista. O que pode acontecer de diferente disso é um novo surto de crescimento a partir de uma virada da economia global, mas mesmo isso seria só um ganho de tempo.
IHU On-Line - O que você quer dizer ao afirmar que seria importante “pensar na dinâmica atual como um retorno à lógica geral da Primeira República”?
Diego Viana - Antes de mais nada, acho importante esclarecer que se trata de uma analogia de cunho heurístico. Ou seja, é uma estratégia para interpretar, em traços gerais, os modos de agir e pensar dos atores políticos, econômicos e sociais que "comandam" o desenrolar dos eventos. Não estou argumentando, claro, que haja uma efetiva volta a um período histórico, o que seria absurdo. Isso posto, usei a analogia com a Primeira República em dois textos e, no primeiro deles, consta um pequeno adendo: "se é que em algum momento ela foi de fato abandonada". Ou seja, a "lógica geral" (em seguida explico por que adotei essa expressão) da Primeira República diz respeito a um modo de atuação de setores das classes dominantes, que sempre, ou quase sempre, têm de compor com outras lógicas, disputar com elas, às vezes chegar às vias de fato contra elas, para fazer valer seus interesses. Adiante, especifico o que quero dizer com essa afirmação tão abstrata.
O que me parece particular na lógica da Primeira República e que pode servir para iluminar o momento atual? Pois bem, foi o momento em que oligarquias regionais, principalmente, mas não exclusivamente, as do Sudeste, tiveram o domínio mais imediato dos processos decisórios no país, tanto em termos de ocupação do Estado quanto em peso econômico. Chegaram a esse ponto quando se removeu o polo dito mais centralizador do tradicional pêndulo político brasileiro, até 1889 nas mãos da monarquia, e nos anos imediatamente seguintes com os presidentes militares, que também eram nacionalistas e centralistas (mesmo depois de entregar o poder aos civis, houve chefes militares que quiseram retomar o poder para aplicar uma filosofia positivista e centralista, como em 1904, coincidindo com a Revolta da Vacina).
Vale lembrar que o polo centralizador não tem nada de adorável, já que, em suas diferentes compleições, sempre carregou a ideia de construir uma nação e mesmo uma sociedade a partir do alto, por falta de uma população livre suficientemente volumosa e articulada. Depois de 1930, quando oligarquias golpearam oligarquias porque se sentiam deixadas de lado (e porque temiam que outros grupos chegassem ao poder), instala-se novamente um certo grau de tensão em que à força das oligarquias regionais se soma, ou se contrapõe, uma potência centralizadora, dessa vez somada a um impulso modernizador industrializante e a absorção do operariado urbano nascente por meio do que viria a ser conhecido como trabalhismo.
Na República de 1945-1964, essa mesma relação tensa prosseguiu até a ruptura do golpe civil-militar, quando, num primeiro momento, o discurso estava mais próximo da lógica específica das oligarquias regionais, mas em poucos anos o desenvolvimentismo centralizador voltou a ser preponderante. Depois do colapso do impulso modernizador, com a crise da dívida, a Constituinte buscou esclarecer muito bem o papel das três esferas da Federação, como demonstram os trabalhos de Marta Arretche; o texto reforçou enormemente, por exemplo, o papel dos municípios, que até então não eram nem sequer entes federativos. No entanto, até o Plano Real, é muito evidente o problema do poder dos governadores, "barões da Federação" na expressão de Fernando Abrucio, sobretudo em termos de política fiscal (e até monetária, já que a atuação dos bancos estaduais era para todos os efeitos uma forma de emissão); ironicamente, quem implodiu esse poder, reforçando novamente o papel da União, foi o governo FHC, embora o PSDB defenda um aumento do papel dos Estados (lembrando, com José Serra, que o Brasil se chama "Estados Unidos do Brasil", a não ser que isso tenha mudado...).
Assim, quando falo em "lógica geral" da Primeira República, busco resumir que estão enfraquecidos todos os demais polos que já compuseram com os interesses das oligarquias, ressalvando que não se trata mais de pensar simplesmente em oligarquias regionais e agrárias, como em períodos anteriores: uso o termo para me referir a qualquer pequeno grupo que domine um mercado e o faça operar em função de seus donos. Como eu disse, não é um retorno, mas uma nova etapa em que uma velha lógica se vê finalmente sem amarras.
Na Redemocratização, resumindo a argumentação de Marcos Nobre sobre o peemedebismo, pode-se dizer que houve duas correntes, sobretudo, exercendo o papel de "outras forças". Eram os grupos que tinham o papel de "organizar a bagunça", como disse FHC. Primeiro, o grupo de tucanos em torno de Montoro e Covas, que, não à toa, logo se associariam à "terceira via" de Blair e Clinton, buscando abrir o Brasil para o que havia de mais moderno então, ou seja, os mercados globais que começavam a desregular-se. Em seguida, o petismo que se convertia aceleradamente a uma Realpolitik sob a batuta de José Dirceu, consagrado na "Carta ao Povo Brasileiro" e na escolha de Henrique Meirelles para presidir o Banco Central.
Mas, como sabemos, o petismo foi sendo corroído aos poucos, desde o mensalão, até o colapso final com a derrubada de Dilma. Nesse meio tempo, já estavam compartilhando escovas de dentes com aquelas mesmas oligarquias contra as quais o partido tinha sido fundado. É sintomático, por exemplo, que até hoje Fernando Haddad, um dos quadros mais ilustrados que sobraram ao PT, considere que foi um erro definidor ter baixado a tarifa de ônibus em 2013. Nem lhe ocorre que o papel de um partido como o que deveria ser o PT era lutar precisamente pelo redesenho radical do sistema de transporte. Já os tucanos passaram por um processo um pouco diferente, na medida em que, sem efetiva base social, se tornaram um partido que em absolutamente nada deve aos demais partidos oligárquicos, organizados em torno de caciques e dos proventos que podem ofertar: basta ver as lideranças tucanas atuais, como Aécio Neves, Marconi Perillo, Geraldo Alckmin, Beto Richa...
O que sobrou? Pelo menos no curto prazo, o livre curso dos interesses mais particularistas, que, em parte, coincidem com os de outros períodos, como a independência e a República Velha: latifundiários, extrativistas, magistrados e outros altos burocratas muito bem pagos. Some-se a isso um mercado financeiro concentrado, um setor de transportes urbanos cartelizado, grupos econômicos travestidos de religiosos, aproveitando-se de isenções fiscais, e outros sistemas que atuam por meio da espoliação pura e simples do território e de seus habitantes, e você terá um retrato bastante abrangente do cenário político.
Outro motivo pelo qual essa analogia me parece esclarecedora é que, tanto naquele período como no atual, oligarcas aferrados mesquinhamente a seus quase-monopólios repetem como mantra uma retórica liberal em economia que, em suas bocas, soa como mentira descarada (e é). A descrição mais ilustrativa e sucinta dessa desconexão entre os interesses e o discurso, acredito, foi feita por Emília Viotti da Costa, ao falar das lideranças que comandaram o processo de independência, mas que acabaram achando melhor se escorar na figura de D. Pedro I, para evitar que o tal liberalismo deles acabasse se tornando um liberalismo de todos... Esses mesmos liberais passariam as décadas seguintes usando conceitos do liberalismo para defender a escravidão. Veja como caminhamos pouco...
Já a Primeira República é a era do Convênio de Taubaté, que sacramentou o papel do Estado brasileiro como foro de promoção dos interesses de um determinado grupo econômico (cafeicultores). Mas até hoje nos deparamos com economistas celebrando o período como extremamente liberal, aberto ao mundo, caracterizado por um Estado mínimo... Note-se que, mesmo nos projetos de reforma da economia brasileira atualmente propostos, os grupos que têm poder de pressão conseguem manter seus privilégios, como os militares e o Judiciário; não há hipótese de tornar a estrutura tributária mais progressiva e até hoje não encontrei nenhuma medida que favoreça maior concorrência, exceto entre trabalhadores. Em compensação, igrejas ganharão novas isenções, oligopólios no setor de saúde e no financeiro têm dívidas bilionárias perdoadas, e qualquer regra que busque controlar o desmatamento ou o genocídio de povos originários corre o sério risco de ser revogada. É o mesmo tipo de contradição descarada que havia no liberalismo da independência ou do "convênio de Taubaté", e por isso evoco a ideia de uma "lógica geral" que continua em operação.
Naturalmente, o motivo de tudo isso é que esses grupos de poder nunca foram efetivamente confrontados e desalojados de sua posição de poder. Tiveram que ceder em alguns pontos, sobretudo na medida em que o país se industrializava e urbanizava, mas foi só. Mesmo o Brasil mais industrializado reproduzia estruturas de promiscuidade entre o público e o privado cuja descrição bate perfeitamente com os argumentos de Raymundo Faoro sobre o patrimonialismo estamental. Daí o choque que foi a abertura da economia por Collor, expondo o empresariado dependente das benesses do Estado à concorrência internacional. Abertura esta feita por um... oligarca! Só que o cenário agora é de desindustrialização e desagregação das forças que ainda acreditavam em alguma modernização econômica do país. Assim, documentos como a "Agenda Brasil" e a "Ponte para o Futuro" são uma promessa de reforço dos poderes já instituídos, sem um pingo de transformação de fundo no país, e fazem pensar em pequenos "convênios de Taubaté" com nova roupagem (o exagero é intencional...). As caras da "renovação" da política brasileira aparecem em gente como o atual prefeito de São Paulo, que se diz gestor, trabalhador e "não político", mas passou a vida inteira operando essa mesma relação dúbia entre poder econômico e poder político, sem que nossas mentes mais bem pensantes se sintam escandalizadas, pelo contrário.
Torço muito para estar errado ao afirmar que tamanha restauração patrimonialista não tem como acontecer no Brasil sem uma carga brutal de violência. E torço para estar certo ao dizer que ela não tem como ocorrer: aquelas mesmas condições que citei na resposta à primeira pergunta tornam impossível administrar um país deste tamanho a longo prazo sem garantir um mínimo de condições de vida à classe média urbana, sem produzir uma força de trabalho suficientemente qualificada para o sistema produtivo informatizado do mundo contemporâneo, sem ter em vista que a devastação do território não pode ter mais lugar em tempos de mudança climática. Se continuarem tentando, falharão. O problema é que o preço provavelmente será pago por todos nós.
IHU On-Line - Você mencionou, em um artigo, que no coração da crise brasileira está o “conflito distributivo”. Como você compreende esse conflito e que possibilidades vislumbra para resolvê-lo?
Diego Viana - O conflito distributivo não tem resolução, ele é um dado sistêmico, que se revela com maior clareza em momentos bem particulares, ou seja, quando não dá para todos ficarem satisfeitos com o que lhes cabe. Na verdade, só mencionei o conceito de passagem em um texto, porque ele sempre aparece em períodos de crise nos artigos de economistas, referindo-se à distribuição da renda entre capital e trabalho, que em determinadas circunstâncias gera inflação, como forma de absorver o conflito, diferi-lo. Já que você mencionou o tema, acho sempre útil fazer a ponte com os conceitos usados por economistas porque, se acreditamos que uma economia não existe autonomamente, dentro de um universo todo seu, mas é expressão de todo um sistema de relações de vida, então podemos nos apropriar desse conceito para falar não só da relação entre capital e trabalho, mas de todas as instâncias em que se identificam disputas por recursos, controle, dominação.
É um exercício interessante: pensar em termos de conflito distributivo não só a economia, globalmente, mas também as disputas entre grupos econômicos e, para além da economia propriamente dita, a distribuição de espaços políticos, a relação entre grupos sociais e assim por diante. De certa forma, no momento em que os arranjos da Nova República vão rachando, cada grupo de poder tenta garantir para si próprio o máximo dos espólios, o que não deixa de ser um conflito distributivo. Note-se que a inflação poderia ser um meio de mitigar os efeitos políticos dessa disputa, ao evitar que um grupo de poder tivesse que abrir mão de recursos para o triunfo de outro grupo. Mas a tolerância a um processo inflacionário no Brasil diminuiu bastante desde o tempo em que era usado regularmente como mecanismo de escape... Por outro lado, ao nos apropriarmos do conceito para aplicá-lo a fenômenos mais amplos, percebemos que o fenômeno inflacionário perde seu caráter específico, de modo que o sistema de preços e a moeda como um todo aparecem como um regulador, um "buffer", para as tensões da sociedade. Mas não é o único: não é o caso de tratar disso aqui, mas penso que a violência policial exerce um papel análogo, assim como alguns escândalos políticos.
IHU On-Line - Alguns apostam na tributação de grandes fortunas ou no estabelecimento de algum tipo de renda universal à qual todos teriam acesso como uma alternativa ao conflito distributivo. Essas medidas seriam viáveis na prática?
Diego Viana - O conflito distributivo não deixa de existir porque se instauraram mecanismos de justiça social, tanto que esses mecanismos podem ser revogados ou corroídos, como tem acontecido nos países ricos ocidentais desde fins dos anos 70. Sobre a tributação de grandes fortunas, vale dizer que ela voltará a ser um tema quase consensual, como foi na primeira metade do último século, tão logo a instabilidade do atual sistema se torne insuportável para ele próprio. Antes, porém, será preciso superar a ideia de que uma fortuna expressa nada mais do que a grandeza moral daquele que a acumulou, como parece ter se tornado a noção dominante no mundo atual. Também será preciso contornar a diferença de escala entre a autoridade que tributa, que é nacional ou subnacional, e a capacidade que as grandes fortunas têm de domiciliar-se onde bem entendem. O mesmo vale para as grandes corporações, que evitam os impostos sobre seus lucros exorbitantes estabelecendo sedes virtuais em lugares que, para todos os efeitos, são paraísos fiscais. O resultado é que as condições de vida nos lugares onde essas fortunas e esses lucros se formam vão pouco a pouco se corroendo, com um benefício marginal, para os detentores dos recursos, que é simplesmente irrisório. Vale lembrarmos disso quando houver a próxima crise de dívida soberana e ouvirmos que será preciso fazer sacrifícios em nome da sã política econômica.
Sobre a renda básica universal, também é uma ideia simpática, defendida de modos diferentes por autores ligados às mais variadas correntes de pensamento, desde os autointitulados libertarianos até anarquistas como David Graeber. Como gosta de lembrar este último, um aspecto interessante dessa ideia é que ela funcionaria como um grande liberador de tempo, disposição e criatividade para pessoas que hoje precisam trabalhar em empregos estafantes e, na verdade, desnecessários, quando poderiam estar aprendendo algo, sendo voluntários para alguma causa ou simplesmente fazendo arte... Para Graeber, a explosão de criatividade dos anos 60 é fruto, entre outras coisas, do Estado-providência, porque a juventude não precisava viver desesperada, sempre pensando no fantasma do desemprego, e podia experimentar coisas novas, inventar modos de vida etc. É um bom argumento.
Fico me perguntando, porém, se essa medida, por si só, atacaria o cerne dos nossos problemas. Afinal, deixa intocada a arquitetura do sistema financeiro, em que o endividamento de famílias e governos é a chave da acumulação, enquanto a produção ensandecida de desperdício se apoia sobre a destruição das condições da vida humana no planeta como um todo. Daqui a menos de um século, é bem capaz que os algoritmos de HFT (High-frequency trading) ainda estejam operando a todo vapor, mas não haja mais humanos para as máquinas simularem: imagine só esses poderosíssimos computadores contabilizando ad aeternum ganhos e perdas de que ninguém vai usufruir...
IHU On-Line - Recentemente você afirmou que o projeto de parte da esquerda em eleger Lula em 2018 é “a prova cabal de que desapareceu no Brasil a esquerda eleitoral com diagnóstico e projeto para o país”. O que seria uma alternativa a uma possível campanha do ex-presidente em 2018?
Diego Viana - Se estamos falando em alternativas eleitorais, elas hoje não existem. Parte da esquerda se encantou com Ciro Gomes, porque ele mantém o discurso desenvolvimentista quase intocado. E também porque vocifera, com muita eloquência, contra as oligarquias que dominam a política e a economia no Brasil, no que ele teria a mais absoluta razão, não fosse o fato de que faz parte de uma dessas oligarquias... Não que isso seja necessariamente um problema para a sensibilidade de esquerda no Brasil, afinal de contas Getúlio também fazia e até hoje ele é referência.
Outra parte procura as respostas em Marina Silva e a Rede Sustentabilidade, principalmente porque é o primeiro grupo a colocar o tema ambiental no centro do discurso. Infelizmente, isso não basta. Aliás, não só não basta, como não parece sensibilizar muito o eleitor brasileiro: Marina teve boa votação em 2010 e 2014 não por causa disso, mas porque representava a alternativa a uma bipolaridade que já dava sinais de esgotamento. Afora esse ponto, a Rede continua sendo um balaio de gatos sem a menor coerência doutrinária, que deixa o eleitor confuso sobre o que eles realmente acreditam, provavelmente porque eles mesmos não sabem.
Mas a ausência de alternativa eleitoral talvez não seja mais do que o reflexo de uma ausência de alternativa programática, mesmo. No Brasil e no mundo, ainda não temos uma narrativa clara do que queremos que venha a ser um projeto digno do nome "progressista", ou de outro nome que venha a substituí-lo. A esquerda tem em comum com o liberalismo uma certa crença no avanço indefinido da humanidade, pensamento típico do período que se convencionou chamar de "moderno".
Mas o que fazemos quando essa perspectiva se torna improvável? Como dizem, cada um à sua maneira, Paul Krugman e Paulo Arantes, vivemos em tempos de "expectativas decrescentes", o tempo das "expulsões", na terminologia de Saskia Sassen. Temos diante de nós um cardápio todo feito de desastres: econômico, com o fim da expectativa de que as condições de vida sigam melhorando de modo generalizado; ambiental, com a constatação de que esgotamos os recursos do planeta, de modo que a única maneira de sobrevivermos é mudarmos radicalmente nosso modo de viver, o que não parece estar no radar; política, com o encerramento do sonho de democratização das sociedades e, mais amplamente, do capitalismo, já que progressivamente a administração das relações comuns está sendo entregue a grandes conglomerados transnacionais, enquanto a pequena gestão dos comportamentos está nas mãos de uma polícia cada vez mais paranoica, a começar pela vigilância digital.
Um cenário desses é incompatível, por exemplo, com a filosofia de Marx, em que a expansão é um dado. O que tem de mais compatível é o pensamento de Walter Benjamin, mas como arregimentar um movimento político por trás da noção de que é preciso puxar o freio de emergência?
As iniciativas já existentes são interessantes, mas embrionárias, e estão longe de ser suficientemente propositivas para servir de base a uma política de longo prazo: por enquanto, o que vemos de levantes, da Turquia à Espanha, da Grécia ao Brasil, dos EUA ao Egito, são respostas a retrocessos. Se vamos enfrentar a tripla catástrofe que esbocei no parágrafo anterior, primeiro vamos ter que formulá-la mais explicitamente e inventar técnicas de organização da vida coletiva que se adaptem à necessidade de produzir uma vida que valha a pena ser vivida, para todos, sem colocar em xeque as condições de manutenção e reprodução dessa mesma vida. Isso envolve modos de deliberação que precisam ir muito além do que foi conseguido até hoje com a democracia representativa. Não é nada fácil, certamente, e não é por acaso que as esquerdas ao redor do mundo se sentem derrotadas: são derrotadas quando se prendem aos antigos modelos e são derrotadas quando tentam propor algo novo, mas ainda muito abstrato.
Por outro lado, essas derrotas das esquerdas manifestam simplesmente uma grande derrota de todos, ou seja, o esgotamento da ideia de processo civilizatório em que se escoraram a modernidade, o capitalismo e também seu reverso, as esquerdas. Mas, e isso me parece o mais importante: se formos obrigados a aceitar o adágio de Margaret Thatcher, segundo o qual "não há alternativa" a uma filosofia destrutiva, alienante, depressiva, emporcalhadora e tirânica, então estamos vivendo no meio de um paradoxo existencial, porque aquilo ao qual não há alternativa tampouco é uma alternativa. Nesse caso, a única saída é provavelmente admitir o apagamento das alternativas e buscar a via das invenções, nem que sejam utopias, delírios, ilusões.
Mas é claro que terminei a resposta com algo que tem muito pouco a ver com a pergunta. Em todo caso, a candidatura de Lula está sendo apresentada como única alternativa viável a essa filosofia thatcheriana, que parece ter se libertado de todos os entraves para sua plena implantação no Brasil. Mas, convenhamos, essa não é realmente uma alternativa: o único caminho efetivo para um terceiro governo de Lula é um grande acordão de cúpula entre nossas oligarquias políticas. É isso mesmo que a esquerda quer? Passo às esquerdas a palavra...
IHU On-Line - Parte dos movimentos tradicionais ainda apoia uma possível campanha do ex-presidente. Quais as consequências dessa centralidade na imagem de Lula para o desenvolvimento desses e de novos movimentos sociais?
Diego Viana - A força da figura de Lula me parece inegável, porque permeia todo o espectro de opiniões políticas no país. O termo usado na pergunta é certeiro, porque o que exerce uma função determinante e muito pesada na sociedade brasileira (mais do que somente na política) é a imagem de Lula, sua efígie, como se no alto de cada página que se escreve sobre política brasileira, hoje, houvesse um retrato do ex-presidente, seja sorrindo, seja esbravejando, seja tomando cerveja, seja mostrando as mãos sujas de petróleo. Modus in rebus, a imagem de Lula exerce hoje o papel que já foi exercido pela de Getúlio.
Sei que a pergunta diz respeito aos movimentos sociais, mas vou responder como se fosse sobre a imaginação política do país como um todo: a centralidade da imagem de Lula é como aquele peso amarrado à perna dos prisioneiros que vemos em desenhos animados. Claramente nos impede de seguir adiante e preparar as disputas políticas definidoras do futuro do país, porque ainda estamos muito presos a disputas políticas que definiram o período anterior: parece que ficaram muitos fios soltos. Por sinal, Lula não é a única imagem a representar os fios soltos de uma sociedade tão mal resolvida como a nossa.
No ano passado, publiquei um texto em que eu argumentava que a discussão em torno do impeachment, e o próprio processo de remoção do PT do poder, estavam inapelavelmente contaminados por uma figura invisível, que é a da ditadura civil-militar e o golpe que a precedeu. Como ainda não nos livramos dessa herança e temos medo de encarar o fato de que passamos 21 anos sujeitos às maiores arbitrariedades, nos condenamos a continuar remoendo (ou seja, revivendo) essas arbitrariedades e, mais ainda, nos condenamos a invocar o fantasma do golpe toda vez que há uma grande crise: essa é a manifestação de um desejo de golpe que vai nos perseguir por bastante tempo ainda. Vem somar-se a outro grande fantasma, que é a escravidão, nossa "característica nacional" até hoje e ainda por muito tempo, como vaticinou Joaquim Nabuco, certeiro.
E agora me permito um pouco de especulação: talvez um dos motivos para a perenidade da imagem de Lula como possível líder de uma esquerda renascida seja justamente aquilo que seu governo não fez. Isto é, temos uma imagem ainda forte na cabeça de um país que crescia rapidamente e diminuía a miséria durante o governo Lula, mesmo que para efeito de argumentação admitamos, como querem muitos, que essa bonança toda era ilusória, ou fruto das medidas do governo anterior, ou mero efeito do cenário internacional. Mas mesmo os mais entusiásticos apoiadores de Lula saberão reconhecer que faltou o essencial, como aquela bola que bateu na trave na final do campeonato ou aquela pergunta que ficou por responder no vestibular. Faltou o confronto com as oligarquias e o grande capital, faltou abrir espaço para uma sociedade mais justa, moderna, dinâmica, coisa que ficou evidente em 2013.
Ora, os apoiadores de Lula veem nele justamente a imagem desse confronto que jamais aconteceu sob seu governo (antes o contrário: o que houve no seu governo foi conciliação). É como se o quisessem de volta em 2018 para redimir as insuficiências de seu período de oito anos como presidente, ou seja, como se a volta de Lula fosse uma espécie de "gran finale", de peripécia digna daqueles filmes hollywoodianos em que um herói até então recalcitrante toma coragem de resolver uma situação no último minuto, de maneira apoteótica (geralmente falando em público). Como se em 2018 Lula fosse fazer o que ele mesmo recomendou a Dilma e Haddad que não fizessem em 2013.
Por um lado, é evidente que esse retrato de Lula não tem o menor fundamento em sua trajetória política, nem como sindicalista, nem como presidente. Lula se destacou no ABC pela capacidade de negociar com os patrões, coisa que muita gente parece estar descobrindo graças às declarações de Emílio Odebrecht. As últimas cenas do ABC da Greve, de León Hirszman, mostram bem a capacidade de mediação de Lula. A grande vitória da greve filmada pelo cineasta foi a sobrevivência do sindicato. E, embora sem melhorias para suas condições de trabalho, vemos os operários aplaudindo seu líder efusivamente.
Nada disso é acusação: Lula exerceu esse papel importante com grande desenvoltura e teve muito sucesso nele, a ponto de seu governo ter um significativo apoio empresarial. Se Léon Blum tivesse a mesma capacidade na época do Front Populaire na França, a história poderia ter sido muito diferente, a começar pela falta de envolvimento francês na defesa da República Espanhola. Assim, esse papel mediador não é demérito nenhum, muito pelo contrário. Mas é sintomático que, para chegar a ocupar esse posto, Lula tenha construído uma imagem de adversário do capital que perdura até hoje para muitas pessoas.
Por outro lado, esse retrato de Lula é incrivelmente convergente com a imagem que dele têm seus maiores inimigos e detratores. Quando conservadores menos ilustrados apontam em Lula o caminho para o comunismo no Brasil, podemos ridicularizá-los, dada a evidência de que o governo Lula nos levou numa direção bem oposta ao comunismo... Só que isso não é tão fácil quando se trata de antilulistas mais sagazes, mas que continuam a fustigá-lo com base em seus erros de português, na "terrível mentira" de que ele seria um representante dos oprimidos (que os próprios o vejam assim, pouco importa, já que a verdade é ditada por quem tem voz), na sua insistência em falar em "companheiros". Apesar de todas as evidências, para as classes mais favorecidas, incluindo aí grandes nacos de classes médias pouco favorecidas, mas ainda assim mais favorecidas que o bojo da população brasileira, Lula é a encarnação do populacho e, com isso, canaliza um enorme ódio de classe.
Como resultado, grande parte do que poderia ser o embate entre direita e esquerda no Brasil continua centrado nas controvérsias em torno dessa figura, que, sem exagero, pode ser dita mítica. No fundo, é uma maneira conveniente, talvez eu devesse dizer confortável, de evitar o enfrentamento com o fato de que há um abismo de classe real, efetivo, grotesco, no Brasil. Ficamos enredados nessa disputa de classes "proxy" que só favorece aos oligarcas, evidentemente.
IHU On-Line - Qual é a sua leitura da Lava Jato? Como analisa o episódio do depoimento do ex-presidente ao juiz Sergio Moro e quais as implicações políticas disso?
Diego Viana - Evito fazer avaliações diretas sobre a Lava Jato enquanto investigação policial (e, em seguida, enquanto processo jurídico, já que está cada vez mais difícil discernir uma coisa da outra) tanto por falta de conhecimento específico quanto por estar distante, sem acompanhar o dia a dia do noticiário, nem os detalhes das delações, dos depoimentos, das sentenças. Por outro lado, talvez esse desconhecimento e essa distância possam ser usadas para minha vantagem também, ao permitir olhar a operação pelo ângulo das paixões que suscita, dos pressupostos que deixa entrever e assim por diante.
Assim sendo, a primeira coisa que me parece, olhando para essa operação ainda em curso, é que se trata de uma oportunidade de ouro que vamos perder uma vez mais. As empreiteiras em relação incestuosa com os governos (desde Juscelino...), o poder de pressão dos grupos bancários, as relações espúrias do Judiciário com aqueles que seus juízes deveriam julgar, tudo isso foram questões que surgiram ao longo da investigação, e que poderiam ser a faísca de um processo que mudaria muito a feição deste país (sua "lógica geral", para recuperar a expressão que usei acima). É uma ideia ingênua? Com certeza. Mas colocar as coisas nesses termos serve ao menos à finalidade de contrastar os potenciais com o que estamos verificando efetivamente.
Afinal, tanto para os apoiadores (não todos) quanto para os críticos (não todos) da Lava Jato, trata-se essencialmente de um movimento dirigido à destruição do PT, mais especificamente de Lula. Quando surgem delações sobre "o primeiro a ser comido" ou outros apoiadores de Temer, os apoiadores da Lava Jato as ignoram ou desinflam (porque são secundárias em relação à liderança petista em que acreditam); já os apoiadores do PT cobram dos veículos de imprensa que deem a elas o mesmo peso que dão às denúncias contra o PT, regozijando-se quando constatam que o peso é bem menor (e, de fato, é).
Determinados atos de Sergio Moro, como a famigerada divulgação do áudio da conversa entre Lula e Dilma, reforçam essa impressão, sobretudo pelo fato de que ele não sofreu punição alguma por isso, quando outras investigações foram abortadas por erros até menores de procedimento, como foi o caso das investigações contra o banqueiro Daniel Dantas. As capas de revista em que o depoimento de Lula foi tratado como embate entre o ex-presidente e o juiz são sintomáticas a esse respeito, principalmente porque, provavelmente por um ato falho, representaram um estado dos fatos bastante verdadeiro, embora surreal.
A apresentação em Powerpoint de Deltan Dallagnol é um indício tão óbvio que talvez nem precisasse ser evocado. A baixa qualidade do famoso slide em que todos os males apontam na direção de Lula chega a me parecer intencional, como se para reforçar um certo efeito farsesco. É como se o procurador estivesse tentando passar a mensagem de que não importa a qualidade do trabalho ou o conteúdo das denúncias, o que importa é atingir o alvo. Ironicamente, essa estratégia também serviu a seus adversários, embora de modo um tanto fraudulento, quando eles atribuíram a Dallagnol a frase já tornada clássica: "não temos provas, mas temos convicções". De fato, em todos os lados dessa arenga (se posso usar esse termo...), as convicções têm sido o que há de mais determinante, o que reforça o caráter político de todo esse processo — e digo isso não para denunciá-lo como político por oposição a técnico ou jurídico, mas para sublinhar que o que está em jogo não é qualquer tipo de justiça, mas um movimento de poderes.
Sobre o depoimento em si, além do pouco que mencionei acima, não quero me alongar, porque é apenas um episódio entre outros e porque ainda está muito fresco na sequência dos eventos. Confesso que a discussão em torno de um apartamento no Guarujá me parece um tanto burlesca: a Lava Jato teve capacidade de rastrear os bancos usados pela Odebrecht para pagar os executivos da Petrobras, então certamente teria capacidade de rastrear o dinheiro de Lula no exterior — a não ser que esteja escondido com alguém que deve permanecer a salvo de investigações... (Esta é uma hipótese pouco levantada: e se para conseguirem prender Lula for necessário atingir o coração do capitalismo brasileiro? Vão continuar apoiando a Lava Jato?) Por outro lado, na cabeça do grupo de pessoas que odeia Lula profundamente, e que mencionei alguns parágrafos acima, a mediocridade desse apartamento e do sítio de Atibaia, com seus célebres pedalinhos, é um reforço à imagem de um usurpador de classe. É como se dissessem: corrupção é coisa de gente grande!
Entretanto, apesar de todo o barulho em torno da corrupção no governo petista, o que mais me chama a atenção nessas denúncias todas é que o que já veio a público até agora é perfeitamente coerente com o que sabemos sobre o modo como o território, a população e a economia do Brasil são explorados desde sempre. Recentemente vi citada no jornal uma frase de Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda sob Geisel, dizendo que no Brasil era preferível pagar só os 10% de propina, poupando os 90% de uma obra que, de todo jeito, seria mal feita. O mensalão foi um escândalo de compra de votos, em que deputados brasileiros foram comprados, para surpresa de ninguém. Os arranjos da Nova República, o chamado presidencialismo de coalizão, a chegada de um novo ator, o PT, ao seleto grupo de ocupantes em potencial do poder, tudo isso pode ter amplificado o sistema e produzido algumas formas monstruosas, como se verificou no Rio de Janeiro, no caso dos estádios da Copa e no modus operandi dos frigoríficos.
Mas a grande bomba é o esgotamento das forças políticas de que se espera que rompam com essa lógica, que introduzam uma novidade de fato em relação a esse Brasil oligárquico, o Brasil do patrimonialismo estamental. Isso é que nos deixa um pouco desorientados: para onde ir agora? Pelo menos no curto prazo, não há resposta disponível.
O que é interessante é que membros do Judiciário parecem estar tentando assumir esse papel. À primeira vista parece uma novidade interessante, sobretudo quando gente com sobrenome "Odebrecht" é filmada indo para o xilindró com algemas: desta vez não teve um Gilmar Mendes para acordar de madrugada e dar habeas corpus. Mas é preciso sempre desconfiar muito da atuação do Judiciário, um poder que tem os mesmos problemas de corrupção, clientelismo, patrimonialismo e corporativismo que os demais, sem sofrer com o mesmo grau de exposição.
Mais ainda: sem estar submetidos ao mesmo tipo de controle, como, bem ou mal, é o caso do voto. Que parte significativa da população esteja ativamente torcendo por juízes e procuradores me parece preocupante, para não dizer assustador: hoje, um juiz manda para a cadeia um corrupto que odiamos (ou alguém que cremos ser corrupto), amanhã ele manda para a cadeia um Rafael Braga Vieira. Hoje, manda deixar na cadeia um Eduardo Cunha, amanhã manda soltar um participante do massacre do Carandiru. Hoje Teori Zavascki é ministro do Supremo, amanhã o ministro é Alexandre de Moraes. O Brasil ainda é um país em que uma pessoa pode ameaçar outra dizendo que tem parentes em altas posições do Judiciário. (Ou a própria pessoa: lembre-se de não lembrar a um juiz que ele não é Deus...) Por mais que elogiemos a atuação deste ou daquele magistrado, vamos nos meter num caminho muito perigoso se esperarmos dos juízes que substituam o sistema partidário apenas porque este último é podre. Neste país, não há muitas categorias sociais a salvo da podridão.
IHU On-Line – Como avalia as delações da JBS, que envolvem denúncias contra o presidente Temer e Aécio Neves, e quais as implicações disso para a política daqui para frente, considerando que o presidente disse que não irá renunciar?
Diego Viana - Assim como o depoimento de Lula, este ainda é um episódio fresco, cujas consequências ainda não dá para divisar. No entanto, gostaria de citar que toda a história em torno das delações dos irmãos Batista é muito saborosa, apesar do horror que carregam. Não só jogaram lenha na fogueira política, como ganharam uma enormidade de dinheiro especulando com o câmbio (sempre o câmbio!) e ainda destroçaram o discurso por trás da política de campeões nacionais ao se transferir para os EUA. Somando os diálogos à estratégia mais geral dos donos da JBS, podemos perguntar: confrontando Temer e Joesley, quem é o poder econômico? Quem é o poder político? De repente, no jogo dos bilhões e das honrarias extraídos a fórceps da vida econômica brasileira (incluindo nessa expressão o território e seus habitantes), os papéis ficaram mais difíceis de distinguir... Mas também podemos constatar como, nas palavras de Paulinho da Viola, "quando o jeito é se virar, cada um trata de si, irmão desconhece irmão". Ou seja, uma forma política do "conflito distributivo"... Se o que está em jogo é o patrimônio de um oligarca, ele vai querer que o outro oligarca se exploda. Nesse jogo, quem parece estar vencendo é a JBS, que ainda pode acabar colocando um dos seus na presidência da República, sem intermediários.
Sobre a renúncia de Temer, acho que ela só vai acontecer se for completamente inevitável. Não me parece que uma figura como ele tenha grandes preocupações com o destino do país, mas certamente tem preocupação com o próprio: se deixar a presidência, cai nas mãos da primeira instância. Por maior que seja a pressão de grupos fortíssimos de comunicação, o risco de ver-se às voltas com as denúncias já feitas me parece incentivo suficiente para se agarrar à faixa presidencial como Macbeth ao trono.
Por outro lado, isso que denominamos governo Temer, um pouco abusivamente, tem sido uma sequência interminável de compras de apoio parlamentar, que estão custando muito caro ao contribuinte e poderão custar mais caro ainda ao país como um todo. Já houve episódios, particularmente na votação da reforma trabalhista, em que foi preciso aumentar a oferta aos deputados para conseguir a aprovação. Se eu fosse um deputado fisiologista neste momento, usaria da voz mais compungida para ameaçar pular fora do barco temerista, porque não há dúvidas de que os caraminguás vão acabar espirrando para o meu lado. E é bom fazer isso rápido, porque o único verdadeiro fiador do governo Temer, que é o grande capital, logo vai pensar em alguma alternativa a ele.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Diego Viana - Muita coisa, mas é melhor parar por aqui porque já fui prolixo demais nas respostas. Mas termino com uma anedota: um amigo mexicano me escreveu pedindo ajuda para ganhar um bolão na redação em que ele trabalha: que dia Temer cai? As datas que estavam mais concorridas eram 6 de junho e 12 de junho. Tudo depende da velocidade em que se consiga costurar um acordão, mas eu não saberia estimar essa velocidade, porque, pobre de mim, nunca participei de uma costura dessas.
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O Brasil patrimonialista, o esgotamento e a desorientação das forças políticas. Entrevista especial com Diego Viana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU