25 Novembro 2013
"O extermínio de jovens, pobres, negros e favelados não é um “desmando”, mas uma nítida e sustentada política de Estado, uma política racional com propósito e objetivo", escrevem Eduardo Baker, mestre em Direito Penal, advogado e ativista da Justiça Global; Bruno Cava, mestre em Filosofia do Direito e membro do coletivo Direito do Comum; Giuseppe Cocco, professor titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Os três participam da rede Universidade Nômade.
Eis o artigo.
Na noite de 24 de junho deste ano, a polícia militar estadual invadiu o complexo de favelas da Maré com seu equipamento de guerra: blindados, helicóptero e fuzis. A polícia ocupou o território habitado por cerca de 150 mil pessoas e protagonizou uma madrugada de terror. Além do cerco onde 'ninguém entra ou sai', foram interrompidas as ligações elétricas e de telefone, centenas de domicílios foram invadidos sem ordem judicial e, dependendo de quem se consulta, de 9 a 14 moradores foram sumariamente executados pela polícia. Como simplesmente atirar é “pouco”, a tropa de elite optou por degolar algumas das vítimas. Esta é uma realidade rotineira nas favelas do Rio de Janeiro, uma cidade onde os números oficiais apontam cerca de 500 mortos anualmente pelas forças do estado, a grande maioria jovem, negra e pobre, e o mesmo número de pessoas desaparecidas.
A diferença desta chacina foi o contexto. Dias depois da marcha de um milhão no centro da cidade, a “Noite de São Bartolomeu” da Maré aconteceu na repressão de uma manifestação de favelados na principal avenida ao lado da favela. No final do protesto do dia 24, sob o pretexto de que estariam acontecendo furtos na avenida, a intervenção policial levou à morte de um morador e um policial do Bope. O que deflagrou uma típica ação de revide contra a favela, onde cada policial morto deve ser vingado por um número muito superior de moradores. O “recado” estava dado: “os favelados não se juntem ao levante, ou serão mortos”.
Enquanto a Maré era assaltada por uma operação bélica que só pode ser caracterizada como de extermínio, a imprensa corporativa da cidade se limitava a falar em “mais um confronto entre policiais e traficantes de drogas”. O foco consistia em ressaltar a morte do policial, dando a entender que a ação era uma resposta esperada e legítima ao narcotráfico. O governo seguiu a mesma linha narrativa, para culpar o “tráfico”. O que poderia terminar novamente soterrado pelo noticiário teve outro desfecho. No dia seguinte, 3 mil manifestantes desceram os morros das favelas do Vidigal e Rocinha e foram até a casa do governador no bairro luxuoso do Leblon, demandando melhores condições de vida na favela, saneamento, educação, saúde e o fim da polícia militar.
Em 4 de julho, 5 mil pessoas tiveram a coragem de voltar a protestar na Maré, na mesma avenida do protesto do dia 24, reunindo movimentos sociais, ONGs e coletivos, todos com a bandeira “Estado que mata, nunca mais!”. Ali, foi lançada uma nova frente de questionamento da maré de terror contra a juventude negra. Quando, em 14 de julho, um morador da favela da Rocinha foi levado pela polícia e em seguida “desaparecido”, surgiu a campanha “Cadê o Amarildo?”.
A campanha alcançou repercussão nacional e internacional e Amarildo se tornou o símbolo de uma resistência cujo primeiro desafio é tornar visíveis os milhares de anônimos mortos e desaparecidos cotidianamente nas grandes cidades brasileiras. Com a campanha, soubemos quem era Amarildo, um ajudante de pedreiro negro, de 47 anos, pai de seis filhos, que foi visto pela última vez sendo levado “para averiguação” pelos policiais. O caso é particularmente emblemático, levando em conta que eram militares da Unidade Policial Pacificadora (UPP), um quartel encravado na favela para exercer a política de “pacificação” dos territórios. A pressão popular foi o fator decisivo para se garantir a eficácia de uma investigação, que demonstrou como Amarildo foi arrastado a uma sessão de torturas com choques elétricos e sufocamentos, até ser morto e ter o corpo desaparecido. Não por acaso, o delegado de polícia que conduziu a investigação com lisura foi “premiado” pelo governo e transferido para uma delegacia distante.
Desde o início do ciclo de manifestações brasileiras, em junho, parte da esquerda instalada no governo federal, especialmente do Partido dos Trabalhadores (PT), tem acusado os protestos de ter uma composição majoritariamente de brancos de classe média, com agenda à direita, os ditos “coxinhas”. No entanto, o que se vê, além do fortalecimento da luta das favelas, é uma participação crescente de jovens negros e pobres, em meio aos protestos. Essas pessoas vêm de favelas, periferias, e de uma composição social de trabalhadores precarizados da impropriamente chamada “nova classe média”, formada durante os últimos dez anos de massificadas políticas sociais nos governos Lula (2003-10) e Dilma (2011- ).
É aí que se explica, também, a proibição das máscaras nos protestos, o que no Rio chegou a ser instituído por uma lei aprovada pelo Legislativo estadual, em 11 de setembro, que permitiu, ainda, a condução à força quando houver "fundada suspeita". Conceito necessariamente elástico que dá ampla margem ao arbítrio - talvez seja melhor dizer arbitrariedade - policial. Justificada para permitir a identificação de “vândalos” que estariam entre os manifestantes, na realidade tenta impedir uma mistura bem mais ameaçadora ao poder, que é a aliança de negros e favelados junto dos tradicionais movimentos e coletivos de esquerda.
A máscara cria a possibilidade de estarem juntos. O sistema penal brasileiro, afinal, conhece os seus, num estado de racismo institucionalizado. A real distinção operada nunca foi entre “presos políticos” e “presos comuns”, mas entre negros e brancos. Enquanto os brancos tendem a ter os direitos relativamente reconhecidos, os negros são tratados das maneiras mais cruéis, desrespeitados do momento da prisão até as delegacias, onde costumam estar com o rosto voltado à parede e então humilhados como escravos fugidos.
A grande imprensa e os governos continuam acusando as manifestações de violência. Teriam sido esvaziadas por causa de bandos de mascarados que, desrespeitando as regras da civilidade, ultrapassaram os limites para praticar “atos de vandalismo”, ao quebrar vidraças, pixar paredes, incendiar ônibus vazios e se defender da polícia. Essa narrativa, novamente, serve de justificativa à brutal ação do estado, onde qualquer manifestante nas ruas é visto como “vândalo” em potencial, da mesma maneira que, numa favela, qualquer jovem negro é um “traficante” em potencial. Só muda o material da bala. Nunca houve “confronto” entre polícia e manifestantes. O que há é um esmagamento das manifestações por um estado superarmado e superviolento, que não hesita em espancar, gasear, humilhar, torturar e prender arbitrariamente quem quer que esteja em seu caminho.
Numa realidade de brutalidade cotidiana, com Amarildos e Amarildas fabricados em massa, inclusive pelas políticas de “pacificação”, soa terrivelmente postiço imputar o problema da violência urbana ao “vandalismo” nos protestos. As manifestações, para muitas pessoas, especialmente os negros e pobres, significam uma chance de lutar pela paz. O medo, para elas, já aconteceu, e a violência – das execuções sumárias, dos sumiços e do terror armado – vivida como normalidade de suas vidas. A luta que o poder punitivo sempre reduz a “vandalismo”, para muitos, é uma chance de construir uma paz que não seja pacificação.
É irônico como o país vai sendo levado a outro patamar de democracia não pela esquerda institucionalizada nos governos, mas pelos tumultos onde se unem, contra o medo, as muitas lutas da metrópole. O governo encabeçado pela ex-guerrilheira, em vez de preencher-se das pautas encarnadas nas barricadas, prefere colocar-se do lado oposto, de uma ditadura maquiada pelo crescimento econômico e o ufanismo dos megaeventos, a Copa e as Olimpíadas.
Acuado ao perceber que, com os protestos, todo o seu sistema de alianças e governabilidade é posto em xeque, o governo Dilma escolheu o caminho da repressão. Subscreveu acriticamente as ações repressivas dos governos estaduais. Como, por exemplo, entre outros abusos, a prisão indiscriminada de cerca de 200 manifestantes que sentavam pacificamente nas escadas da casa legislativa municipal do Rio, no final do protesto de 15 de outubro, de que participaram 50 mil pessoas. Eles foram enquadrados pela primeira vez segundo uma nova legislação sancionada por Dilma em setembro, como “organização criminosa”, e 64 acabaram encarcerados no presídio de Bangu, em condições medievais. Outros três manifestantes já haviam sido presos provisoriamente em setembro por “formação de quadrilha armada”, apenas porque administravam a página de Facebook “Black Bloc RJ”. A maior parte do detidos conseguiu sua liberdade através da atuação de advogadas e advogadas populares e da Defensoria Pública. Ainda assim, duas pessoas permanecem presas. Um morador de rua, preso em junho, e um militante do movimento sem-teto, preso em outubro. O primeiro, acusado de portar explosivo: uma vassoura e uma garrafa de cloro, que ele utilizava para limpar seu local de descanso - as ruas do centro do Rio. O segundo preso é um jovem negro que mora em uma ocupação urbana e fazia parte dos movimentos no Rio. É acusado de fazer parte de associação criminosa armada.
Enquanto isso, em São Paulo, no dia 25, um jovem foi preso e acusado de “homicídio doloso”, depois de agredir um coronel da PM que se meteu sozinho e fardado no meio de um protesto na cidade, quando outros 92 manifestantes foram detidos. Em entrevista, lamentou: “foi a minha vez”. No domingo, dia 27, foi a vez de Douglas Rodrigues, 17, adolescente da periferia de São Paulo, cujas últimas palavras ao policial que o matou foram: “senhor, por que o senhor atirou em mim?”. A revolta que se seguiu ao assassinato, com queima de ônibus e caminhões na rodovia próxima, foi brutalmente reprimida, resultando em mais 90 detidos pela PM. O policial que disparou no adolescente desarmado, diferentemente do manifestante que estapeou o coronel, vai responder por “homicídio culposo”, sem a intenção.
Além de tudo isso, no momento em que escrevemos, Gleise Nana, uma jovem ativista nos protestos e que vinha denunciando ameaças de um policial pela internet, continua internada em situação grave, com boa parte do corpo queimado, num coma entre a vida e a morte por causa de um incêndio não-esclarecido em sua casa, em 19 de outubro.
O ministro da justiça do governo Dilma, finalmente, anunciou em 31 de outubro, sob o pretexto de “combater o vandalismo”, a federalização da repressão às manifestações nas duas principais cidades, Rio e São Paulo, colocando à disposição a Polícia Federal e o sistema de inteligência. O PT e seu governo, na figura de um Ministro de Justiça transformado em Ministro da Polícia, estão jogando no lixo a sua história de lutas, inclusive contra a ditadura. A única porta que abrem ao movimento... é aquela da prisão. Dilma e Cardozo apenas se preocupam com a ordem desse poder. Ora, no Rio de Janeiro, cinco meses de mobilizações democráticas diárias nos mostraram uma evidência: quando o poder quer, a PM – apesar de sua habitual truculência e dos episódios de uso de armas de fogo por PMs isolados – não matou na avenida. Isso mostra ao mundo duas evidências: a primeira é que o extermínio de jovens, pobres, negros e favelados não é um “desmando”, mas uma nítida e sustentada política de estado, uma política racional com propósito e objetivo. O movimento de junho a outubro foi (e continua sendo) a invenção potentíssima – porque radicalmente democrática – da paz. Uma paz da democracia. Não a “pacificação” contra a senzala para manter a escravidão em formas diferentes, mas a libertação dos pobres como paz.
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As jornadas de junho a outubro. Uma invenção potentíssima da paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU